Hillary Clinton foi a primeira mulher a concorrer para as eleições presidenciais dos Estados Unidos. Olhando para o seu perfil, a carreira, experiência e peso político por oposição ao seu rival — Donald Trump, cuja entrada mais notável no currículo seria o de produtor e apresentador do reality show “The Apprentice” — tudo apontava para uma vitória fácil.
Não foi o que aconteceu na noite eleitoral de 8 de novembro de 2016. O como e o porquê desta derrota é o que está no centro de “Hillary”, que não é bem a homenagem à vida da antiga primeira dama e secretária de Estado dos Estados Unidos que se poderia esperar. O documentário de Nanette Burstein, nomeado para um Emmy, é exibido em quatro partes pelo canal TVCine Edition a 26 e 27 de outubro (são mais de quatro horas de filme), e ficam depois disponíveis no serviço de vídeo on-demand TVCine+.
Nanette Burstein (nomeada para um Óscar por “On The Ropes”) teve acesso aos arquivos pessoais de Clinton, a mais de 2.000 horas de material filmado durante a campanha e teve ainda acesso direto ao casal Clinton. Desta mistura de entrevistas exclusivas com material de arquivo resulta um olhar inédito sobre a vida e carreira de uma das figuras mais proeminentes e polarizadoras da política americana, e uma análise histórica que tenta demonstrar como o sexismo americano pode ter contribuído para a derrota eleitoral.
Acompanhando a vida de Hillary Clinton desde os tempos de estudante de direito e ativista de causas sociais, quando o seu apelido ainda era Rodham, o documentário evita uma narrativa cronológica linear. Em vez disso, Nanette Burstein intercala histórias pessoais, os casos e escândalos — sem fugir ao tema Monica Lewinsky — com cenas dos bastidores da campanha de 2016 de um modo que vai fazer o público questionar o que sabia, ou julgava saber, sobre uma das “mulheres mais admiradas e vilipendiadas da história”, como a certo ponto é apresentada no documentário.
[o trailer de “Hillary”:]
Fazer um documentário de quatro horas sobre a Hillary Clinton com recurso a milhares de horas de imagens inéditas e acesso direto à própria partiu de uma proposta sua ou da ex-primeira-dama?
É engraçado porque desde que soube que ela ia entrar na corrida presidencial que eu queria fazer um documentário sobre a Hillary, mas ela não estava confortável com a ideia de alguém entrar no seu espaço para a filmar nessa momento para esse fim específico. Contudo, ela contratou alguém para filmar os bastidores da sua campanha — é algo comum nos Estados Unidos, porque o material depois pode ser usado para campanhas de marketing — e depois das eleições aperceberam-se, ela e a sua equipa, de que estavam na posse de material muito interessante com o qual não sabiam o que fazer. Foi então que me convidaram para realizar um filme a partir desse material, ao que respondi que não queria apenas fazer um filme sobre as eleições, mas um sobre a vida de Hillary Clinton [ri-se]. Disse-lhes que iria usar algumas dessas imagens de bastidores, por serem ótimas, mas que para mim a história que interessava era a de como ela esteve na dianteira da luta pelos direitos das mulheres na sociedade americana [nos anos 70 e 80]. Esteve sempre na vanguarda, a abrir caminho para as mulheres. Acredito que se não fosse por ela hoje não teríamos uma vice-presidente mulher [Kamala Harris].
É sugerido, creio que no 2.º episódio, quando Bill Clinton vai a eleições para governador do Arkansas, que Hillary, na verdade, por na altura ser uma advogada importante que ganhava três vezes mais do que o marido e por ter um papel decisivo na estratégia da campanha, que ela poderia ter sido uma candidata tão ou mais forte do que ele. Acha que já então ela pensava que um dia poderia vir a ser Presidente dos EUA?
Acredito que só muito mais tarde é que considerou concorrer às presidências. Essa era uma aspiração impossível para as mulheres desse período. Nem sequer lhes ocorreria. Penso que ter uma carreira na advocacia já foi um grande feito para uma mulher nessa época. Quando Bill Clinton se tornou governador, ele pedia-lhe muitas vezes a opinião — eles respeitavam-se mutuamente e admiravam a inteligência do outro — mas ela evitava tomar posições políticas. Em vez disso, preferia envolver-se e ajudar apenas em situações ou em políticas que lhe interessavam, como a saúde ou a educação. Dito isto, sou da opinião de que quando Bill concorreu para presidente eles decidiram que poderiam agir como parceiros, como se Hillary fosse sua conselheira pessoal. Creio que tentaram passar essa ideia para fora, de que os americanos iam conseguir um negócio do tipo dois pelo preço de um.
Isso não correu muito bem.
O público não foi atrás. As pessoas queriam votar nele, mas não necessariamente nela [ri-se]. Ainda havia muito sexismo no ar. Ele acabou por lhe dar a responsabilidade de tentar criar um serviço de saúde universal, o que foi muito arrojado — ainda hoje não temos isso. Ela percebeu que o seu envolvimento nesse projeto não foi positivo. Não por falta de qualidade, mas porque o público americano não apreciou que alguém que era uma mulher e que não fora eleita assumisse esse papel. Era uma figura demasiado controversa, e, porque queria mesmo ter ajudado, acabou por lamentar ter aceite esse cargo. Só muito mais tarde é que ela decidiu que queria concorrer às presidenciais. No fim do mandato de Bill ela decidiu concorrer ao Senado. E correu bem, ela foi uma senadora muito popular. Só aí terá pensado ‘Ei, por que não?’
Quatro anos depois das eleições perdidas para Trump [o documentário estreou-se em 2020], como se explica esse desfecho surpreendente? E porque é que Hillary acha que perdeu?
Houve uma variedade de razões. Não há apenas um motivo a que se possa apontar o dedo. Ao fim de algum tempo os governos precisam de mudança, e já vínhamos com oito anos de Obama. Outra razão que terá pesado é o facto de ainda haver muita gente nervosa com a ideia de o CEO de um país ser uma mulher. Por fim, aconteceram bastantes mudanças sociais na América nesse tempo, o que deixou muita gente desconfortável. Terá havido quem pensasse que depois de oito anos com um presidente afro-americano, se agora elegêssemos uma mulher, o que é que viria a seguir? Foi uma espécie de ricochete que é também sintomático de, enquanto metade do país se está a tornar mais progressista, liberal e igualitário, a outra metade, mais conservadora, está a ficar cada vez com mais medo. É por isso que somos uma nação tão dividida neste momento. E não é impossível que Trump consiga voltar a ser eleito daqui a três anos. Temos um país que está a ter imensa dificuldade em decidir o caminho que quer seguir.
Um dos aspetos abordados no documentário é a frustração que Hillary Clinton sente por ser incapaz de combater a perceção generalizada de não ser de confiança, de não ser genuína. Ela parece quase conformada com a situação. A que acha que se deve essa perceção?
Em primeiro lugar, o seu marido foi presidente durante oito anos e nesse tempo ambos estiveram ligados a vários escândalos. Embora no fim nenhum se tivesse revelado verdadeiro, esses escândalos foram falados constantemente na imprensa durante oito anos.
Terá ainda a ver por ser mulher?
Em parte sim. E também por a ala conservadora se ter organizado e percebido que a melhor maneira de diminuir o seu adversário era fazer jogo sujo e atirar barro à parede a ver se alguma coisa colava. E agora, com as redes sociais, ainda é pior. Por outro lado, ser mulher e ter tido essa experiência de estar associada a escândalos fez com que se tornasse muito cautelosa no momento de falar em público, porque se dissesse o que realmente pensava poderia ser criticada, como já foi no passado. Isso fez com que as pessoas não a considerassem genuína, o que por sua vez levou a que não confiassem nela.
“Hillary” é exibido em Portugal na data do seu 74.º aniversário, mais de um ano depois de se ter estreado nos Estados Unidos. Como foi recebido?
De forma excelente. Tivemos ótimas críticas, a série foi muito vista nas plataformas de streaming, ganhou prémios, foi nomeada para um Emmy… Foi muito bem recebido.
Até por quem a criticava?
Não, de todo [ri-se]. Nunca vamos conseguir mudar a sua opinião, até porque esses provavelmente não vão querer ver a série. De todo o modo, não é para isso que este documentário serve. Há imensa gente que antes não a odiava, mas também não a adorava. Pessoas no centro que mudaram de ideias depois de verem o documentário. Que ficaram surpreendidas pela sua história e pelos problemas que enfrentou ao longo das décadas. Já as pessoas que a desprezavam, ou não viram o documentário ou viram só para dizer que é horrível.
A ideia era dar a Hillary Clinton a última palavra sobre estes assuntos?
Claro que o documentário representa uma espécie de legado, mas para mim o que realmente importa é olharmos para o passado dela, porque aí compreendemos a história do sexismo e dos movimentos feministas na América. Ela esteve sempre na vanguarda desses movimentos, ajudando a tentar mudar as coisas ao mesmo tempo que era vítima desses esforços. Para mim, ela representou uma oportunidade fabulosa de contar essa história e de compreender esses movimentos. Enquanto realizadora, o que me interessa são as histórias pequenas que nos dizem algo muito maior sobre o nosso mundo ou a sociedade. Também me interessava explorar a história política dos últimos 50 anos, de que ela fez parte. Como disse há pouco, tornámo-nos numa sociedade muito polarizada. Olhar para a história dela ajuda a perceber como é que isso aconteceu, na história dela também está a história da América.
O que é que descobriu sobre Hillary Clinton nas entrevistas que lhe fez e nos vídeos a que teve acesso que mais a surpreendeu?
Em primeiro lugar, surpreendeu-me as tribulações pelas quais passou desde o início. Não consigo imaginar quão difícil terá sido para ela. Também me surpreendeu o quão real ela é na verdade. Também eu, como muita gente, pensava que se controlava muito e que tinha dificuldades em ser autêntica. Não é o caso. Se falarmos com ela a sós, ou por exemplo nas entrevistas que lhe fiz, ela mostra-se frontal, charmosa, completamente à vontade. Tudo características que não via nela quando olhava para a política ou candidata.
O caso Monica Lewinsky não podia faltar num documentário sobre Hillary. Que limites ou atenções lhe foram pedidos ao tratar este tema?
Nenhum. O que achei incrível, para ser sincera. Antes de começar falei com ela e disse-lhes que o seu casamento e as infidelidades do seu marido teriam de ser incluídas, porque se não estiverem isso faria as pessoas questionar a série toda. Ela teve dificuldades em falar sobre esse assunto, mas compreendeu que seria importante e ambos — Hillary e Bill — aceitaram falar sobre o caso. O que não me interessava era colocar o caso no centro da série, como a nova temporada de “American Crime Story” [a terceira, intitulada “Impeachment”, com Sarah Paulson, Beanie Feldstein, Edie Falco, Clive Owen nos principais papéis] ou outro documentário recente que se fez sobre o caso. Sendo este sobre a Hillary Clinton, o meu foco teria de estar nela e no marido, e de como eles lidaram com a situação. De como, aliás, ele lidou com isso. Porque é que se envolveu com ela? Porque é que arriscou tudo? E sentirá remorsos não só pelo que fez à sua família e à sua presidência, mas também pelo que fez à Monica Lewinski?