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Joana Santos é Aurora em "On Falling", trabalhadora precária na Escócia
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Joana Santos é Aurora em "On Falling", trabalhadora precária na Escócia

Joana Santos é Aurora em "On Falling", trabalhadora precária na Escócia

"On Falling": é em San Sebastián que começa a conquista de Laura Carreira e Joana Santos?

É a primeira longa metragem da realizadora e é a mudança que a atriz procurava. Ambas estiveram no festival de San Sebastián para mostrar "On Falling", notável retrato de uma desumanização quotidiana.

Num dos primeiros locais onde a realizadora Laura Carreira trabalhou, pediam-lhe que nunca tivesse tempos mortos. Passou horas a regar as plantas do café, um movimento contínuo que justificava a razão da sua existência e desculpava os baixos salários. Um gesto banal que escondia a melhor definição do cinema que está agora a construir: a monotonia robótica da precariedade, que nos deixa sozinhos, estranhos perante o outro, uma inércia só sacudida pela falsa pertença ao mundo tecnológico enfiado num telemóvel. Mudou-se para a Escócia aos 18 anos, depois de a mãe, desempregada, ter decidido emigrar. Estudou na Escola António Arroio, em Lisboa, apesar de ser do Porto, tendo-se licenciado em Realização de Cinema na Universidade de Edimburgo. Com amigos e pouco dinheiro, fez uma primeira curta-metragem, Red Hill (2018), com uma boa marca internacional; seguiu-se outra, The Shift, estreada no Festival de Veneza.

As marcas da solidão no trabalho tornaram-se protagonistas na história que queria contar, mas nunca à procura da compaixão ou de uma mensagem política. O som, os detalhes e os estilhaços é que interessavam. Aurora, personagem principal de On Falling, primeira longa-metragem da cineasta portuguesa — que está a competir pela Concha de Ouro no 72.º Festival de San Sebastián — também repete o gesto automatizado. A atriz Joana Santos dá corpo e alma a uma picker emigrante portuguesa, que trabalha num armazém, agarrada a uma máquina que confirma uma variada gama de produtos enviados para os clientes. O bip que se houve da máquina que vive colada à sua mão é o compasso da vida de Aurora, incapaz de criar laços, amorosos ou de amizade. Sobrevive no limbo da precariedade. O rumo que foi obrigada a escolher tem um custo. Fora do trabalho, lava a roupa, cruza-se com outros imigrantes em transição no prédio onde vive. Não tem dinheiro, mas é incapaz de o admitir. Não pede ajuda. Prefere passar fome a largar o pequeno ecrã. O nó na garganta que sente não a deixa ir mais além na sua rotina.

Eis a história deste filme contada por quem o fez: sobre como conseguiram chegar à Sixteen Films do conceituado realizador britânico Ken Loach; como foi garantir o financiamento e trabalhar, primeiro, com uma produtora portuguesa, a Bro Cinema de Mário Patrocínio; e como, depois de o ter estreado no Festival de Toronto, a entourage nacional está a conquistar a crítica na Europa.

[trailer do filme “On Falling”, de Laura Carreira:]

“Esse regar das plantas no meu primeiro trabalho acontecia por causa da irracionalidade das dinâmicas. Não podia estar parada. Senti essa pressão. No final do dia, recebia um salário que mal dava para me aguentar. Quando comecei a fazer filmes de forma mais séria, percebi que o trabalho e o mundo laboral não eram bem retratados. Na exploração laboral, não há laços familiares a que nos possamos agarrar. Quis captar esse sentimento”, contou-nos Laura Carreira em San Sebastián. Tal como On Falling, também a realizadora é contida. A exatidão e a certeza com que fala sobre a visão que tem do mundo contrasta com o facto de ser uma estreante nestas andanças. A maturidade aos 30 anos, que se revela desde as primeiras frases, não é de estranhar. Tal como Aurora, também Laura Carreira foi-se agarrando aos colegas, imigrantes económicos dos mais variados países, para “encontrar um lugar”. “Este filme é uma combinação do que me aconteceu e do que eu vi acontecer. Não queria ter essa visão egoísta de olhar só para mim. Queria, sobretudo, olhar para um sistema que não nos permite tomar conta uns dos outros. apsar disso, no final do dia, temos de estar lá uns para os outros. Era importante não retirar essa esperança”, diz.

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Aurora fala pouco português. Só quando está no carro com a colega, que sonha em ter um trabalho de secretária em Portugal. O pesadelo de uns é o sonho de tantos outros. On Falling não é, por isso, um filme sobre a emigração portuguesa, como tem sido tradição em tantos outros títulos nacionais, falando só dos mais recentes, como Listen (2020), de Ana Rocha de Sousa, ou Great Yarmouth — Provisional Figures (2022) de Marco Martins. A mensagem é mais universal. Nos dias em que esteve em Toronto, Laura Carreira foi surpreendida por uma audiência que nunca tocou nesse assunto. A precariedade é uma realidade que atravessa fronteiras, barreiras linguísticas ou a cultura de um país. “Não senti que tinha de contar uma história dessa perspetiva portuguesa. Não precisamos de ser emigrantes para perceber o filme”.

Para um filme em que a protagonista é peça mais do que fundamental, tem de haver espaço para construir confiança com quem escreve e realiza — neste caso entre Joana Santos e Laura Carreira

A cineasta, quando decidiu que queria dedicar-se ao cinema, terminou a faculdade, e ficou sem saber o que fazer. Dedicou-se à edição de filmes de amigos. Recebeu várias recusas de financiamento, experimentou o género documental porque não havia dinheiro para ficção na faculdade de Edimburgo. “Tive de desistir, não estava a gostar, não conseguia entrar em lado nenhum e filmar os trabalhadores, sentia que mentia.” Quando recebe o salário, Aurora decide arranjar o cabelo, maquilhar-se e comprar doces. Pequenos prazeres que camuflam a rotina. Laura Carreira pegou em dois mil euros e nos amigos para começar a explorar as Auroras que a rodeavam.

Joana Santos e a chegada do “momento” no cinema internacional

Por ser exigente e saber o que queria contar, Laura Carreira viu cerca de 400 candidatos para o papel de Aurora. Joana Santos, atriz de 37 anos, um dos rostos portugueses mais conhecidos da telenovela portuguesa, tem dados passos rumo à sétima arte, depois de ter protagonizado uma mãe involuntária em Vadio, de Simão Cayatte, um dos melhores filmes portugueses do ano passado. Foi ela a escolhida para ser Aurora. Nunca se excede, nunca nos pede para chorar. O único ombro amigo é a câmara de filmar de Laura Carreira. Em San Sebastián, a elegância com que atravessa a passadeira vermelha dá a entender que Joana Santos está mais do que habituada a estes voos. Sentimo-la confortável. Com a agenda cheia, e com uma certa dose de ironia, o Observador conversou com a atriz debaixo de umas escadas do Kuursal, de frente para um corredor onde vários funcionários estão a trabalhar. São rostos invisíveis de um sistema maior. “É tudo novo, estranho e feliz. É o cliché de ainda não me ter caído a ficha. Fiz várias selftapes mais um casting presencial, comecei a ter a sensação de que realmente queria trabalhar no filme. Mas como éramos tantas candidatas, achei que não ia acontecer. Mas fui escolhida. Tive o medo de ‘agora sou eu’”, começa por contar.

É certo que as oportunidades internacionais para os atores e atrizes portuguesas estão a chegar com mais afinco. Mas Joana Santos nunca tinha estudado fora ou tido uma experiência como esta. Afinal, a carreira que escolheu no seu país também sabe a precariedade. “Foi todo um processo em que tive de aceitar que agora era mesmo eu. Sou mãe de dois filhos, tive de perceber que este é o meu momento. Trabalhei dois meses na Escócia. Estava a precisar deste salto, tanto a nível pessoal como profissional.” Para um filme em que a protagonista é peça mais do que fundamental, tem de haver espaço para construir confiança com quem escreve e realiza — neste caso entre Joana Santos e Laura Carreira. Ou seja, um processo de estudo de personagem que teve de ser confortável para atingir o desconforto nos estilhaços da vida de Aurora.

"Esse regar das plantas no meu primeiro trabalho acontecia por causa da irracionalidade das dinâmicas. Não podia estar parada. Senti essa pressão. No final do dia, recebia um salário que mal dava para me aguentar. Quando comecei a fazer filmes de forma mais séria, percebi que o trabalho e o mundo laboral não eram bem retratados. Na exploração laboral, não há laços familiares a que nos possamos agarrar. Quis captar esse sentimento."
Laura Carreira, realizadora e argumentista

Durante os ensaios, Joana Santos trabalhou com não-atores, sobretudo escoceses. Num desses ensaios de texto, e numa das cenas mais dramáticas de On Falling, a atriz desatou a chorar. Mas quando a câmara começou a rolar, a emoção não saiu. “Porque a Aurora não tem essa emoção, foi a Joana que se emocionou a pensar na cena. Porque a personagem não chega lá. Está presa até no choro.” Será que o controlo e a contenção foram o maior desafio para este papel? “Tanto aqui como no Vadio, foge-se ao melodrama, mas como faço televisão, vou lá parar. Claro que consigo receber as indicações e limpei essa parte”. Não há dúvida de que o filme nunca puxa a corda para o lado da vítima. Porque aqui não existe uma vítima. Está alguém que quer muito, mas não consegue avançar. As críticas positivas de jornais como o The Guardian ou o El Mundo comprovam que o projeto está a resultar em San Sebastián. Quanto a Joana Santos, não sabe o que pode sair deste destaque internacional. Continuará certamente a fazer televisão porque é, tal como tantos outros seus colegas, o seu ganha pão. “Não sei mesmo o que vai acontecer”, finaliza.

Um filme português primeiro, um financiamento europeu depois

Se é difícil chegar a conclusões a propósito do futuro, o melhor é continuarmos a olhar para trás. O bip que Aurora houve através da máquina que valida os produtos faz parte de uma construção sonora de Laura Carreira para entrar na solidão. O realismo social no cinema não é novidade. Nem sequer as narrativas dramáticas que buscam a compaixão do público perante figuras marginais. Conhecemos a fisionomia da solidão por inteiro. Faltava o som. “Quis explorar quão estranha podia ser a Aurora, experimentar até onde podíamos puxar. Queria entrar na solidão através do som, a sensação de estar a ser observada, de ser exposta a outras pessoas como se estivesse numa montra. Quando ela tem uma oportunidade de comunicar, há quase um engasgo. Quer tanto, mas não consegue”, conta a realizadora que aproveitou o processo de montagem para encontrar esses momentos.

Em On Falling, também o planeamento estratégico e a montagem financeira foram feitas de momentos. O melhor som que a equipa podia ouvir vinha dos parceiros escolhidos, com as garantias necessárias. O Observador encontrou Mário Patrocínio, da Bro Cinema, no hotel Convento Martin, em San Sebastián, para perceber como aconteceu este encontro. A produtora, fundada a par com o irmão Pedro Patrocínio em 2010, tem estado presente em vários festivais nacionais e internacionais, já trabalhou com nomes como Nicolas Cage em Color Out of Space (2019), esteve a trabalhar em séries internacionais com autores como Dick Wolf (Lei e Ordem) e ganha prémios em publicidade (o Grand Prix no Cannes Lions deste ano). Tem já um cardápio vasto de filmes (cerca de 30) e só dez anos depois é que começou a garantir os primeiros apoios públicos. Este ano, também Before the Moonrise ou The Tuner of Silences fazem parte do menu desta produtora.

"É a arte do filme que tem de fazer o seu caminho. A Laura fez valer a sua visão. Fomos unidos para ter o guião certo", confessam os produtores

Sobre On Falling, tudo começou quando o realizador Luís Campos, que já tinha trabalhadora com a produtora, deu indicação a Mário Patrocínio que Laura Carreira era um dos nomes a seguir com atenção, depois de ter mostrado uma das suas curtas num circuito lisboeta de curtas-metragens, o Shortcutz. A Bro Cinema apresentou um pacote de filmes ao Instituto do Cinema e Audiovisual, onde se incluía um guião embrionário do candidato à Concha de Ouro. Assim que o financiamento chegou, Laura Carreira pôde dedicar-se inteiramente à escrita, sem ter de regar as plantas, servir cafés ou outros trabalhos. “A seguir, como a Laura tinha sido indicada, em 2020, como um dos talentos a seguir pela BBC, decidimos contactá-los. Depois veio a Sixteen Films e entrou o produtor Jack O’Brien, que é da casa. Planeámos a montagem financeira e fomos à procura dos sítios para rodar. Os orçamentos em Portugal são minúsculos, temos de perceber que, a certa altura, vamos perder o poder negocial.”

Rodagem terminada, era hora de planear o que fazer com o filme, ao lado da Sixteen Films e da Goodfeelas: “O objetivo era estrear num festival de classe A”. Assim foi. Antes, e sabendo que é mais do que normal que um determinado projeto sofra alterações por parte de quem coloca o dinheiro, foi preciso defender a visão da realizadora. “Este filme tinha várias características especiais: realizadora e protagonista femininas mais o tema que tocava. Mas é a arte do filme que tem de fazer o seu caminho. A Laura fez valer a sua visão. Fomos unidos para ter o guião certo.” Ei-lo, decidido a mostrar-se.

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