Se no primeiro dia a sala de audiência do Tribunal de Espinho estava lotada e muitas pessoas que queriam assistir ao julgamento da Operação Vórtex já não conseguiram lugar, esta sexta-feira, na segunda sessão, o cenário mudou ligeiramente, com alguns lugares por preencher. O que não mudou foram os lugares dos dois primeiros bancos: Miguel Reis e Joaquim Pinto Moreira — antigos autarcas de Espinho — de um lado, Paulo Malafaia na ponta oposta, Francisco Pessegueiro no meio e os arguidos que trabalhavam no departamento de urbanismo da Câmara de Espinho atrás. E só Miguel Reis e Pinto Moreira foram trocando algumas palavras durante o julgamento, à medida que Pessegueiro ia falando.
Mas, afinal, o empresário Francisco Pessegueiro pagou ou não pagou a Miguel Reis? A acusação do Ministério Público diz que sim e esta foi a grande questão desta segunda sessão, que começou a ser analisada já durante a tarde, o que significa que na próxima sessão, marcada para o dia 27 de setembro, o tema será o mesmo. Aliás, o empresário ainda não terminou as suas declarações, mas acabou o dia a dizer que fez duas entregas de dinheiro a Miguel Reis quando este tinha já assumido o cargo de presidente da Câmara de Espinho. O ex-autarca, no entanto, negou tudo e chegou mesmo a dizer, já à saída do tribunal, que “as afirmações de Francisco Pessegueiro são incoerentes e são falsas”.
Francisco Pessegueiro já tinha, aliás, falado sobre os pagamentos que terá feito a Miguel Reis durante a manhã. Mas o coletivo de juízes, liderado pelo juiz Carlos Azevedo, travou aquela referência, uma vez que ainda não estavam a ser discutidos esses factos da acusação. Nesse momento, o empresário explicava a razão pela qual se gabava em conversas telefónicas com a família de pagar aos autarcas pela aprovação dos projetos imobiliários. “Queria impressionar” o pai e a mãe, disse, numa tentativa de contornar o sentido das escutas que constam na acusação, dando a entender que aquilo que dizia não era totalmente verdade. “E o que dava a entender era que estava preparado. Queria impressionar, dar a entender que ninguém me encostaria à parede“, referiu.
E foi neste contexto que o juiz Carlos Azevedo pediu mais detalhes. “Onde é que está a linha da verdade daquilo que dizia?”, questionou. E acrescentou ainda outra pergunta: “Vamos lá ver se nos entendemos: não aconteceu vez nenhuma o senhor dizer que ia entregar dinheiro sem o fazer, exceto com o Miguel Reis?”. “Exatamente”, respondeu Pessegueiro. O tema, no entanto, ficou por aqui. Mas regressaria durante a tarde.
Pessegueiro queria “criar uma relação de afinidade” com Miguel Reis
Para chegar ao dinheiro, é preciso perceber o início da ligação entre o ex-autarca e o empreiteiro. Miguel Reis foi eleito nas autárquicas de 2021, assumiu o cargo em outubro desse ano e, no ano seguinte, terá começado a ter contacto com o arguido que falou durante as duas últimas sessões e tem mantido a estratégia de se distanciar de todos os outros arguidos. E tudo terá começado com o arquiteto Miguel Couto — que não é arguido neste processo.
O Ministério Público acredita que Francisco Pessegueiro usou Miguel Couto como intermediário para conseguir chegar a Miguel Reis e, a partir daí, facilitar a aprovação dos projetos imobiliários que estavam pendentes na Câmara Municipal de Espinho. E Francisco Pessegueiro confirmou essa versão esta sexta-feira, explicando que queria comprar uma casa e que, para isso, pediu ajuda a Miguel Couto, que depois juntou Miguel Reis ao processo. “O Miguel Couto disse-me que era amigo de longa data do Miguel Reis”, acrescentou Pessegueiro.
E por que razão precisava Francisco Pessegueiro de ajuda para comprar uma casa? Segundo este, se a pessoa que estava a vender a casa percebesse que era Pessegueiro o comprador, não iria baixar o preço do imóvel, porque conhecia a “condição financeira elevada” do empresário. Queria, por isso, um bom negócio e, nas suas palavras, preferiu pagar a Miguel Couto e a Miguel Reis um total de cinco mil euros — 2.500 euros a cada um. No fundo, seria um dois em um: melhor preço e o início de uma relação com o presidente da Câmara de uma só vez.
“Era uma comissão da casa”, concretizou Pessegueiro sobre o pagamento ao então autarca de Espinho. O empresário entregou então 2.500 euros a Miguel Couto e, para se aproximar de Miguel Reis, quis encontrar-se com ele — momento que consta também da acusação. E entregou-lhe, em maio de 2022, o valor em mão. E em notas. “Entreguei o dinheiro numa carta grafada preta”, detalhou. Pessegueiro assumiu perante o Tribunal de Espinho que “queria criar uma ligação de afinidade com ele [com Miguel Reis, já enquanto autarca].”
Durante esta segunda sessão foram ainda ouvidas algumas escutas, reproduzidas para que toda a sala pudesse ouvir, e uma delas mostrou uma conversa entre Francisco Pessegueiro e Miguel Couto, que falavam sobre Miguel Reis. “A sensação que me deu é que até lhe faz falta [o dinheiro]”, ouviu-se Miguel Couto. E a resposta do empresário foi rápida: “Eu ando com isso [com os 2.500 euros] na mochila. Quando ele quiser.”
E terá sido este encontro entre Miguel Reis e Francisco Pessegueiro que deu início às conversas sobre os projetos que estavam pendentes na Câmara Municipal de Espinho.
Depois dos 2.500, apareceram mais 5 mil em notas e mais uma incriminação
A partir desse primeiro contacto, contou ainda Francisco Pessegueiro, as conversas entre os dois tinham algumas regras. “Falava sempre com Miguel Reis por chamada de WhatsApp, porque foi a condição que foi estabelecida”, explicou. E no mesmo ano em que terá feito o primeiro pagamento — a comissão pela venda da casa –, Francisco Pessegueiro terá ainda pago ao autarca mais 5 mil euros, em setembro de 2022.
“Foi um pedido feito por Miguel Reis no final de uma reunião de câmara no dia 31 de agosto. Ele pediu”, explicou, acrescentando que se tratava de um “adiantamento” também a propósito do licenciamento de uma alteração de uma casa de Pessegueiro. No total, e de acordo com as palavras de Francisco Pessegueiro, Miguel Reis terá recebido deste empresário um total de 7.500 euros.
No fundo, Pessegueiro quis mostrar em tribunal que, de facto, deu dinheiro a Miguel Reis, mas que nenhum dos dois pagamentos estão relacionados com a aprovação de licenciamentos na Câmara Municipal de Espinho. E aproveitou ainda para incriminar Miguel Reis, tal como fez esta quinta-feira com Joaquim Pinto Moreira, o antecessor de Miguel Reis: Pessegueiro disse que Miguel Reis pediu 50 mil euros pela aprovação dos projetos para o hotel, lar e para o 32 Nascente, mas que nunca chegou a dar-lhe qualquer valor.
Miguel Reis: “As afirmações de Francisco Pessegueiro são incoerentes e são falsas”
Miguel Reis tem feito questão de falar sempre que entra e sempre que sai do Tribunal de Espinho. Na pausa para almoço, ainda antes de Francisco Pessegueiro ter começado a falar sobre os pagamentos, já Miguel Reis tinha acautelado parte da questão, negando ter recebido qualquer valor: “Há aqui, aliás, um facto gravíssimo, quando no dia 10 de janeiro entraram em minha casa à procura de 50 mil euros e disseram à frente da minha mulher e dos meus filhos que me tinham visto receber esse dinheiro. É uma coisa que considero extraordinariamente grave.”
Apesar de ambos negarem a entrega e o recebimento de dinheiro, há duas versões diferentes sobre quem é que fez o pedido: Miguel Reis garante que nunca pediu dinheiro ao empresário, mas Francisco Pessegueiro assumiu que o ex-autarca pediu os tais 50 mil euros. “É completamente falso. É completamente falso. As afirmações de Francisco Pessegueiro são incoerentes e são falsas. Mentiras baseadas em escutas a terceiros”, disse o ex-autarca socialista à saída do tribunal.
Operação Vórtex. As incriminações, as escutas e “patos” na primeira sessão de julgamento
E sobre os restantes pagamentos, a resposta foi a mesma: “Encontrei-me com o senhor Francisco Pessegueiro como me encontrei com qualquer outra pessoa. Não pedi taxas de urgência a ninguém. Não há tratamentos preferenciais.” No entanto, quando questionado pelos jornalistas sobre se recebeu a comissão de 2.500 euros e o adiantamento de 5 mil euros, Miguel Reis atirou para a sessão em que prestar declarações. “Tudo o que tiver a dizer, será em sede própria.”