Ainda mal exalado o último suspiro de Sidónio já o capitão Eurico Cameira convocava os membros do Governo, os chefes políticos e os comandantes militares para uma reunião de emergência no Governo Civil de Lisboa. Entre eles, várias personalidades do regime e até do Integralismo Lusitano, como António Sardinha, representante dos «Filhos de Ramires» como lhes chama José Manuel Quintas. Como prioridade, manter a Ordem a todo o custo e honrar a memória do Presidente morto cujo corpo seria, depois de embalsamado, colocado em câmara ardente no Palácio de Belém. No momento crítico, o Executivo, embora decapitado, foi rápido a decidir e, assumindo nos termos «constitucionais» a plenitude do Poder, elegeu para seu principal o membro mais antigo e de mais alta patente, o então ministro da Marinha e, interinamente, dos Negócios Estrangeiros, o almirante João do Canto e Castro da Silva Antunes. Parece que a sugestão partiu de Alexandre de Vasconcelos e Sá, secretário de Estado das Colónias de Sidónio e «herói do 5 de Outubro».
Faltava encontrar um inquilino para Belém. Perante a incómoda indecisão, alguns sugeriram que se restaurasse a monarquia mas Ayres d’Ornellas, o dirigente parlamentar da minoria monárquica que Sardinha e Osório de Barros tinham entretanto ido buscar a casa, disse que «Sua Majestade não concordaria com tal iniciativa naquele momento e naquelas circunstâncias». Com efeito, durante o conflito que assolara a Europa e o mundo, D. Manuel II dera instruções precisas para que não houvesse quaisquer tentativas restauracionistas. Finda a Guerra, reiterou a orientação, aconselhando o apoio activo a Sidónio, até que os trabalhos da Conferência de Paz estivessem concluídos. E a maioria dos próprios sidonistas respondeu ameaçadoramente à sugestão restauracionista, afirmando que «isso seria trair a obra do morto».
No dia seguinte ao da indigitação do novo chefe do Executivo, João Tamagnini Barbosa dirigiu-se a um quartel onde estavam reunidos muitos comandantes e chefes militares. Sobre as candidaturas promovidas que não conseguiam consenso suficiente, Tamagnini lançou o nome de Canto e Castro, escolhido na madrugada anterior para chefiar o Governo. Perante a aceitação quase unânime que o nome colhera, foi convocado o Executivo e Tamagnini informou os governantes da sua iniciativa; o nome de Canto e Castro concitava o apoio da guarnição de Lisboa. A 16 de Dezembro de 1918, a Câmara dos Deputados, com a hesitação dos congressistas monárquicos que inviabilizaram o primeiro escrutínio por falta de quórum, acaba por eleger o almirante, confesso monárquico, Presidente da República com 137 votos em 138. Na eleição foi usado o princípio colegial parlamentar estipulado na Constituição de 1911 e não o sufrágio universal do presidencialismo de Sidónio Pais, o que deixou irritados, desde logo, muitos dos seus seguidores mais puristas.
Uma vez empossado, o velho lobo-do-mar convidou então o católico unionista Nunes da Ponte para formar governo mas a recusa deste levou-o a encarregar o capitão João Tamagnini Barbosa de assumir a chefia de um Executivo pretensamente ecléctico, dito «centrista». Depois de um periclitante processo de formação, irá tomar posse a 23 de Dezembro. Será constituído por Egas Moniz, nos Estrangeiros; Malheiro Reimão, nas Finanças; Luís Alberto Corte Real, na Guerra; José Sousa e Faro, na Marinha; Afonso de Melo, na Justiça; Baptista Coelho, nas Colónias; Alfredo de Magalhães, na Instrução; Fernandes de Oliveira, na Agricultura; Azevedo Neves, no Comércio; Forbes Bessa, no Trabalho e Cruz Azevedo, nos Abastecimentos. Azevedo Neves assumirá igualmente, a título interino, o expediente dos Negócios Estrangeiros, já que Egas Moniz se encontrava ausente em Paris, na Conferência de Paz.
O Exército, a fim de manter o seu estatuto como «reserva moral da Nação», evitara sempre enredar-se em associações de classe. Durante os executivos de influência afonsista fora particularmente desgastado, com a política e o poder das associações secretas a imiscuírem-se sistematicamente nas suas fileiras, semeando a anarquia, a indisciplina e o descrédito. Sob a concepção demagógica dos «democráticos», qualquer oficial ou sargento podia ser transferido de unidade ou guarnição, por uma simples denúncia anónima, vinda por carta ou publicada em qualquer um dos jornais da «cor». O que importava era o peso político do conteúdo, veiculado muitas vezes por uma rede secreta de denúncia. Não havia nem inquérito nem processo disciplinar; a capa de «conveniência de serviço» bastava para o afastamento ou emprateleiramento dos visados.
Ainda com o «presidente-rei» em funções, os militares que apoiavam o regime, preocupados com o clima de crescente agitação social e porventura inspirados num recente modelo organizacional implementado por camaradas espanhóis, tinham resolvido cerrar fileiras criando nas guarnições núcleos semiclandestinos, paralelos à hierarquia normal. Quando a «questão presidencialista» dividira o núcleo de apoiantes de Sidónio, muitos militares pressentiram então o declínio do sidonismo. Apercebendo-se do risco que o eventual desaparecimento de Sidónio representava para o recém-esboçado regime pró-presidencialista e temendo um regresso ao caótico estado de coisas que o dezembrismo tentara corrigir, resolvem criar agremiações de autodefesa que denominaram por «juntas militares». Provavelmente com o conhecimento de Sidónio, que à medida que sentia o desmoronar da sua República Nova se encostava cada vez mais ao Exército, o projecto «anti demagógico das juntas», apresentava como missão «a defesa do brio militar, evitar a política nas fileiras, combater o democratismo, quer na sua essência niveladora, inimiga de toda a hierarquia, base essencial de um bom exército, quer na sua acção prática, em Portugal, como bando organizado para o latrocínio e para o crime», como afirma o jovem sidonista Henrique Galvão.
Tinham-se constituído Juntas Militares no Porto e em Lisboa, seguindo- se as de Braga, Coimbra e Évora. Nas duas primeiras, as mais significativas, assumiram a chefia os coronéis Artur Silva Ramos e João de Almeida, respectivamente. As Juntas, compostas essencialmente por republicanos moderados, nada tinham de restauracionistas mas a verdade é que o peso dos oficiais monárquicos, readmitidos e reintegrados durante o consulado sidonista, sendo muitos deles prestigiados combatentes «africanos», era cada vez maior, tendo em conta o abstruso cenário político deixado pela morte súbita do «cônsul».
A 18 de Dezembro de 1918, procurando influenciar o processo de formação do Executivo pós-sidonista, a Junta Militar do Norte tinha feito uma proclamação ao país em que exigia «a intensificação do combate à demagogia através de um Governo com capacidade e energia», um «governo de força», dir-se-á. A 23 de Dezembro, no mesmo dia em que o novo Executivo assume funções, João de Almeida, o «herói dos Dembos», alarmado com os sinais de retorno à «República Velha» da Constituição de 1911, intenta um putsch militar em Lisboa. Várias unidades sublevadas deslocaram-se para Monsanto a fim de procurar dominar Lisboa, pela força da artilharia. Infantaria, sob o comando do tenente-coronel Gonçalo Pimenta de Castro, não adere, assim como Engenharia. Dias depois, as forças que davam sinais de sublevação tentam ocupar a mítica Rotunda, ponto de convergência de todas as revoluções. Tamagnini pede então ao general Garcia Rosado que convença Almeida a desistir do seu intento revolucionário, fazendo-lhe ver que, naquelas circunstâncias, Londres era totalmente contrária à iniciativa. Confiando na análise e na palavra de Tamagnini e de Rosado, João de Almeida, em nome dos mais altos interesses nacionais, cede e manda abortar o golpe, retirando-se para Aveiro onde comandava Cavalaria 8. Mas também a Junta do Norte reagira mal ao elenco do novo Governo, tendo enviado um ultimato a Tamagnini para o forçar a proceder de imediato a uma remodelação, exigindo a saída de Egas Moniz e Afonso de Melo Pinto Veloso.
Procurando ganhar tempo o chefe do Executivo promete mudanças mas prepara a contenção, enviando dois emissários ao Norte. Para procurar apaziguar as Juntas locais e tomar o pulso à situação, seguiu para Braga o professor Alfredo Machado e para Viseu o general Abel Hipólito. Ambos viriam a ser capturados pelo capitão António de Sá Guimarães, a mando da Junta do Norte. Não tendo querido participar no golpe monárquico que se anunciava, o general Ilharco que regressava ao Porto para reassumir o comando da 3ª Divisão, voltou para Lisboa e informou o Executivo do que se preparava. O Governo perante a eclosão da insurreição enviou o general Garcia Rosado ao Porto mas sem sucesso. Igual fim teve a démarche do próprio ministro da Guerra, tenente-coronel Silva Basto que também foi ao Norte procurar demover os oficiais revoltosos.
A 3 de Janeiro, o coronel de Infantaria (na reserva) Augusto César Ribeiro de Carvalho, conhecido antimonárquico, é nomeado pelo Executivo para comandante da Divisão sediada em Vila Real (a 6ª), uma óbvia ponta de lança cravada no flanco do poder militar da Junta do Norte. Esta envia uma coluna militar comandada pelo major Alberto de Meneses Macedo (Margaride) que após algumas escaramuças sangrentas com as forças da Divisão de Ribeiro de Carvalho, leva o Governo a ceder e a proceder à prometida remodelação. E como observaria Cunha Leal a inquietude e o «irredentismo monarquizante» ameaçavam fazer «soçobrar a congregação sidonista do republicanismo moderado com o religiosismo católico».
Se Tamagnini apaziguara aparentemente a sua direita, indispôs agora a esquerda republicana que via demasiada complacência do Executivo para com os agitadores monarquizantes. E assim, no lado retintamente republicano, à esquerda, eclodem por reacção, entre 10 e 15 de Janeiro de 1919, em Lisboa, na Covilhã e em Santarém, revoltas aparentemente favoráveis ao retorno à República Velha, com o intuito declarado de «acabar com a influência monárquica junto do Poder e depurar o exército». A 12, o Governo fará circular um comunicado em que dá nota da existência de «prenúncios de um movimento revolucionário capitaneado por democráticos e secundado por agentes bolchevistas». Em Lisboa, a 10, a tentativa de tomada do Castelo de São Jorge por parte de um grupo de civis armados e enquadrados por militares chefiados pelo alferes Rui Ribeiro, fora debelada pelo tenente-coronel Schiappa de Azevedo, comandante da praça, tendo tido igual sorte a revolta no Arsenal, com marinheiros e civis chefiados por Prestes Salgueiro. Na Covilhã a insurreição fora travada perante a ameaça das forças militares da Guarda e a coluna improvisada por Teófilo Duarte em Castelo Branco. O ainda governador de Cabo Verde tinha sido imediatamente alertado para o que se passava quando se encontrava em gozo de férias na sua casa de Oledo, Idanha-a-Nova. O movimento revolucionário, que parece que já vinha a ser organizado desde o consulado sidonista, actuava sob a direcção de uma Junta Revolucionária formada por Álvaro de Castro («democrático»), Couceiro da Costa e António Granjo (evolucionistas), Jaime de Morais e Francisco da Cunha Leal (ex-sidonistas ou ex-dezembristas) e Augusto Dias da Silva (socialista). Os coronéis Ramos de Miranda, Jaime de Figueiredo e António Maria Baptista e o capitão Filipe Tribolet eram a sua face mais visível entre os militares no activo.
A 12, a revolta eclode em Santarém, tendo Cunha Leal detido o coronel Pedrosa, comandante da praça militar que se encontrava acamado. Os sublevados insistiam na demissão do Executivo de Tamagnini Barbosa e aventavam o nome de Nunes da Ponte para formar governo, em que o ex- comandante do CEP, o general Tamagnini de Abreu deveria ser o ministro da Guerra. Note-se que este oficial comandava então as tropas enviadas de Coimbra pelo Governo para dominar a revolta em Santarém e, na prática, pela sua patente, todas as restantes forças. As outras colunas que convergiam sobre Santarém, enviadas de Lisboa e do Alentejo, eram comandadas, respectivamente, pelo coronel Andrade Velez e pelo tenente-coronel Luizelo Godinho. À medida que as tropas progrediam em direcção a Santarém, conquistando os postos avançados dos rebeldes, começou a sentir-se como que um marasmo operacional, manipulado aparentemente pelo ministro do Interior, Malheiro Reimão, que, como se virá a confirmar mais tarde, estava feito com os revoltosos. Também as forças das Juntas Militares dezembristas, actuando autonomamente sob o comando do coronel Silva Ramos, ameaçavam tomar a cidade escalabitana. Mas seria a chamada «coluna negra» do sidonista republicano Teófilo Duarte, vinda da Covilhã depois de ter submetido a rebelião local, a conseguir a rendição incondicional dos revoltosos, no dia 16, depois de uma entrevista com os seus enviados, o coronel Jaime de Figueiredo, o tenente aviador Almeida Pinheiro e o capitão Filipe Tribolet.
A forma pouco ortodoxa como Duarte resolvera a questão e permitira a fuga de Cunha Leal e de Álvaro de Castro, entre outros, foi motivo de forte crítica quer da parte do ministro da Guerra quer da Junta do Norte. Mas Tamagnini defendê-lo-ia publicamente, acrescentando que entre os revoltosos havia seguramente «muitos elementos absolutamente dedicados ao regime» que, «por desconhecimento dos factos, se tinham lamentavelmente precipitado, nessa triste aventura de Santarém».
Perante a clara ameaça de regresso à «mórbida ditadura dos democráticos», grande número de monárquicos, anteriormente apoiantes tácitos de Sidónio, tinham começado a deslocar-se para o Porto, onde a Junta Militar, que a 3 de Janeiro se declarara representante da herança sidonista, lhes era favorável. Um deles foi Paiva Couceiro, entretanto amnistiado e regressado a Lisboa. A 19, depois da «pacificação» de Santarém, regressava ao Porto a coluna de Silva Ramos, a primeira a ser «dispensada» da participação nas operações de pacificação pelo Governo. Na bagagem, os seus elementos traziam rumores de que o Executivo de Tamagnini, o próprio e pelo menos alguns dos seus ministros, até teria sabido dos preparativos que tinham levado às sublevações revolucionárias. A suspeita era, aliás, mais que evidente. Tamagnini, sem grandes qualidades políticas, era useiro e vezeiro em explorar a ansiedade das posições contraditórias, abafando alternadamente a pressão rebelde de uma facção com a ajuda da outra, para atenuar de seguida as consequências vitoriosas da sua aliada de circunstância; aparentemente, fazia-o mais por «habilidade» do que por assumido maquiavelismo.
Os monárquicos, por seu lado, conspiravam activamente com medo que a situação lhes rebentasse nas mãos. Mas sentem necessidade de ter consigo o «beneplácito» do lugar-tenente do rei, Ornellas. Este, a 14 de Janeiro, subscrevera um memorando preparado pelo integralista Hipólito Raposo, onde apusera a sua concordância à preparação de «um movimento militar de carácter monárquico» com um expressivo «Go on. Palavras d’el-Rei!», contestando, no entanto, a ideia de plebiscito do regime. Confortados com este apoio, que decidira muitos hesitantes, inquietos perante o perigo latente de regresso à «demagogia», os conjurados do Norte levaram as tropas regressadas de Santarém, e inúmeros civis, a precipitar a rebelião e a proclamar nesse mesmo dia 19 a Monarquia do Norte. Luís de Magalhães, filho primogénito (legítimo) do tribuno José Estêvão e «ministro dos Estrangeiros» durante aquele efémero episódio da história dos primeiros dez anos da República, afirmaria mais tarde: «Morto Sidónio que devíamos fazer? Cruzar os braços e permitir a vitória e a revindicta do jacobinismo ressurgido? […] O único procedimento lógico e digno dos monárquicos e a forma de manterem os compromissos tomados para com Sidónio era defender a ordem pela maneira que, segundo a sua consciência, melhor a garantisse. […] – isto é , restaurar a Monarquia».
Para liderar o movimento, Silva Ramos convidara Henrique de Paiva Couceiro. A situação de «excepção», uma verdadeira guerra civil, irá subsistir até 17 de Fevereiro, já com José Relvas como chefe do Executivo. Para garantir o poder executivo da situação revolucionária, criaram um Governo a que chamaram Junta Governativa do Reino. Sob a chefia de Paiva Couceiro, a Junta Governativa do Reino era constituída por Luís Coelho de Magalhães, António Sollari Allegro, Pedro Falcão de Azevedo e Bourbon, Júlio Girão de Morais Sarmento e pelo coronel Artur da Silva Ramos.
Para Couceiro era «o tudo ou nada, o agora ou nunca»; impaciente, recusara os prudentes conselhos do integralista António Sardinha para adiar por algum tempo a insurreição a fim de garantirem a coordenação com as forças de Lisboa. E continua a insistir ingenuamente, como em 1911 e 1912, na concretização de um plebiscito referendário para o regime. Ao fazê-lo, contrariava as orientações de D. Manuel para quem o sufrágio seria a negação dos fundamentos da Monarquia que deveria apenas ressurgir como uma causa nacional, como uma aspiração tendencialmente colectiva a aclamar por sobre os facciosismos das díspares visões ideológicas. Mas a experiência vivida nos últimos anos da monarquia «vacinara» a população quanto à possibilidade de regresso a esse regime, cuja memória não permitia que fizesse sombra redentora à república. A esmagadora maioria do povo partilhava, na melhor das hipóteses, de um sentimento de indiferença. Não era a questão do regime que mais a preocupava mas sim a ausência de esperança num futuro melhor.
Os portugueses tinham consciência do estado calamitoso em que os sucessivos governos demagógicos tinham deixado as contas do Estado. Em grande parte intuíam ser necessário mão firme capaz de pôr fim aos desmandos e ao regabofe do sistema dos «democráticos». A questão estava em como gerir esse desiderato minimizando ao mesmo tempo os custos da concomitante crise social. Aparentemente, os dezembristas não tinham sido capazes de resolver o problema a contento, fosse pelos adversos condicionalismos criados pelas circunstâncias internacionais, fosse pela curta duração da gestão de Sidónio. Para já, o povo nortenho parecia regozijar-se com a reimplantação da monarquia e a Junta Governativa dominava praticamente todo o Norte. Com excepção do enclave de Chaves, a norte do eixo Aveiro (exclusive) – Viseu – Vilar Formoso, por toda a parte ondeava a bandeira azul e branca da Carta.
Em Aveiro, João de Almeida que Couceiro incluíra como subscritor da sua proclamação, e que deveria ser o responsável militar pelo Centro, «borrega» dizendo que apesar de ser monárquico se sentia ligado, por dever de lealdade, ao compromisso dezembrista; e protesta contra a utilização não autorizada do seu nome. O Governo procura dialogar e seguem para o Porto o ministro da Guerra e o alferes Sidónio Bessa Pais, filho do presidente assassinado, entre outras personalidades. Mas a situação era irreversível e nada mais lhes restou que regressar a Lisboa sem serem importunados pelos sublevados. Na capital, ignorando os detalhes do que efectivamente se passava a Norte, a coordenadora das Juntas forçava as principais unidades a um pacto que garantisse a neutralidade dos militares, com o objectivo de «reprimir a demagogia e rechaçar qualquer assalto» a qualquer das unidades «abraçadas» no convénio ajustado. Propunham-se assegurar a segurança do Presidente da República e a do Governo e impedir a passagem pela capital de forças estranhas à sua guarnição.
Tamagnini Barbosa chamou Ayres d’Ornellas que se mostrou genuinamente estupefacto com a precipitação dos acontecimentos e lhe reiterou as indicações recentes de D. Manuel sobre o comportamento político que os monárquicos deviam assumir. O Governo, face à posição assumida pelas principais unidades militares que se remetiam à neutralidade, decretou o estado de sítio e, insolitamente, abriu inscrições no ministério da Guerra para os oficiais, do seu próprio exército (!?), que se quisessem voluntariar para defender o regime republicano. Quase todas as facções republicanas e sindicalistas se apressaram a manifestar o apoio activo ao Executivo mas queriam, como contrapartida, que fossem libertados os presos políticos e sociais, incluindo os oficiais envolvidos na recente revolta de Santarém. Tal veio a acontecer por cedência do poder mas a situação ameaçava já extravasar o controlo do Governo.
A 21 de Janeiro de 1919, milhares de republicanos manifestam-se em frente ao ministério do Interior. No dia seguinte, concentram-se no Campo Pequeno, onde lhes são distribuídas armas e lhes foi ministrada instrução militar básica, sob a coordenação do major André Brun, entretanto libertado. Formigas-brancas «democráticos» e mesmo muitos formigas-pretas «machadistas» e lacraus «sidonistas» de véspera estão agora do mesmo lado da barricada. Não podemos esquecer que o sidonismo fora veementemente republicano; por isso não é de estranhar que a grande maioria dos seus simpatizantes, agora órfãos e desorientados, integrassem em massa a causa da defesa da República. E que muitos opositores e conspiradores contra o sidonismo que se encontravam até aí sob prisão fossem, na ocasião, postos em liberdade por um Executivo desorientado e tíbio. Perante este cenário, na noite do dia 22, tendo sabido da agressão e prisão de vários correligionários e temendo serem apanhados desprevenidos, muitos simpatizantes monárquicos resolvem antecipar-se e procuram refúgio em vários quartéis com fama de «realistas», nomeadamente Cavalaria 2 (Lanceiros), comandada por Silveira Ramos.
Perante a pressão, Ayres d’Ornellas resolve-se a assumir o comando e a quebrar a comprometedora indecisão. Para evitar choques equívocos com outras unidades, as forças monárquicas resolvem concentrar-se em Monsanto para onde seguem. João de Azevedo Coutinho, que no plano de Couceiro deveria ser o comandante militar do Sul, é agregado como Adjunto à chefia de Ornellas. O tenente-coronel Álvaro César de Mendonça, o último ex-ministro (secretário-de-Estado) da Guerra de Sidónio, é nomeado chefe do Estado- Maior, enquanto a Artilharia fica sob o comando do major Almeida Teixeira, a Infantaria, do tenente-coronel Francelino Pimentel e a Cavalaria, do coronel Silveira Ramos. Os civis e alguns militares desgarrados, uma amálgama de constitucionais, integralistas e legitimistas, ficam sob as ordens do ex-capitão Júlio da Costa Pinto que havia sido preso e expulso do Exército em Novembro de 1917, acusado de distribuir o panfleto O Rol da Desonra. E a 23, algumas forças dos regimentos aquartelados na Calçada da Ajuda ocuparam de facto o perímetro exterior do forte de Monsanto, declarando a rebelião e erguendo a flâmula monárquica (constitucional) no seu pináculo. O primeiro objectivo operacional foi garantir a posse da estação da TSF, fundamental para as comunicações com o Porto; e foi lá que foi instalado um improvisado quartel-general. Dispunham de artilharia mas, ao procurar forçar o levantamento de mais unidades, acabaram por dispersar as suas forças, passando a apresentar vulnerabilidades acrescidas, nomeadamente no que dizia respeito às linhas logísticas do abastecimento de munições e víveres.
Contra eles, um remodelado Governo de Tamagnini Barbosa enviou o tenente-coronel Ernesto Vieira da Rocha, um maçon próximo dos «democráticos», que teve dificuldade em arranjar tropas já que a maioria das unidades se mantinha neutra, justificando o facto com o «pacto» que havia assinado o Corpo de Tropas de Lisboa. Manipulado pelos «democráticos» que procuravam a retaliação contra o sidonismo e que diziam que não se podia confiar totalmente na tropa, o Executivo mandou improvisar batalhões com voluntários civis, designadamente os reunidos no Campo Pequeno. Mas também outros, formados em grande parte por presos entretanto libertados, enquadrados por alguns contingentes do Exército, da GNR do capitão Eduardo da Cruz Nunes, da Guarda Fiscal do capitão Jaime Ribeiro de Menezes, e especialmente por marinheiros. E seria a pressão destes, capitaneados pelo comandante-de-fragata Afonso de Cerqueira, tenaz opositor a Sidónio, que conseguiria, no fim do dia 24, que os sublevados de Lisboa, em grande desvantagem numérica, se rendessem às forças pró-governamentais. Afonso Júlio de Cerqueira, com grande sangue frio, conseguiu salvar a vida a Ornellas, a Júlio da Costa Pinto e a Azevedo Coutinho, seu antigo comandante de África, quando uma multidão enfurecida investia para os linchar. A resistência dos monárquicos fora heróica mas o facto de se terem remetido à defesa em vez de terem procurado tomar a iniciativa, atacando e capturando as autoridades do poder, limitou fatalmente as suas hipóteses. Depois de um ímpeto inicial que apanhara desprevenidos os republicanos, as vulnerabilidades criadas pela impossibilidade de se abastecerem de munições e víveres levaram à claudicação do dispositivo militar de Monsanto. No lado contrário, as forças do sector da Ajuda, comandado pelo coronel António Maria Baptista, viram o seu poder de fogo multiplicado pela «traição ao pacto», por parte de Gonçalo Pimenta de Castro que lhes forneceu abundante e moderno equipamento militar, retirado de Infantaria 16.
A vitória de Monsanto não seria, contudo, suficiente para acalmar os espíritos republicanos; perante a persistência e resistência da Monarquia do Norte, o presidente Canto e Castro, pressionado pelos políticos do pré- sidonismo, dispensa Tamagnini Barbosa. Tal como o conde Julião fora ultrapassado pelos guerreiros muçulmanos de Tarik que fora desassossegar ao Norte de África também agora João Tamagnini via o seu estimado balancé da gestão do poder ser irreparavelmente desequilibrado pelas forças anti dezembristas em que se apoiara. O seu exercício como chefe do Governo durara apenas 35 dias. Monsanto, mais do que uma tentativa restauracionista, fora uma peripatética aventura de reacção, por antecipação, a uma eventual alvorada esquerdista. A maioria dos monárquicos tinha-se sentido bem com Sidónio; sem ele era forçoso que se antecipassem ao mais que certo regresso ao ghetto cívico. E tentaram a sorte… mas perderam. Em Monsanto ficaram enterrados o sidonismo e a sua República Nova. A «Velha», acalentando a desforra sem rebuço, espreitava já à esquina.
A agitação das ruas e, claro, o sucesso criaram o momentum para uma viragem mais à esquerda e a imposição de um Governo mais vincadamente republicano, a roçar de novo o jacobinismo. Um conjunto de personalidades republicanas, preocupadas com o que se passava no Norte, empurra José Relvas para chefe de um novo Executivo que ficará para a história, apesar de ter durado apenas dois meses, como o «ministério da desforra». Canto e Castro dará posse ao novo elenco ministerial, concebido como de «concentração republicana», a 27 de Janeiro. O assunto mais premente com que tinham de se confrontar era a resolução do levantamento monárquico ainda subsistente e para isso havia que conquistar e submeter o Porto. Para comandar todas as operações é nomeado o general Alberto da Costa Ilharco que fixa inicialmente o seu quartel-general no Entroncamento. Um dos seus primeiros actos de comando será recriminar o comandante da Divisão Naval, o almirante Borja de Araújo, pelo despropositado bombardeamento naval de Viana do Castelo por orientação de Leote do Rego, sem ter tido em atenção a população civil.
Tropas governamentais e destacamentos mistos de civis e soldados desgarrados avançam para o Norte à conquista da «Traulitânia», designação que os republicanos davam à Monarquia do Norte. Como sublinha Jaime Nogueira Pinto, «os republicanos tinham os recursos do poder, os meios financeiros, os abastecimentos, o porto de Lisboa, os navios, os aviões». A Sul, por todo o lado os «democráticos» retomavam o controlo da «rua» e as suas turbas cevavam o seu ódio e a sua fúria revanchista nos retratos de Sidónio. Pedia-se a libertação do «herói» José Júlio da Costa. O Parlamento ainda de maioria dezembrista contemplava prudentemente os desacatos sociais e concentrava a sua atenção no saneamento dos monárquicos. Mas Teófilo Duarte, algemado à memória de Sidónio, insurgiu-se contra o que dizia ser a «escabrosa situação do regresso dos democráticos à sua gamela». Com a sua «coluna negra» percorre a sua Beira Baixa natal e toma a Guarda, fazendo o Governo temer que possa atacar, pela retaguarda, as forças que se precipitavam sobre a Monarquia do Norte pela Beira Alta, comandadas por Abel Hipólito, nomeado comandante da Divisão de Coimbra. Convidado em boa-fé a apresentar-se no Ministério em Lisboa, com garantias de liberdade, é afinal detido à traição e assim ficará durante mais de seis meses. João de Almeida que, como comandante militar de Aveiro, se recusara a aderir à Monarquia do Norte é chamado a Lisboa e igualmente preso depois de exposto à fúria da populaça. O capitão Jorge Velosa Camacho, velho companheiro de Couceiro nas campanhas de África e seu imediato nas incursões de 1911-12, mas que vivia desde há muito retirado das lides políticas em Serpa, foi assassinado no Terreiro do Paço, em Fevereiro de 1919, depois de aí ter sido atraído, convencido que ia ser amnistiado e reintegrado no Exército. Um tiro na cabeça, pelas costas, disparado por um ex-polícia e funcionário público ligado à Carbonária, um tal Augusto Correia Simões, abateu para sempre o herói ultramarino nascido no Funchal. Voltara o «Terror democrático».
No Norte, conhecida pelos jornais a queda de Monsanto, as forças monarquizantes iam-se desagregando, sofrendo reveses sobre reveses, e o seu perímetro defensivo começava a apertar-se, pressionado pela dimensão incomensuravelmente maior dos recursos militares do Executivo de Lisboa. Muitos dos sublevados eram simpatizantes integralistas que, embora conscientes da vacuidade da iniciativa, tinham colaborado com Couceiro, o «condestável» da causa restauracionista ou, pelo menos, da necessidade democrática de validar a mudança de regime. E após o evidente insucesso da sublevação já anteviam, na melhor das hipóteses, o caminho do exílio que para muitos seria uma reedição. Sem notícias seguras do Sul, António Telles de Vasconcelos procura montar uma linha de comunicações através de Espanha. Para garantir postos de etapas e nós regionais, Joaquim de Almeida Braga vai para Tui, Luís Telles de Vasconcelos para Cáceres e António Sardinha para Badajoz.
A população e alguns notáveis, neutrais ou mesmo apoiantes dos sublevados, à medida que o tempo ia passando, começavam a ceder à persuasiva acção dos opositores e à erosão da impotência. Dilacerados por díspares convicções de base, acentuadas pela mitificação propagandística dos maus-tratos a detidos por parte dos «trauliteiros», uma espécie de milícia «realista» paralela, muitos acabaram a colaborar no processo de desintegração que levaria ao fim da aventura alegadamente restauracionista. A reacção endógena à Monarquia do Norte e a resistência aos poderes instituídos no Porto começou a ser organizada por um agrupamento maçónico, o Triângulo Vermelho Português. Os seus elementos rapidamente buscaram legitimidade para a contestação, arregimentando a colaboração de estrangeiros, nomeadamente brasileiros, franceses, suíços, americanos e italianos. O cabecilha militar da conjura era o coronel Alfredo Djalme Martins de Azevedo, antigo tenente do 31 de Janeiro de 1891. A «questão dos maus-tratos» aos detidos, e sobretudo as indignas condições em que se encontravam os seus camaradas de armas, calou fundo na solidariedade castrense. E levou alguns oficiais da Guarda Real, a unidade que os conspiradores achavam ser a mais vulnerável à sua propaganda, a enviar um diktat a Couceiro, exigindo a demissão de José Baldaque Guimarães a quem acusavam de ser o responsável pelos desmandos. Guimarães comandava a Polícia, tutelada pelo capitão Sollari Allegro mas que se encontrava então em missão de serviço em Espanha.
Um surpreendido e chocado «regente do Norte», anuiu à reclamação e demitiu Baldaque Guimarães, mandando apurar responsabilidades sobre os factos apresentados. De seguida, para procurar colmatar as fendas que o perímetro defensivo do território à sua guarda apresentava face aos sucessivos reveses militares, sai do Porto para a defesa da linha do Vouga. Sem um chefe da polícia competente a conter a conspiração republicana, com o efeito demolidor da iminente derrota militar a convidar ao abandono da causa quando não a «virar a casaca», as coisas no Porto ameaçavam implodir. Nesse afã desagregador salientou-se o capitão João Sarmento Pimentel, dizendo-se inconformado com o tratamento, que considerava incorrecto, dos seus camaradas republicanos detidos. E, perante o apertar do cerco das forças do Governo de Lisboa, com a esmagadora maioria das forças monárquicas envolvida nos combates na «fronteira das áreas libertadas», antes mesmo que se concretizasse a rendição militar, a bandeira azul e branca foi arreada na retaguarda, no Porto, às mãos da Guarda Real, de novo designada Guarda Republicana. Antes, os presos do Aljube tinham sido libertados e armados por ordem do coronel Djalme de Azevedo, o novo comandante militar do Porto, ao mesmo tempo que José Domingues dos Santos se apossava do cargo de governador civil.
A resistência monárquica foi esparsa e, a 13 de Fevereiro, os ministros da Junta Governativa presentes no Porto resolveram entregar-se à clemência do adversário, assumindo pessoalmente as suas responsabilidades. O início das represálias e das revindictas foi imediato. Os membros da Junta e os mais destacados dirigentes monárquicos foram detidos e, depois de passeados pelas ruas centrais do Porto, expostos à canalhice da turba, deram entrada no Aljube, onde iriam sofrer espancamentos frequentes. Vila Real, defendida por Jaime Carvalho da Silva, cairá a 17. Dois dias depois, um mês após a proclamação da Monarquia, estaria tudo terminado. Couceiro foi impedido pelos companheiros de ir ao Porto para se entregar às autoridades republicanas e assumir as responsabilidades pela sublevação. Entrou na clandestinidade e conseguiu escapar do país pela fronteira da Galiza. Os majores Jaime Carvalho da Silva e Joaquim Rangel saíram por Soutelinho e pelo Portelo.
O go on de Ornellas fora afinal um equívoco de consequências trágicas e D. Manuel não se coibirá de recriminar cruelmente Paiva Couceiro a quem via como «um joguete nas mãos dos governos espanhóis, interessados na nossa desordem interna». Paiva Couceiro parecia ter ficado definitivamente isolado. Vituperado pelo monarca exilado, acabrunhado pela aparente indiferença dos portugueses face à questão do regime, Couceiro resignar-se-ia ao implícito veredicto do povo que não parecera disposto a bater-se para substituir o chapéu de coco do Presidente da República, embora eleito por uma oligarquia, pela coroa hereditária dos Bragança. D. Manuel, enfatuado, apostava tudo na «via legal» sem se aperceber de que as regras do jogo democrático estavam desde há muito viciadas. E chegou a afirmar que «se não tivesse sido a revolta do Porto, dentro de seis meses, a Monarquia estaria restaurada, até por pedido dos próprios republicanos!». No fim de contas, D. Manuel II, centrado no seu exílio britânico, mais não fazia do que reflectir a dúplice opinião do Foreign Office.
Mas não só a Inglaterra negara apoio à causa restauracionista; Espanha, malgrado algumas compreensivas simpatias «realistas» particulares, corrigira o comportamento ambíguo de 1911-12 e fora implacável no seu zelo repressor sobre as actividades dos exilados portugueses. As relações dos sublevados com Espanha haviam sido sempre tensas e difíceis; Luís de Magalhães, responsável pelas Relações Externas da Junta Governativa deslocou-se a Madrid, a 20 de Janeiro, sem no entanto ter tido qualquer encontro com o rei ou com Romanones. A fronteira era obviamente difícil de controlar em absoluto mas a vigilância de Madrid impedira os conspiradores monárquicos de adquirir armas e mesmo abastecimentos nas quantidades necessárias. O conde de Romanones, que então presidia ao Executivo espanhol, depois de em pleno Congreso ter manifestado garantias de que tudo se faria para impedir a acção dos insurrectos portugueses, fez chegar ao seu ministro de Estado um telegrama, em que lhe pedia que reafirmasse a Lisboa o seguinte: «Pode V.E. reiterar esse Governo [o português] que o de S. M. está decidido impedir a todo o transe que se ajude movimento insurreccional contra instituições vigentes em Portugal, a partir do território espanhol […]. Faça-o pois presente ao Senhor Ministro interino dos Negócios Estrangeiros, expressando-lhe que pode ter plena confiança lealdade no Governo espanhol.»
Dando corpo às instruções do seu Governo, o representante espanhol que entretanto sucedera a López Muñoz, Alejandro Padilla, não se poupava a esforços no sentido de proclamar aos «sete ventos», que «o governo de Madrid tem dado instruções severas às autoridades da fronteira, no sentido de prenderem todos os portugueses que intervenham em manobras contra a República…».
Informadas por Lisboa, de que os insurrectos pretendiam montar uma rede de apoio a intentos incursionistas a partir de localidades raianas, as autoridades espanholas prontamente tinham mandado prender os seus cabecilhas, nomeadamente Sardinha e Telles de Vasconcelos. Teixeira Gomes, cerca de um mês após o esmagamento da Monarquia do Norte, referindo-se aos monárquicos exilados em Espanha, corroborará essas declarações dizendo: «parece-me que há vontade de nos desembaraçar da sua vizinhança e vontade também de livrar a Espanha da sua presença».
A chave que nos permite perceber a determinação de Romanones pode estar nas declarações que fez, mais tarde, a António Ferro. Durante a vigência da ditadura primoriverista, o dirigente político liberal, quando o jornalista o questiona sobre «se é partidário de uma política de aproximação a Portugal», dir-lhe-á: «Eu tenho ideias bem definidas a esse respeito. Os governos dos dois países devem ter, como uma das suas preocupações maiores, a aproximação dos dois povos. É uma política indispensável ao progresso das duas pátrias. É preciso, porém, que não haja mal entendidos. Eu não admito o iberismo. Nem quero ouvir falar em tal: as duas nações precisam da sua independência completa para marcharem livremente, para seguirem o seu destino. A Espanha, para se aproximar de Portugal, nem precisa saber se lá está a monarquia, se está a república, se está qualquer outra forma de governo».
A 20 de Fevereiro de 1919 já não havia forças monárquicas armadas em Portugal. Estavam definitivamente subjugadas e enterradas as tentativas sérias, manu militari, de restauração da monarquia. Mas não foram apenas a inexperiência governativa nem a insuficiência organizacional as verdadeiras causas da débacle monárquica. Nem tão pouco a vilanização propagandística do tratamento dos presos que perduraria como mito para sempre; afinal os «trauliteiros» provavelmente nem chegaram aos calcanhares do que os formigas e as outras milícias populares fizeram depois. O problema é que o movimento restauracionista careceu sempre de dois factores fundamentais aos desígnios de sucesso: o consentimento claro de D. Manuel II para a sublevação de fundo e o apoio e reconhecimento externos.