Reportagem em Barcelona, Espanha
Quando sai do elevador, apoiada na sua bengala, o reflexo de María é de voltar imediatamente para trás. Sem entender bem o que ali tem à frente, só vê polícias com o dobro da altura dela e ouve manifestantes que gritam: “Fora fascistas dos nossos bairros!”.
Os gritos enchem o pequeno átrio de entrada do Centro Cívico de Sant Martí, em Barcelona, sítio onde esta mulher de 84 anos, por onde passa sempre a rotina de um dia normal de María. É ali que vai à tarde, para se encontrar com amigos e outros reformados, com os quais passa a tarde em convívio e a jogar. Mas este não é um dia normal: este é o dia em que o Vox, partido de extrema-direita e que surge em terceiro nas sondagens em Espanha, faz o seu primeiro e único comício em Barcelona na campanha para as eleições de domingo.
https://youtu.be/TeYT-C9k0HY
“Eu só quero sair, mas como é que posso?”, pergunta María a um elemento dos Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, que tem a cara tapada, com um passa-montanhas. É debaixo daquele tecido negro que a sua boca se mexe para dizer: “Pois, como pode ver, agora é impossível”.
Tudo isto já se fazia adivinhar. Na manhã de quarta-feira, horas antes do comício, as paredes brancas da fachada do Centro Cívico Sant Martí foram pintadas a spray com frases como “Acorda, vizinha, Franco está de volta”, “Vox mata!” e também “Não ao fascismo!”. Mas María nem chegou a vê-las quando entrou no centro. Por essa altura, já elas tinham sido tapadas por uma nova demão de tinta branca, a pedido da equipa de campanha do Vox.
María divide-se entre um sentimento de desconforto e de irritação. Além dos manifestantes que vieram protestar contra o Vox (dos quais muitos fazem parte dos CDR, os Comités de Defesa da República, grupos radicais e da extrema-esquerda inependentista que estarão por trás de algumas das manifestações mais violentas deste último mês), o átrio também está tomado por militantes daquele partido de extrema-direita.
“Desculpe lá, mas eu tenho de me ir embora!”, grita ao mesmo polícia. “Deixe-me passar, abra caminho, por favor.” Este cumpre as ordens que recebe da anciã — e, num raro momento de consenso entre os dois extremos que se digladiam entre gritos e palavras de ordem naquele átrio, todos se desviam e deixam passar María. Pouco depois deste momento, o lado do Vox desmobiliza. Já são 19h30 e o comício, com entrada reservada para jornalistas (nem todos, já que os meios do grupo Prisa estão a ser alvos de um boicote pelo Vox, devido a um editorial do El País) e simpatizantes, está prestes a começar.
O deputado negro, os emojis a preto e branco e a Catalunha
Quando o cabeça de lista do Vox por Barcelona, Ignacio Garriga, começa a falar, ainda dá para ouvir o bruaá que, dentro desta sala com cerca de 200 metros quadrados, sobra dos gritos que os manifestantes anti-Vox soltam lá de fora.
“Peço que deixem entrar as pessoas que estejam lá fora e que querem assistir ao nosso comício e, se houver cadeiras, tragam-nas para eles se sentarem”, diz. “E se não houver cadeiras, então os jovens que dêem os seus lugares aos mais velhos.”
Só este pedido já lhe vale um forte aplauso. Ignacio Garriga está a jogar em casa, embora não o pareça. Nascido em Sant Cugat del Vallès, na Catalunha, Garriga é filho de uma emigrante da Guiné Equatorial e de um catalão — e por isso mesmo é uma das poucas caras que não são brancas nesta sala. “Se o Vox fosse racista ou tivesse alguma coisa contra os estrangeiros, eu não poderia estar aqui”, diz amiúde o deputado que, por força de o seu avô materno ser de nacionalidade portuguesa, ter os apelidos Vaz de Conceicao.
Quando sobe ao palco, Ignacio Garriga faz um discurso curto. Não está nas melhores condições: na véspera teve um debate com os principais candidatos na TV3, a televisão pública catalã, depois de ter passado o dia a vomitar. Esta quarta-feira está melhor, mas ainda não totalmente refeito. Talvez por isso, o seu discurso renega apartes e centra-se num guião curto.
“Jamais daremos um passo atrás. E se dermos um passo atrás, será para dar cinco para a frente. Que abandonem a vossa persistência de nos calarem de nos tirarem a nossa liberdade”, disse, entre aplausos.
Além de Ignacio Garriga, também outros dois homens do Vox discursaram — e também arrancaram vários aplausos. Primeiro falou o eurodeputado do Vox Jorge Buxadé Villalba. E depois foi a vez do deputado Iván Espinosa de los Monteros.
Cada um à sua maneira, tocaram nalguns dos temas que têm marcado o discurso do Vox desde que, no final de 2018, o partido saltou para uma posição de destaque ao eleger deputados regionais na Andaluzia. E apesar de fugirem a temas que valeram ao Vox uma imagem muito pouco consensual — como a oposição ao casamento homossexual ou uma crítica contínua à imigração —, os oradores continuaram a tocar nalguns bestsellers do partido.
Jorge Buxadé Villalba falava do “consenso progre”, utilizando o termo pejorativo que, no Vox e não só, se utiliza como referência aos políticos progressistas e seus apoiantes.
“Há quem me pergunte o que é que é o consenso progre”, começou. “Eu digo que não é fácil defini-lo. Mas toda a gente que usa a expressão sabe muito bem o que é que é o consenso progre!”, disse, arrancando um aplauso à plateia. E logo dá um exemplo: os emojis.
“Há emojis para caras de alegria, tristeza, há os beijos para a mulher, os corações para as meninas, as bandeiras”, começa por dizer. E continua: “E depois há os emojis do consenso progre: rapaz com rapariga, rapariga com rapariga, rapaz com rapaz, o avô com o neto, o neto com a avó. E agora os próximos emojis até vão ser todos sem cor, a preto e branco!”. É nesta parte que audiência faz sons de reprovação, à medida que o eurodeputado continua: “Se for alto, baixo trabalhador ou se quer viver de subsídios permanentemente, tanto faz. É isto que a esquerda quer: que sejamos todos iguais, mas, claro, igualando tudo por baixo, nunca pelo esforço, pelo mérito ou pela capacidade!”. Esta última frase foi dita sob um crescendo de aplausos.
Iván Espinosa falou também da História de Espanha, motivado por uma mensagem que recebeu de uma das suas filhas, com 11 anos, que lhe dizia que a professora lhes tinha ensinado que “os espanhóis foram para a América matar os índios”.
“Isto não foi assim, pois não, pai? Manda-me informação para eu amanhã partilhar!”, ter-lhe-á dito a criança, cujas palavras o pai partilha com orgulho. “É que lá em casa somos todos do Vox”, disse, arrancando sorrisos, já que é sabido que é casado com a também deputada do Vox Rocío Monasterio San Martín. E sobre o tema dos índios, o deputado acrescentou: “Na América, os espanhóis conviveram, criaram cidades, universidades, e os indígenas ainda lá estão”. Mais um aplauso.
Aplausos, pois, não faltaram. Mas foi num tema em que eles surgiram ainda mais fortes, ainda mais audíveis e convictos: a Catalunha. Não importa em qual dos três discursos, tão pouco o timing da intervenção ou o tom em que era feito. Nesta sala, sempre que os intervenientes sublinharam a principal proposta do Vox para as autonomias (suspendê-las, acabando assim com governos e parlamentos regionais), a plateia levantava-se em aplausos de “Viva Espanha!” e de “Todos para a prisão!”.
Nunca as sondagens deram tantos votos ao Vox como o fazem nas vésperas das eleições de domingo. A poucos dias da ida às urnas, há sondagens que já colocam o partido de Santiago Abascal em terceiro lugar, com praticamente 15% dos votos e um grupo parlamentar a rondar os 50 deputados.
Nem sempre foi assim nos últimos tempos. Nas eleições gerais o Vox ter tido 10,26% dos votos, apenas um mês depois, nas europeias, o partido de extrema-direita ficou-se pelos 6,2%. O caminho parecia ser o de um certo esvaziar do Vox, perante a recuperação do PP. Foi isso que demonstraram as sondagens nacionais em julho, mês em que falharam as duas votações de investidura de Pedro Sánchez, e se começou a falar de eleições antecipadas. E foi assim também nos meses seguintes.
Até que, a 14 de outubro, saiu a sentença dos políticos catalães e, num abrir e fechar de olhos, a violência tomou de assalto as ruas da Catalunha. De repente, cada vez mais espanhóis começaram a achar que o Vox seria a melhor solução para a Catalunha.
O Vox cresce pela Catalunha e apesar dos catalães
“É verdade que o Vox cresce em grande parte por causa da Catalunha, porque foi a Catalunha que evidenciou o fracasso do sistema de autonomias em Espanha”, diz ao Observador o terceiro candidato da lista do Vox em Barcelona, Juan Carlos Segura, numa entrevista minutos antes do comício ter começado. “Isto começou pela Catalunha, mas se não fosse a Catalunha era noutro sítio. E se não fosse pela independência, era pela corrupção, má governação, pelas leis comunitárias que contradizem as nacionais…”, enumera o jurista, sentado numa das mesas do café do Centro Cívico de Sant Martí.
Existe, porém, um senão na subida do Vox por causa da Catalunha — é que, ao que indicam as sondagens, os catalães não querem aquilo que o Vox defende para as autonomias. De acordo com uma sondagem publicada em julho pelo Centro de Estudos de Opinião da Catalunha, apenas 7,8% dos catalães queriam o fim da autonomia da região. Assim, embora o Vox cresça a nível nacional muito em parte por causa da Catalunha, é bem possível que nesta região os seus resultados sejam mais baixos do que no resto do país. Um paradoxo, portanto.
“Nós, os políticos, estamos cá precisamente para mudar a opinião pública e estas percentagens”, responde Juan Carlos Segura a estes números. “O facto é que com o sistema autonómico, é provável que se produza uma independência real”, diz, referindo a lei eleitoral que dá mais votos às zonas remotas (mais independentistas) que às cidades (mais unionistas, sobretudo no caso de Barcelona), tal como o facto a educação e a saúde serem competências autonómicas.
Juan Carlos Segura tem uma trajetória de ativismo na direita e na extrema-direita já longa, além de atividade política. Em 1984, de acordo com o jornal esquerdista La Marea, foi condenado a um ano de prisão por ter feito parte de um grupo da extrema-direita, Frente Nacional da Juventude, que atirou para dentro de uma sede da UCD (partido do ex-Presidente de Governo Adolfo Suárez) pedras, garrafas, cocktails molotov e uma lata de gasolina, causando desta forma um incêndio.
Oficial reservista das Forças Armadas, Juan Carlos Segura trabalhou também durante 25 anos para o Partido Popular, do qual foi secretário jurídico. No final de contas, saiu.
“Perdi a fé no PP e no seu projeto, porque o PP assume o discurso das esquerdas em temas de leis de género, violência doméstica, no tema do aborto da eutanásia…”, enumera. “Ou seja, o PP já tem todo o pacto ideológico da esquerda.”
Mãe do PP, filho do Vox. Uma família de direita senta-se para falar das eleições espanholas
Enquanto Juan Carlos Segura fala, do lado de fora das janelas do café, um grupo de jovens dos CDR chega perto do vidro e começa a bater nele, de forma a chamar-lhe a atenção. Assim que a conseguem, uma rapariga por volta dos 20 anos levanta-lhe o dedo do meio. “Toma, ó espanhol!”, ouve-se lá de fora. Juan Carlos Segura ri-se, recostado na cadeira. E mais se ri quando, lá de fora, a rapariga vira as costas e alça o rabo na sua direção. “Pois aqui estão os verdadeiros fascistas”, diz.
“Pim, pam, pum, que não fique nem um!”
É como se não tivessem parado. Da mesma maneira que gritavam “Fora fascistas dos nossos bairros!” antes do comício, quando ele chegou ao fim os mesmos membros dos CDR e outros manifestantes ali continuavam entoando as mesmas palavras de ordem.
É com eles que Ana, apoiante do Vox de 66 anos, dá de caras assim que sai porta fora. O marido está ao lado e já vai despachado para se ir embora, mas ela insiste em ir até ao corrimão que separa os pró e os anti-Vox. Ali chegada, alça a bandeira de Espanha que leva na mão e agita-a perante as suas caras. Em menos de nada, uma manifestantes, de lenço amarelo ao pescoço, rouba-lhe a bandeira. Esta é prontamente pisada no chão com afã.
Depois deste episódio, Ana volta para dentro do espaço do comício do Vox, já com o espaço a esvaziar. “Mas filhos de Franco o quê?”, lança a mulher de 66 anos. “Eu dantes até votava no PSOE! Se eles soubessem”, continua Ana. Diz estar “completamente farta desta gente toda”. E para se explicar recorre à sua biografia, que resume em três pinceladas.
“Eu nasci na Andaluzia e vim para cá com os meus pais quando ainda tinha 2 anos. Ou seja, cresci aqui, foi aqui que me formei e fiz gente. Mas esta gente aqui faz-me sentir todos os dias como se eu fosse uma merda só porque não sou catalã”, diz. Esse sentimento é o que mais guarda dos tempos em que trabalhava como cozinheira numa escola pública. Conta deixou de trabalhar ali porque se recusava a falar catalão.
Ana já votou no PSOE e na sua filial catalã, o PSC, tal como também já pôs a cruzinha no PP e no Ciudadanos. Agora, diz, é no Vox que vota: “Posso até não concordar com tudo, mas eles para mim são a escolha certa. Neste momento, só eles é que podem ter mão na Catalunha”.
Aos poucos, a sala vai esvaziando. Cada deputado do Vox que sai faz-se acompanhar por uma escolta de seguranças privados, Mossos d’Esquadra e também câmaras de televisão. Assim que se apercebem deste movimento, os CDR seguem-nos de imediato até uma carrinha cinzenta, à qual os membros do Vox sobem para dali saírem.
“Pim, pam, pum, que não fique nem um!”, gritam os manifestantes, quando vêm que Ignacio Garriga está a sair.
Entre estes, está Raúl Romero, estudante de 22 anos e simpatizante da CUP, partido de extrema-esquerda e independentista. Alto e entroncando, o seu perfil parece ainda mais largo por ter uma bandeira nas costas. É a tricolor, isto é, a bandeira da Segunda República de Espanha.
“O Vox é racista, machista, xenófobo, não se deve permitir que façam atos políticos destes. Isto é de extrema-direita. Na Alemanha não podem existir partidos nazis, porque é que nós haveríamos de aceitar partidos nazis em Espanha também?”, lança.
“Eles têm de ser ilegalizados. Há leis contra o machismo, contra a homofobia e contra o racismo. E eles defendem tudo isso. Então que se proíba”, continua. Sobre o facto de o cabeça de lista do Vox em Barcelona ser filho de uma imigrante e negro, Raúl Romero responde que “também há mulheres machistas”. Porém, admite: “É algo inesperado num partido destes, isso é. Não me parece algo lógico, não é normal. Nem sei se ele se dá conta de que está num partido que no fundo vai contra os direitos dele”.
Para Raúl, o problema não é o facto de o Vox não querer a independência da Catalunha. “O problema é o resto”, diz. “Afinal, há partidos que são unionistas e não são nada disso”, continua. Nestes, inclui o Unidas Podemos e o PSOE (ambos mais à esquerda), mas não aceita a inclusão do Ciudadanos nem do PP (os dois mais à direita).
Estes são debates que está habituado a ter em casa: os seus pais, com os quais ainda vive, são os dois unionistas. “Falamos uns com os outros sem problema, desde uma posição de respeito. Não me passa pela cabeça chatear-me com alguém porque discordamos em política”, diz.
Mas isso é, no fundo, aquilo que ele está a fazer em frente ao Centro Cívico de Sant Martí neste dia de comício do Vox. A esta ideia, Raúl responde prontamente: “Era o que faltava! Há linhas vermelhas e o Vox é uma delas”.