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A 15 de abril de 1945, com a guerra na Europa à beira do fim, Salazar escreveu uma carta a Alfredo Pimenta (intelectual monárquico e germanófilo). Nesta missiva, ciente dos problemas políticos, e outros, que o fim da guerra traria ao presidente do Conselho, ao governo por si liderado e ao Estado Novo, afirmava: “Há que vencer as dificuldades presentes sem comprometer o futuro. As pessoas mesmo que não mudem de ideias quem pode garantir que não mudem de posição? Eu desejaria não fazer nem uma coisa nem outra coisa. Vamos porém a ver o que nos vem de fora e como pode atravessar-se a crise sem retroceder. Será isso possível?”
Meses mais tarde, numa carta sem data enviada ao mesmo destinatário, mas que terá sido escrita e enviada perto do fim do mês de outubro, Salazar voltava a analisar o impacto do fim da guerra nas opções políticas do seu governo. Fazia-o, em primeiro lugar, num contexto em que a vitória das democracias ocidentais e do comunismo soviético criara grande apreensão nas elites do salazarismo. Em segundo lugar, quando a imposição dos termos da vitória no pós-guerra pelas potências vitoriosas (EUA, URSS e Reino Unido) se tornara numa realidade e num problema incontornáveis para o governo de Lisboa, pelo menos temporariamente, tendo Salazar acabado por se sentir forçado, por exemplo, a introduzir alterações à Constituição e a convocar eleições antecipadas para a Assembleia Nacional (eleições às quais, e pela primeira vez desde 1934, listas da oposição podiam concorrer). Por último, Salazar dava mostras de pretender continuar no poder, não fugindo às contrariedades.
Por isso, nesta missiva de finais de outubro de 1945, evocava aquela que seria a real, umas vezes, mas apenas desejada, a maior parte das vezes, “intransigência com que nos recusamos [no governo] a tratar com potências estrangeiras o que convém ou não convém à nossa vida interna”. No entanto, e de modo que anos mais tarde pareceria surpreendente, Salazar alertou para o facto da Espanha não só possuir “um pouco de caráter que nós não temos;” mas ser, acima de tudo, “[…] mais independente do que nós podemos ser (basta-lhe não ter colónias) [itálico meu], de modo que a pressão exterior consolida os elementos de ordem à volta do generalíssimo, enquanto que em Portugal uma descompostura [destaque no original] pública dada ao regime teria por efeito desagregar todos os elementos e marcando o fim da atual situação muito provavelmente. A conclusão é que tem de evitar-se cuidadosamente as censuras ao regime português que entraram na moda em virtude daquele mesmo princípio da não intervenção na vida interna dos Estados proclamado pelos acusadores… se pudermos fazê-lo sem comprometer a solidez do regime é ótimo, sobretudo porque trabalhamos em ambiente de pura liberdade e independência […].” Daí que Salazar insistisse na necessidade de vir a ser posto em prática o princípio segundo o qual Portugal teria de se colocar, nos dois ou três anos que se seguiriam ao fim da guerra, “numa situação de não desafiar o mundo, pois que o mundo, com exceção da Península e de pouco mais, está entregue às forças da desordem, umas aparentes outras subterrâneas.”
Estas afirmações feitas por Salazar em correspondência privada que trocou com Alfredo Pimenta em abril e outubro de 1945, servem para demonstrar e recordar que o chefe do governo, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, mas também depois do fim desta, não só estava consciente de que o mundo tinha mudado; que tinha mudado contra os interesses do regime vigente em Portugal desde 1933; mas também, e sobretudo, que Salazar estava disposto fazer aquilo que estivesse ao seu alcance para que a política portuguesa não fosse beliscada, ou fosse minimamente beliscada, em primeiro lugar, pelas mudanças decorrentes das circunstâncias em que a guerra terminara, e em segundo lugar, pela emergência e eventual consolidação de uma nova ordem internacional (ainda indefinida entre 1945 e 1947), tanto no campo político, como nos domínios económico-financeiro, ideológico e, inclusivamente, moral.
Finalmente, Salazar reconhecia a fragilidade externa de Portugal, especialmente na nova conjuntura internacional, defendendo por isso que o governo e o regime podiam, e deviam, ter uma presença e uma participação na política internacional que se caracterizasse pela discrição (ainda que essa discrição fosse sustentada pela maior firmeza e sentido estratégico), mas também que o facto de Portugal ser um pequeno país, governando um importante império colonial, o fazia correr mais e maiores riscos, nomeadamente o de ver beliscada a sua autonomia, não pelo facto da existência do império ser um mal em si mesmo, mas porque fora e continuaria a ser, como sucedera desde a formação inicial no século XV, alvo de interesse e de interferência externa, como, aliás, Marcello Caetano, que viria a suceder-lhe na presidência do Conselho, recordou num estudo publicado pela primeira vez em 1963 [Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos (História Duma Batalha: Da Liberdade dos Mares às Nações Unidas)].
O que “devia ter acontecido” e o que “factualmente aconteceu”
Se não se tiverem presentes as coordenadas da política portuguesa tal como definida por Salazar e pelos seus colaboradores ainda antes do fim da guerra, e que tentei esboçar no ponto anterior recorrendo às palavras do então presidente do Conselho, e coordenadas essas que se foram adaptando à realidade em função de desafios tanto internos como externos, dificilmente qualquer exercício de narração e interpretação da história diplomática, da política externa e da política colonial do Estado Novo no pós-Segunda Guerra Mundial poderá ser pouco mais do que um exercício sobre aquilo que devia ter acontecido e não sobre aquilo que factualmente aconteceu. Ou seja, o regime e a sua liderança tinha as suas idiossincrasias e são essas idiossincrasias que devem narradas e interpretadas.
Por exemplo, e à época, diversos observadores não consideravam possível, já para não dizer desejável, que os dois regimes autoritários ibéricos sobrevivessem e, sobretudo, existissem ao longo de cerca de três décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial. Daqui decorre que muitas vezes, inúmeros estudiosos e curiosos da história do Estado Novo, ou do franquismo, caem no erro de se referirem à história daqueles dois regimes mais na perspetiva de tentarem perceber e explicar porque é que os acontecimentos deveriam ter ocorrido de outro modo, do que como efetivamente ocorreram. Orgulhosamente Sós. A Diplomacia Portuguesa em Guerra (1962-1974), da autoria do embaixador Bernardo Futscher Pereira, é um desses casos. O facto de o autor se colocar, enquanto autor, na posição de crítico sistemático de todas opções ou decisões político-diplomáticas adotadas, já para não falar das decisões também tomadas no plano militar, impede-o de perceber e interpretar aquilo que foi a política externa, a diplomacia, mas ainda, e sobretudo, a política colonial, ou ultramarina, do Portugal estado novista, tanto até ao fim do longo “consulado” de Salazar, como durante os cerca de cinco anos e meio em Marcello Caetano foi presidente do Conselho.
Ora do meu ponto de vista, o terceiro e mais recente volume da trilogia sobre a “diplomacia” do Salazarismo, que o embaixador Bernardo Futscher Pereira escreveu e as Publicações Dom Quixote acabam de editar, padece desta fragilidade que muito o diminui e que não era de todo evidente, por exemplo, no primeiro volume da série intitulado A Diplomacia de Salazar (1932-1939) [2012]. Em vez de tentar perceber e explicar Salazar e o salazarismo, mas também Marcello Caetano e o marcelismo, narrando aquilo que foram, como foram e porque foram, para depois eventualmente os “julgar”, o embaixador Bernardo Futscher Pereira insere-se numa corrente historiográfica muito canónica que mais do que tentar perceber e explicar o Estado Novo, o julga e condena.
No caso do livro aqui analisado, está-se claramente diante de uma crónica que narrando, muitas vezes com utilidade para o leitor, aquilo que aconteceu, sucumbe à tentação de criticar, nem sequer subtilmente, o que até poderia ser o caso pelo facto de o autor ser um diplomata profissional, aquilo que aconteceu, nomeadamente quando narra e interpreta a generalidade das pequenas e das grandes decisões políticas tomadas e, sobretudo, não tomadas por Salazar e Caetano, como se estas, sem que seja produzido qualquer exercício exaustivo de história contra factual, estivessem condenadas ao sucesso por ser essa a visão e a vontade do autor, como de muitos outros cronistas ou historiadores que se têm dedicado a escrever sobre a história da política externa e colonial portuguesa do Estado Novo, sobretudo na era das descolonizações (1947-1980).
Com este tipo de abordagem, e repito, aquilo que se faz não é tentar perceber, explicar, interpretar, mas condenar as opções tomadas, propondo ainda, implícita ou explicitamente alternativas políticas àquilo que foi feito, no caso vertente, entre 1962 e 1974, como se essas alternativas fossem não só exequíveis, mas, e sobretudo, tivessem os resultados desejados. Ou seja, uma descolonização do chamado “ultramar” português em termos indubitavelmente suaves, pacíficos, tanto para todas as populações que viviam nos territórios “ultramarinos”, como para as populações da “metrópole”, já para não falar na concórdia que certamente grassaria entre as forças militares que combateram, inúmeras vezes com enorme violência entre si, em Angola, na então Guiné portuguesa e em Moçambique.
Uma questão de perguntas e respostas
Mas avancemos por partes. Logo na “Apresentação” do livro, Bernardo Futscher Pereira afirma que “Para os ideólogos do Estado Novo [não diz quais], formados no culto da Nação, proteger esse legado sagrado tornara-se a razão de ser do regime. Alienar qualquer parte do que consideravam ser o território nacional parecia-lhes um sacrilégio. Para esses, o regime representava a própria emanação da pátria e do seu destino histórico. Para os outros era apenas a ‘situação’, que garantia a tranquila existência das elites e a preservação dos seus privilégios.” E depois prossegue: “A defesa das colónias e a defesa do regime tornaram-se consubstanciais. Não era possível desistir de uma sem abandonar a outra.” E se “Salazar considerava impensável abdicar de qualquer parcela do território nacional [o que não é verdade, uma vez que várias vezes contemplou e admitiu em público e em privado essa possibilidade],” Marcello Caetano, por seu lado, “quando chegou ao poder em 1968,” garante-nos Bernardo Futscher Pereira, “teve a oportunidade de procurar uma saída para uma situação de impasse que já se tornara notória.” (pp. 20-21)
O problema destas afirmações, e de muitas outras do mesmo teor espalhadas ao longo do livro, é que nenhuma contribui para explicar os factos e os argumentos que realmente deram forma e conteúdo à política externa e, sobretudo, à política colonial durante o Estado Novo e, no caso do livro aqui em análise, no período compreendido entre janeiro de 1962 e abril de 1974. Em nenhum momento, por exemplo, se explica o que é que se entende por “imobilismo”, ou “teimosia”, quando de fala de Salazar e das suas decisões, ou não decisões, políticas, e sobretudo, porque é que Salazar e grande parte das elites do salazarismo eram imobilistas ou teimosas. Qual era a visão do mundo de Salazar? E qual era o papel que Salazar atribuía a Portugal nessa sua visão. Mas, e sobretudo, porque a sua visão do mundo era “colonialista” e que modelo de “colonialismo” propunha e com que prazo de validade. O mesmo tipo de perguntas e de respostas estão ausentes quando Bernardo Futscher Pereira se refere às hesitações, às não decisões ou às contradições que terão marcado politicamente a passagem de Marcello Caetano pela presidência do Conselho.
No entanto, e como o autor reconhece que o império colonial e o colonialismo desempenharam um papel muito importante na vida pública portuguesa desde, pelo menos (digo eu), 1890 (i.e., durante os últimos 20 anos da Monarquia Constitucional, durante os quase dezasseis anos de vigência da I República e dos praticamente sete anos que durou da Ditadura Militar, batizada Ditadura Nacional em 1928), o que é que nos permite concluir (como faz o autor) que outro regime político português, democrático, e que tivesse as rédeas da governação na chamada era das descolonizações, teria seguido uma política colonial com o rumo desejado, e várias vezes manifestado, pelo embaixador Futscher Pereira ao longo do seu livro? Talvez Bernardo Futscher Pereira não se recorde que democracias como a francesa, a britânica ou a holandesa recorreram ao uso da força militar e policial (em muitos casos após a ocorrência de episódios de violência idênticos aqueles que deram início às insurreições armadas em Angola, na Guiné portuguesa e em Moçambique), por períodos mais ou menos prolongados, antes de reconhecerem, tantas vezes contrariados, o direito à autodeterminação e independência de vários “povos e territórios coloniais.”
Não querendo, nem podendo ser exaustivo, recordo que os britânicos lutaram, morrendo e matando, na Palestina, em Adem, no Chipre, no Quénia ou ainda naquilo que veio a ser a Malásia, antes de reconhecerem o direito à autodeterminação e independência daqueles territórios. E já nada digo sobre a Costa do Ouro ou o Tanganica, independências difíceis e também marcadas por episódios violentos, ou ainda sobre o facto de, após a Segunda Guerra Mundial, os britânicos terem contemplado a possibilidade de tornarem a Líbia (a Cirenaica e Tripolitânia italianas] num território sob “tutela” do Reino Unido ao abrigo das disposições previstas na Carta das Nações Unidas mas, e sobretudo, das considerações político-militares em torno daquela que seria evolução e a mudança do posicionamento estratégico britânico no Mediterrâneo e no Próximo e Médio Oriente. A IV República Francesa, instaurada depois da libertação da França em 1944, enfrentou a insurreição armada nas suas colónias da Indochina e da Argélia (a questão argelina, aliás, não só provocou a queda da IV República como alimentou a ideia de aquela poder ser substituída, com vantagem, por uma ditadura militar ou com apoio militar), mas ainda no Madagáscar, na Tunísia e em Marrocos.
Finalmente, os Países Baixos tentaram, e em parte conseguiram, restaurar o seu poder colonial nas Índias Orientais após o fim da Segunda Guerra Mundial e já depois de nacionalistas indonésios terem declarado, unilateralmente, em 1945, a sua independência, facto que levou à criação da República da Indonésia. No entanto, esta proclamação, alimentada em boa parte pelos japoneses poucos meses antes de perceberem que iriam ser derrotados na guerra em curso, só foi aceite pelo governo holandês em 1949, cerca de quatro anos depois de o início de uma guerra de “libertação nacional”. Embora muitos não o saibamos, a verdade é que as autoridades holandesas se opuseram da forma mais determinada que lhes foi possível a um reconhecimento imediato e incondicional, entre 1945 e 1949, da independência dos territórios e das populações que durante séculos tinham constituído aquela que era de longe a maior, a mais populosa e a mais rica colónia dos Países Baixos: as Índias Orientais. Neste contexto, tem de ser ainda sublinhado o facto de, só em 1962, ter sido transferida a Nova Guiné neerlandesa para soberania da República Indonésia, muito mais por vontade e pressão indonésia e norte-americana, do que por desejo das populações locais ou das autoridades coloniais. O Suriname, por outro lado, território holandês situado na América do Sul, só se tornou independente em 1975, após a ocorrência de episódios cíclicos de violência civil e militar que davam conta mais das divisões existentes entre os naturais daquela colónia, do que entre esses mesmos naturais e as autoridades coloniais.
Visto isto, e ainda que seja possível criticar numa crónica da diplomacia portuguesa, entre 1962 e 1974, as opções políticas prosseguidas e propor decisões alternativas aquelas que foram adotadas, e Bernardo Futscher Pereira fá-lo repetidamente, na verdade essas críticas são intelectualmente inconsequentes se não se perceber e explicar as razões, ou a racionalidade, por detrás do caminho seguido. Por exemplo, sendo verdade que a política externa e colonial portuguesa, a partir de 1961, teve grandes custos em termos de vidas humanas perdidas, tanto de civis, como de militares, tanto do lado do exército colonial como dos “movimentos de libertação”, não deixa de ser verdade que, após as independências terem sido reconhecidas, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, as guerras civis, as ações de guerrilha, os ataques terroristas, a repressão política mais ou menos indiscriminada, além da regressão ocorrida em termos económicos e sociais sofrida pela generalidade das populações que continuaram a residir naqueles territórios, passaram uma fatura muito mais pesada do que aquela que foi paga pelos seus habitantes entre 1961 e 1974.
Poder-se-á dizer que se as independências tivessem sido reconhecidas ainda no tempo de Salazar, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique não teriam mergulhado em situações de violência extrema e de destruição de estruturas sociais, políticas e económicas, como sucedeu após as independências reconhecidas e outorgadas em 1974 e 1975. No entanto, uma das razões que pesou na chamada intransigência negocial portuguesa com representantes dos “movimentos de libertação” foi o reconhecimento de que os programas e as agendas políticas do MPLA, da FNLA, da FRELIMO ou do PAIGC, levariam à destruição, ou pelo menos à regressão, das sociedades angolana, guineense e moçambicana. Paralelamente, a forte possibilidade de expulsão das populações europeias ou de origem europeia após as independências, além da previsível destruição e ou confisco de propriedade, constituíam-se em fatores a ter em consideração quando se considerava a possibilidade de abrir uma negociação com os movimentos armados que combatiam a soberania portuguesa na África Continental.
Mas além de os movimentos de libertação não merecerem segundo as autoridades portuguesas, entre janeiro de 1962 e abril de 1974, um mínimo de confiança moral e política para se tornarem interlocutores válidos numa negociação que conduzisse à autodeterminação e independência dos três territórios citados, a evolução (ou degradação) da situação política em África, desde o momento em que começaram a ser outorgadas independências a antigas colónias europeias, não só confirmou as suspeitas das autoridades portuguesas em relação aos chamados movimentos de libertação que tinham pegado em armas para pôr fim ao colonialismo português, mas, e sobretudo, justificava o adiamento da independência das colónias portuguesas até ao momento em que estivessem criadas condições consideradas minimamente aceitáveis para que tais independências pudessem ser outorgadas.
Ou seja, foi este raciocínio e foram estas circunstâncias, entre outras, como a ideia acarinhada por Salazar e, sobretudo, por Franco Nogueira, de que Portugal deixaria de conseguir sobreviver, de facto mas não necessariamente de jure, como Estado independente, caso deixasse de ter uma substancial dimensão ultramarina, ou que uma generosa e mesmo que prolongada ajuda económica e financeira a Portugal, a troco do abandono do império colonial, não resolveria o problema do atraso económico e social português, que para muitos era a razão do putativo imobilismo do Portugal salazarista e colonial na primeira metade da década de 1960.
Uma leitura feita da frente para trás e não de trás para frente
Há depois ao longo do livro, que de uma maneira geral narra de modo escorreito, ainda que pouco objetiva, os factos mais relevantes da política externa, da política colonial e da política de defesa durante os quase catorze anos finais do Estado Novo, considerações incompreensíveis. Por exemplo, a afirmação de que Marcello Caetano, ao chegar ao poder, em setembro de 1968, “não era um de Gaulle.” (p. 21) É óbvio que não era, não apenas por não ser militar, mas porque chegou ao poder num processo de transição e transmissão de poder relativamente tranquilo e muito institucional, e não como carrasco da IV República, usurpador e potencial chefe de uma ditadura, com origem e apoio dos militares, como sucedeu com o general gaulês em 1958. Neste contexto, Bernardo Futscher Pereira tece ainda considerações sobre a falta de legitimidade política de Marcello Caetano para aceder à presidência do Conselho.
Esta é uma afirmação incorreta, já que do ponto de vista do regime político em vigor e das suas regras constitucionais, essa legitimidade era incontestável. É verdade que do ponto de vista de uma democracia representativa, o Estado Novo não era legítimo. Porém, em Portugal, em 1968, nunca houvera uma democracia representativa assente no sufrágio universal, como por finais da década de 1960 e início da década de 1970, as democracias representativas eram uma raridade. Na Europa, desde logo, onde as democracias representativas conviviam com as democracias populares, mas também na Ásia, no continente africano e nas Américas do Sul e Central. Aliás, este facto remete-nos para uma questão que marca e atravessa a história da política externa, de defesa e colonial de Portugal entre, pelo menos, 1962 e 1974: as relações entre Portugal e os EUA.
Ao longo do livro, Bernardo Futscher Pereira liga as dificuldades no relacionamento bilateral à natureza colonial e autoritária do Portugal de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano. Nada mais errado. Ainda que estas duas realidades não fossem irrelevantes na forma como os EUA olhavam para Portugal e o avaliavam, na verdade nunca foram suficientes para tornar Portugal, com império até 1974, e sem império depois de 1975, num parceiro minimamente relevante para as sucessivas administrações norte-americanas, fossem elas democratas ou republicanas.
Por outro lado, e como sabemos, os EUA podiam apoiar incondicionalmente regimes moral e politicamente muito mais inconvenientes e comprometedores do que o Estado Novo, desde que esses regimes vigorassem em regiões às quais as administrações norte-americanas davam grande importância para defender os interesses dos EUA e/ou para enfrentar os seus inimigos quer no contexto global da Guerra Fria, quer dos confrontos regionais que despoletaram do Médio Oriente ao sudeste asiático, passando pelas Caraíbas e América Central e do Sul. Portugal, mesmo com um trunfo chamado Açores, um outro menor chamado Cabo Verde, e ainda com forte presença na África Austral, em algum momento conseguiu cativar a atenção e a solidariedade norte-americana. Portugal, com ou sem colónias, não era o Vietname do Sul, a Indonésia ou as Filipinas, como não era o Irão do Xá ou Israel. Finalmente, não tinha a relevância das ditaduras militares sul-americanas que apesar de muito mais violentas do que o salazarismo ou o marcelismo, não só foram deixadas ao abandono e ostracismo por Washington, como em alguns casos foram estimuladas e sustentadas por diversas administrações norte-americanas.
Esta falta de perspetiva internacional ou regional, mas sobretudo global, que atravessa todo o livro, é um dos seus maiores pontos fracos. Apesar de se tratar de uma história, segundo o título, da “diplomacia”, falta um enquadramento global da política externa e colonial portuguesa, da sua política de defesa, como falta, por exemplo, informação sobre a forma como a diplomacia portuguesa, por causa da questão colonial, foi evoluindo, em regiões do globo para as quais as guerras coloniais de Portugal em África tinham pouca ou nenhuma relevância, independentemente dos votos condenatórios de que Portugal foi alvo na ONU (fosse na Assembleia Geral, no Conselho de Segurança ou a Quarta Comissão). Ou seja, a política externa e a diplomacia de Portugal não se esgotaram na questão colonial. Basta recordar a criação e aprofundamento de laços políticos com países europeus e organizações europeias transnacionais como a EFTA e a CEE, ou a importância que tinha a pertença à OTAN num contexto de Guerra Fria e de crescente cooperação civil e militar no contexto daquele conflito. Também o auxílio dado por Portugal a rebeldes catangueses, à secessão do Biafra ou a grupos militares, ou paramilitares que procuraram derrubar ditadores e ditaduras no Gana, na Tanzânia ou nos dois Congos, ajudam a caracterizar uma política externa, e não apenas uma diplomacia, marcadas pelo inconformismo e por aquilo que hoje poderíamos caracterizar como espírito de iniciativa.
Termino este meu comentário a um livro que, apesar de ter várias limitações, merece ser lido com a maior atenção, fazendo uma observação sobre a questão da previsibilidade e inevitabilidade da queda do Estado Novo. Nos capítulos finais do livro, sobretudo naqueles que respeitam aos anos de 1970 a 1973, Bernardo Futscher Pereira insiste na ideia de que, vista a acumulação de erros políticos, fracassos militares, adversidades diplomáticas, a queda do Estado Novo era cada vez mais provável e, até, inevitável. O que Bernardo Futscher Pereira não explica é o facto de o regime que sucumbiu, ainda que não diretamente, às contrariedades, e foram muitas, surgidas nos três ou quatro primeiros anos da década de 1970, sobreviveu aos acontecimentos de 1961 (assalto ao Santa Maria, hostilidade norte-americana no plano interno, externo e colonial, uma tentativa de golpe militar, condenações na ONU, início da guerra em Angola e invasão e ocupação da Índia portuguesa pela União Indiana) que, globalmente, foram no mínimo tão adversos como os ocorridos onze ou doze anos mais tarde.
Na verdade, as adversidades que fizeram mossa no campo civil e militar português, tanto na “metrópole” como no “ultramar”, são sobrevalorizadas pelo autor pela simples razão de que durante a redação do seu Orgulhosamente Sós, e em especial dos capítulos finais, se torna evidente aquilo que é uma leitura e interpretação dos acontecimentos feita da frente para trás e não de trás para frente. Ou seja, Bernardo Futscher Pereira parece não se aperceber que pelo facto de conhecer, ao contrário dos contemporâneos, o desfecho da “história”, dessa informação fazer uso na construção narrativa sem grandes cuidados, diminui o rigor e a objetividade da sua análise.
Fernando Martins é historiador, professor na Universidade de Évora