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Desde 2 de maio que grande parte da indústria de Hollywood está paralisada. Foi nesse dia que a Writers Guild of America (WGA), sindicato que representa cerca de 11.500 argumentistas norte-americanos, convocou uma greve que se mantém desde então. Quase todos os guionistas dos EUA estão sem trabalhar desde o início do mês e isso está a afetar inúmeras produções. Tem havido gravações e projetos adiados, programas em direto suspensos e entrevistas canceladas porque os argumentistas também não estão a promover os trabalhos que escreveram para os grandes estúdios e plataformas de streaming.
O braço de ferro é com a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), organização que representa empresas como a Disney, Netflix, Paramount, Lionsgate, NBCUniversal, Sony Pictures, Warner Bros., Discovery, Amazon Studios ou a Apple Studios, entre outros grandes players do mercado. Os argumentistas exigem a revisão do modelo de remuneração, sobretudo aquele que está associado aos conteúdos distribuídos via streaming. Depois de longos meses de negociações tensas, as duas entidades chegaram a um impasse a 1 de maio, Dia Internacional do Trabalhador, quando terminava o acordo em vigor que definia um salário mínimo para estes profissionais.
Foi então que a WGA decidiu avançar com uma greve, a primeira do género desde 2007, que não tem fim à vista. Os guionistas — e muitos outros profissionais da indústria que se têm solidarizado — têm feito piquetes e organizado protestos à porta dos grandes estúdios e companhias, mostrando-se irredutíveis. Exigem ainda alguns benefícios específicos, como pensões próprias e fundos para cuidados de saúde, mas aquilo com que a AMPTP se comprometeu a aceitar está muito longe daquilo que é exigido. A WGA pede um aumento salarial na ordem dos 396 milhões de euros por ano para a classe profissional. A AMPTP só se compromete com o equivalente a 79 milhões de euros.
Precariedade e remuneração baixa
Em Portugal, a indústria do cinema e da televisão é completamente diferente, a começar pela escala. Aliás, serão poucos os argumentistas que vivam exclusivamente da sua prática. Mas o desejo de alcançar um maior reconhecimento e valorização do ofício é idêntico, como explica ao Observador o presidente da Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos (APAD), Artur Ribeiro.
“Apesar das diferenças de escala entre os dois países, muitas das reivindicações da WGA encontram eco deste lado do Atlântico. Algo que está a ser pedido nos EUA é os argumentistas terem direito a uma percentagem mais justa dos lucros e que seja mais proporcional ao sucesso da série ou filme que tenham desenvolvido e escrito — o que acontecia antes com os seus residuals, mas que com os streamers e o sistema de buyout que paga apenas uma quantia pelo guião sem depois redistribuir os lucros, deixou de haver. Em Portugal, esta é também uma reivindicação da APAD e que esperamos que a nova diretiva da União Europeia, que está em transposição para a nossa lei, possa vir a colmatar”, explica.
Pelo facto de Portugal ter um mercado bastante reduzido, os argumentistas enfrentam condições de trabalho que acarretam ainda mais constrangimentos, explica Artur Ribeiro. “Portugal tem um mercado incomparavelmente mais pequeno do que o americano, o que se reflete nos valores de produção e até no tempo que existe para o desenvolvimento dos produtos em que trabalhamos. Estas condicionantes levam muitas vezes a que as condições de trabalho não sejam ideais, pois são condicionadas por orçamentos e prazos esticados ao limite. Este é um desafio transversal à indústria e que tem sido colmatado por uma crescente profissionalização do nosso meio e pela nossa criatividade, mas existe ainda muito a fazer. A precariedade e a remuneração baixa leva a que a maior parte dos argumentistas não possa dedicar-se, com tempo e tranquilidade, a um projeto, acumulando muitas vezes trabalho — sejam vários projetos, se tiverem essa sorte, ou outros trabalhos, como dar aulas.”
Por outro lado, existe uma grande distinção entre a realidade portuguesa e norte-americana dos argumentistas, que está relacionada com os direitos de autor — o que faz com que uma greve por cá não funcionasse com a mesma lógica. “A WGA é um sindicato e nos EUA os argumentistas não têm direitos de autor: os direitos são totalmente de quem os contrata. Os argumentistas são regidos por leis laborais, não por um código de direitos de autor como em Portugal, e, por isso, podem fazer greve contra os ‘patrões’, neste caso a AMPTP. Em Portugal, com algumas exceções, os argumentistas fazem contratos de ‘cedência de direitos de autor’ para os produtores ou canais produzirem, exibirem e/ou distribuírem, mas têm sempre o seu direito moral de autor e os direitos conexos. Se houvesse greve em Portugal, isso só significava que o autor passaria a estar em incumprimento de contrato se não cumprisse com as datas de entrega do guião.”
Um questão de reconhecimento e visibilidade
Artur Ribeiro admite que a precariedade do setor “parece ser difícil de contornar pela natureza da atividade cinematográfica e audiovisual”, portanto acredita que “o que é necessário é garantir uma remuneração mais justa”. “Os valores por um guião deviam corresponder a um mínimo de 2% a 3% do orçamento, mas raras são as vezes que isso acontece em Portugal. E há casos em que se fica por 1% ou menos. Ou seja, a escrita do guião de uma série ou de um filme é muitas vezes, comparativamente, a função mais mal paga, mesmo se nenhuma outra existisse sem essa.”
Existem casos ainda mais graves, quando o pagamento a um argumentista fica pendente com base no facto de o projeto avançar ou não, uma fase do processo que já não diz respeito a estes criativos da escrita. “Muitas vezes é assumido que o trabalho de escrita é feito sem remuneração até que o produtor consiga — se conseguir — financiamento para o filme ou série. Que muitas vezes depende de um júri gostar do projeto e atribuir um subsídio, ou de um canal de televisão gostar da ideia e encomendar a série. Isto não acontece nas outras áreas. Ninguém pede a um arquiteto para lhe fazer um projeto para uma casa, na condição que depois lhe paga se arranjar dinheiro para construir a casa, caso o gestor do banco que concede o empréstimo gostar do desenho.”
Além disso, são muito raros os contratos em Portugal onde se prevê a distribuição de uma percentagem dos lucros. “Isto é algo que deveria ser regra e não exceção. Mesmo sabendo que em Portugal não temos um mercado que permita muita recuperação de investimento, com algumas exceções… Mas, como princípio, era bom que assim fosse. Felizmente, com a transposição da diretiva europeia dos direitos de autor, pelo menos no papel vai passar a ser obrigatório — veremos o que vai acontecer na prática.”
A APAD, que foi fundada em 1998 por vários profissionais do setor, “tem vindo a crescer e a mobilizar cada vez mais os argumentistas não só para a troca de informações e apoio como para a maior participação institucional e negocial na indústria ou arte”, explica Artur Ribeiro. “Por outro lado, queremos dar mais visibilidade aos argumentistas e insistir que se dê mais destaque e que sejam sempre referidos quando se fala de um filme ou série nos comunicados oficiais das produtoras, canais, instituições e nas listagens dos créditos e na promoção e divulgação das obras na comunicação social, onde muitas vezes são esquecidos.”
Em termos práticos, exemplifica, a APAD mantém um “diálogo constante” com o Ministério da Cultura, o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) e outras associações de produtores ou realizadores de cinema e televisão, “de forma a salvaguardar os interesses dos argumentistas e também criar condições para que estes possam criar em ambientes gratificantes e produtivos”.
“Acreditamos que é do interesse de todos e em última instância do bem maior da nossa cinematografia e audiovisual que os argumentistas possam trabalhar com condições, criar com liberdade e entusiasmo, mas também responsabilidade e, no geral, possam viver melhor, pois, como disse uma colega nossa: ‘Os argumentistas têm a paixão da escrita, mas também têm a paixão de pagar a renda e ter comida na mesa’”.
A inteligência artificial e a escrita de argumentos
O uso de ferramentas de inteligência artificial nas indústrias criativas tem sido cada vez mais debatido, à medida que a tecnologia evolui. Esta greve dos argumentistas nos EUA também aborda esse assunto. Uma das reivindicações mencionadas nalguns protestos defende que o uso de ferramentas como, por exemplo, o ChatGPT, só deve ser feito como utensílio de pesquisa ou para facilitar o processo de escrita de guiões — mas nunca para substituir por completo o papel de um argumentista.
Artur Ribeiro não se mostra particularmente preocupado com os avanços tecnológicos nesta área. “Como Jaron Lanier escreveu recentemente na The New Yorker, não existe ‘inteligência artificial’. É um software, ‘uma ferramenta, não uma criatura’. Um primeiro passo será conhecer a tecnologia e compreender que a qualidade dos conteúdos gerados por inteligência artificial depende das bases de dados que são extraídas de conteúdos produzidos por pessoas. Como reconhecer e compensar estes contributos é uma discussão que terá de ser encarada tanto nas suas ramificações profissionais, como éticas como legislativas”, defende.
“Mas quando se fala de inteligência artificial neste contexto, fala-se sobretudo de programas de ‘escrita’ que, como todos os que já experimentaram podem ter constatado, produzem resultados que são pouco mais do que banalidades e mesclas de clichés ou tentativas de juntar géneros de sucesso baseados em fórmulas repetitivas e populares, ou, na melhor das hipóteses, premissas absurdas. O que nos parece preocupante é que este pensamento reflita a orientação de quem financia e encomenda conteúdos, com a utilização dos algoritmos que hoje aparentemente ditam o que supostamente o ‘público’ quer ver e que os executivos usam para escolher a produção das próximas séries ou filmes. Decisões baseadas em estatísticas, em vez de na criatividade e originalidade da voz pessoal e única de um autor.”