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“Nos últimos 15 anos fiquei a ver os outros a contarem a minha história” é das primeiras frases do livro de Britney Spears. Muito se escreveu sobre a cantora mas poderão contar-se pelos dedos de uma mão (ou nem isso) as vezes em que foi ela a dar a sua versão. É o que faz na autobiografia que acaba de ser publicada, A Mulher que Há em Mim (em Portugal é editada pela Arena).
Só o fez depois de se ter libertado de uma tutela imposta pelo tribunal que durou 13 anos e ditou que o pai e um advogado controlavam tudo, desde as finanças ao número de concertos que fazia, passando pelas horas em que ia à casa de banho. Não podia conduzir, o telemóvel era monitorizado, durante anos não soube qual era o sabor de um hambúrguer — apesar de implorar por ele. Foi internada, medicada, afastada dos amigos e do mundo.
O que a levou até esse ponto? As respostas talvez remontem à infância. Cresceu com um pai alcoólico e uma mãe que só colocava os filhos em primeiro lugar se pudesse tirar algum partido disso. O palco era o sítio onde se sentia vista e segura, longe do caos e dos gritos da vida familiar. Aos 15 já tinha um contrato discográfico e um ano depois era conhecida mundialmente. Mas, ora era uma virgem, ora tinha uma imagem demasiado sexual. Namorou com Justin Timberlake e passou por uma separação demasiado pública onde foi pintada como vilã — agora revela que fez um aborto.
Num relato por vezes ingénuo e até com expressões infantis, conta a profunda solidão com que lidou durante quase toda a vida e explica os comportamentos erráticos que foram captados pelos paparazzi e que pareciam dar a todos a certeza de que estava louca. Afinal, quando rapou a cabeça praticamente em direto e tentou agredir um fotógrafo com um guarda-chuva estava a atravessar uma depressão pós-parto, um divórcio e o desespero de não poder ver os dois filhos bebés. Quem, espicaçado até ao extremo como ela, não agiria assim ou ainda pior?
Na biografia, Britney Spears recorda as relações falhadas, incluindo um casamento de 55 horas e um caso de duas semanas com Colin Farrell, mas fala também do seu lado espiritual e do que a fez, finalmente, fazer a denúncia contra o pai que ditou o fim da tutela. Há comentários sobre boatos e lavagem de roupa suja, é certo, mas A Mulher Que Há em Mim é muito mais do que isso. É o relato de como alguém novo e frágil, sem rede de apoio, é uma presa fácil para manipular — sobretudo pelo núcleo no qual devia poder confiar de olhos fechados.
Um pai alcoólico
Os Spears sempre viveram entre extremos. Quando o pai estava estável e os negócios (teve um ginásio, uma empresa de construção, etc) corriam bem, a família tinha direito a uma empregada. Quando tudo descambava, não havia dinheiro para nada, só para o álcool do pai.
Jamie Spears, o homem que durante 13 anos controlou a vida e a carreira da filha, foi, ele próprio, mal-tratado pelo pai. É com esses traumas que Britney Spears justifica o comportamento que sempre lhe conheceu. A mãe, avó de Britney, suicidou-se quando ele tinha 13 anos, alguns anos depois de ter perdido outro filho, com apenas três dias de vida. O pai era demasiado exigente e violento. Jamie repetiu com Britney e o irmão, Bryan, os mesmos padrões.
“Para ele nunca nada estava bem. Ele queria que o meu irmão fosse o melhor no desporto. Bebia até deixar de raciocinar. Desaparecia durante dias seguidos. Quando bebia, o meu pai era extremamente mau”, recorda a cantora.
A mãe chegou a dar início ao processo de divórcio em 1980 mas, a família do marido convenceu-a a voltar. As coisas melhoraram durante algum tempo, mas os gritos e a certeza de que aquele não era um ambiente saudável depressa regressaram. Jamie bebia, automedicava-se, era cruel para os filhos e violento com a mulher. “Era uma bênção para nós quando ele desaparecia”, lemos agora.
A entrada no Mickey Mouse Club
Aos oito anos fez parte das mais de duas mil crianças que tentaram ser escolhidas para o programa infantil Micley Mouse Club: “A mim e a uma rapariga da Pennsylvania chamada Christina Aguilera foi-nos dito que não tínhamos sido escolhidas mas que tínhamos talento”.
Aos 11 anos voltou a tentar e conseguiu. Por lá estavam outras caras que se tornariam igualmente muito conhecidas. Dividia o camarim com Christina Aguilera. “Admirávamos os mais velhos — Keri Russel, Ryan Gosling e Tony Lucca, que eu achava muito bonito. E rapidamente me liguei a um rapaz chamado Justin Timberlake.”
O elenco era chegado e, quando a avó materna de Britney morreu, foi a mãe de Justin Timberlake que emprestou dinheiro à família Spears para ir ao funeral. Por essa altura já os dois miúdos se tinham beijado num jogo de Verdade ou Consequência.
Daiquiris com a mãe, um contrato e Prozac
“Aos 13 anos, bebia com a minha mãe e fumava com os meus amigos”, declara a cantora. Para fugir do ambiente tóxico que se vivia em casa, Lynne Spears pegava nas filhas (Britney e a irmã mais nova, Jamie Lynne) e fazia viagens até à praia. Foi aí que Britney experimentou daiquiris. “Adorava poder beber com a minha mãe de vez em quando. A forma como bebíamos não tinha nada a ver com o que o meu pai fazia.”
No caminho para Biloxi, onde faziam praia, tudo era permitido. “Eu bebia pequenos goles de White Russian, cocktail com vodca, licor de café, gelo e natas. Sabia-me a gelado.”
Foi na Jive Records que conseguiu o primeiro contrato discográfico. Tinha 15 anos. De repente, viu-se a passar um ano a gravar em Nova Jérsia. Depois foi para a Suécia gravar com Max Martin, que tinha trabalhado com Bryan Adams e os Backstreet Boys. O mundo estava prestes a descobrir …Baby One More Time, o single que a tornaria conhecida.
“Tinha 16 anos quando, em 23 de outubro de 1998, o single chegou às lojas. No mês seguinte, o vídeo estreou e, de repente, reconheciam-me em todo o lado.”
Juntou-se a uma digressão dos NSYNC e começou a perceber que nada do que fizesse, dissesse ou vestisse seria aceitável. Na tentativa de se proteger das críticas, começou a ler livros religiosos. “Também comecei a tomar Prozac”, confessa no livro. Ao fazer a sua primeira digressão a solo, construiu uma casa para a mãe e pagou as dívidas do pai.
Não perdeu a virgindade com Justin Timberlake
Tudo era escrutinado, sobretudo o lado pessoal de Britney Spears, incluindo a virgindade. Chegou a dizer, numa entrevista, que tinha perdido a virgindade com Justin Timberlake, dois anos após terem começado a relação. Porém, no livro retifica: perdeu a virgindade na escola secundária com o melhor amigo do irmão.
“Eu era nova para andar no 9.º ano e esse rapaz tinha 17 anos.” Ia para a escola às 7h, mas saía à hora do almoço para estar com ele. Depois ia para casa como se nada fosse. Foi apanhada quando a escola avisou a mãe que estava a faltar há 17 dias. “Sendo tantas das minhas fãs adolescentes, os meus agentes e a imprensa tinham tentado durante muito tempo passar uma imagem minha como a eterna virgem — independentemente de eu e o Justin termos vivido juntos e de eu ter relações sexuais desde os 14 anos.”
Na realidade, Britney Spears e Justin Timberlake viviam juntos em Orlando. Ela tinha 19 anos, ele 20. “Houve algumas vezes na nossa relação em que soube que o Justin me tinha traído”, garante no livro. Por isso, fez o mesmo. “Não muitas vezes — uma vez, com o Wade Robson [coreógrafo da sua tournée].”
Depois de ter contado a Justin Timberlake, os dois continuaram juntos, mas a relação estava prestes a sofrer um abalo de que nunca recuperariam.
O aborto feito em casa
“A certa altura, engravidei do Justin. Foi uma surpresa mas não foi nenhuma tragédia para mim. Amava tanto o Justin. Sempre imaginei que teríamos uma família um dia. Isto seria só muito mais cedo do que tínhamos previsto”, pode ler-se. Porém, a reação do namorado foi outra: “Disse que não estávamos preparados para ter um bebé nas nossas vidas, que éramos demasiado novos.”
Extremamente religiosa, coisa que vai deixando clara ao longo do livro, Britney concordou em fazer um aborto mas arrepende-se da escolha, escreve agora. “Se a decisão fosse só minha, nunca o teria feito. Mas o Justin tinha a certeza de que não queria ser pai.”
Segundo a cantora, também decidiram que deviam fazer o aborto em casa, para que ninguém soubesse. Nem a família, só uma amiga, Felicia, que era assistente da cantora. Tomou os comprimidos e ficou horas deitada no chão da casa de banho com dores, “a soluçar e a gritar”. Timberlake foi buscar uma guitarra e deitou-se no chão ao lado dela, a tocar.
Tudo acabado por SMS
Quando gravou o primeiro álbum a solo, Justified, Justin Timberlake começou a afastar-se. Ela estava a gravar vídeo para o remix de Overprotected e recebeu uma mensagem do namorado a acabar com ela. “Não consegui falar durante meses. […] Não sei se, em termos clínicos, não estaria em choque.”
Justin Timberlake lançou então o tema Cry Me a River. O videoclip tem uma mulher idêntica a Britney e o cantor dá voz e corpo a um coração partido por causa de uma traição. “Toda a gente ficou com imensa pena dele. E cobriu-me de vergonha. […] Onde quer que eu fosse, corria o risco de ser vaiada.”
Duas semanas intensas com Colin Farrell
Conheceram-se em 2002 e no ano seguinte o ator levou Spears à antestreia do filme O Recruta. Questionado na altura, Collin Farrell disse que não eram namorados. Segundo a cantora, o que se passou entre ambos durou duas semanas. “Estávamos sempre enrolados um no outro, agarrando-nos tão apaixonadamente que parecia que estávamos num combate de rua.”
Ainda sem conseguir ultrapassar a separação de Justin Timberlake, a ligação fugaz fez Britney Spears acreditar que havia algo mais no seu futuro. Porém, internamente, lidava com muitos outros problemas.
Ansiedade grave e a entrevista errada
Apesar de, em palco, emanar confiança perante milhares de pessoas, a verdade é que fugia delas. “Na maior parte dos dias, nem sequer conseguia arranjar coragem para telefonar a um amigo. […] Era raro sentir alegria junto de grupos de outras pessoas. Na maior parte do tempo, eu tinha uma ansiedade social grave.”
Foi viver sozinha para um apartamento de quatro andares em Nova Iorque e não era capaz de sair de casa. “Não ia ao ginásio. Não ia comer fora. Ninguém me via.” Madonna foi das poucas pessoas a visitá-la naquela fase. Apresentou-lhe a cabala, deu-lhe conforto e seguiu-se uma atuação nos MTV Video Music Awards em que as duas se beijaram na boca. Britney Spears não viu a polémica gigantesca chegar, para ela a decisão tinha sido inocente e até arrojada.
Perante tudo o que se dizia sobre ela, os pais pressionaram-na a dar uma entrevista a Diane Sawyer. Os temas nada tinham a ver com música. A jornalista explorou, muito além do aceitável, a vida pessoal. “Eu não queria partilhar nada de privado com o mundo. Eu não devia os detalhes da minha separação aos media.”
“Essa entrevista foi um ponto de ruptura para mim internamente — um interruptor foi acionado. Senti algo escuro a tomar conta do meu corpo.” Isolou-se cada vez mais, incapaz de dar ao mundo a imagem de menina pura e bem-comportada que insistiam em atribuir-lhe. Também começou a acumular relações falhadas.
O casamento de 55 horas
A passagem de ano de 2003 para 2004 viveu-a em Las Vegas com amigos, incluindo Paris Hilton. “Ao fim de algumas bebidas, acabei na cama com um dos meus velhos amigos.” Era Jason Alexander.
“Nem sequer me lembro dessa noite.” É assim que descreve o momento em que, às 3h30, em Las Vegas, foi até uma capela e se casou. Não estavam apaixonados. “Honestamente, estava muito bêbada e provavelmente, de forma mais geral na minha vida, muito aborrecida.” Porém, nem teve tempo de se “arrepender do que tinha feito”. Assim que os pais souberam, trataram dos documentos para que o casamento fosse anulado. Durou 55 horas.
O conforto que encontrou em Kevin Federline
Conheceram-se num bar, em Hollywood. “Ele abraçou-me — amparou-me — na piscina durante horas.” Profundamente sozinha e deprimida, a cantora sentiu o apoio que nunca tinha tido. “Era assim que ele era para mim: firme, forte, reconfortante.”
Britney Spears garante que, nessa altura, não sabia que ele tinha um filho pequeno e que a ex-namorada dele estava grávida de oito meses. Ainda assim, depois de descobrir, levou-o na digressão de 2004 e foi ela a primeira a pedi-lo em casamento. “Achei que o Kevin me daria a estabilidade de que eu tanto precisava — e também a liberdade.”
Casaram no outono desse ano. O primeiro filho, Sean Preston, nasceu a 14 de setembro de 2005. Três meses depois estava novamente grávida. “Foi um período de muita tristeza e solidão.” Jayden James nasceu a 12 de setembro de 2006. “Tive dois bebés, um atrás do outro. As minhas hormonas estavam totalmente descontroladas. Eu era extremamente má e mandona. […] Agora sei que na altura estava a evidenciar todos os sintomas de depressão pós-parto: tristeza, ansiedade, fadiga.”
O marido passava temporadas sem aparecer. A tentar construir uma carreira na música, começou a ficar mais conhecido, a fazer anúncios para o Super Bowl e a preocupar-se pouco com a vida familiar. “O meu advogado disse-me que o Kevin ia pedir o divórcio custasse o que custasse. Fui levada a acreditar que seria melhor se eu o fizesse primeiro para não ser humilhada.” Dois meses após nascimento de Jayden, assim fez. Diz que as duas relações falhadas arruinaram a sua confiança nas pessoas. “Nunca mais consegui confiar em ninguém.”
A droga de eleição
Profundamente triste, tentava encontrar algum consolo nas saídas com as amigas. Era sucessivamente fotografada em festas com Paris Hilton e Lindsay Lohan. Ainda assim, garante que nunca ficou viciada em drogas pesadas ou em álcool. A sua “droga de eleição” era Adderall, medicação para hiperatividade e défice de atenção. “Fazia-me sentir pedrada, é verdade, mas o que mais me atraía era que me dava umas horas sem me sentir tão deprimida.”
Um dia foi sair e deixou os filhos com a mãe. Quando voltou, embriagada, discutiram. Foi “um ponto de viragem na relação com a minha mãe. Nunca mais consegui que as coisas voltassem a ser como antes.” Deixou de ir a festas, fechou-se em casa. “Afastada dos meus amigos, comecei a ter comportamentos estranhos.”
Sentia-se má mãe porque todos diziam que era má mãe. “Sei-o agora, também estava com uma grave depressão pós-parto. Admito que sentia que não conseguia viver se as coisas não melhorassem.”
O episódio da cabeça rapada
No meio de uma batalha judicial pela guarda das crianças, Kevin Federline levou os filhos e não os devolveu. Também não deixava Britney vê-los. “Imaginei que eles não saberiam quem era a sua mãe, sem perceberem por que razão não estava junto deles.”
À espreita estavam, dia e noite, os paparazzi. “Como sempre, estava a ser perseguida por aqueles homens que estavam à espera que eu fizesse alguma coisa que pudessem fotografar.” E ela fez. Entrou num cabeleireiro e rapou o longo cabelo loiro. Em 2007 as imagens foram de uma ponta à outra do mundo. Sem nunca se ouvir o lado dela, toda a gente tinha a certeza: a cantora tinha perdido a cabeça. “Ninguém percebia que eu estava pura e simplesmente fora de mim com desgosto. Os meus filhos tinham-me sido tirados.”
O relato que faz a seguir é o grito de alguém no limite:
“Rapar o cabelo foi uma maneira de dizer ao mundo: Vão todos à merda. Querem que seja bonita para vocês? Vão à merda. Querem que seja boazinha para vocês? Vão à merda. […] Eu tinha sido a menina bonita durante anos. Sorria educadamente enquanto os apresentadores de televisão olhavam com lascívia para as minhas mamas, ao mesmo tempo que os pais americanos diziam que eu andava a destruir os seus filhos por causa de um top curto […] e que a minha própria família agia como se fosse o diabo. E eu estava farta de tudo.”
Assediada pelos paparazzi, num dia em que tentou ir ver os filhos e ficou à porta do ex-marido, não aguentou mais as provocações. Pegou num guarda-chuva e saiu do carro, começando a bater no carro do fotógrafo. “Verdadeiramente patético. Um guarda-chuva. Não se consegue fazer estrago nenhum com um guarda-chuva. Foi um gesto desesperado de uma pessoa desesperada.”
A primeira passagem por uma clínica de reabilitação
Nessa altura, teria feito qualquer coisa que a ajudasse a recuperar os filhos. E fez o que lhe mandaram: foi para uma clínica de reabilitação. “O meu problema era mais a raiva e o desgosto do que o abuso de substâncias, mas fui.” Quando chegou, o pai estava à espera dela para lhe dizer “tu és uma desgraça.”
Conseguiu metade da custódia quando saiu. Mas, em janeiro de 2008, no momento em que estava a devolver os filhos a um segurança do ex-marido, pensou que se calhar nunca mais veria as crianças e entrou em pânico. Correu para a casa de banho com Jayden ao colo e trancou a porta. Pouco depois chegou uma equipa das forças de intervenção da polícia. “Assim que me tiraram o Jayden, amarraram-me a uma maca e levaram-me para o hospital.”
O início do controlo da família
Começou a namorar com um fotógrafo. “Ajudou-me com a minha depressão. […] encorajou-me a ser rebelde. Deixava-me aproveitar a vida e ainda gostava de mim por isso.” “Com o apoio dele”, fazia o que lhe apetecia. Falava alto em restaurantes, deitava-se em cima das mesas. “Era a minha maneira de dizer ‘Vão à merda!’”
Um dia, a mãe disse-lhe que precisavam dela em casa. “De repente, uma equipa de forças de intervenção da polícia entrou em minha casa.” O pai conseguiu a “tutela de pessoa” e a “tutela do património”. “Qualquer pessoa apanhada na rua teria sido melhor.” Em tribunal disseram que ela estava demente. O pai foi nomeado como tutor juntamente com um advogado, Andrew Wallet. “Viria a ganhar 426 mil dólares por ano para me impedir de mexer no meu dinheiro.”
Descobriu depois que o pai recebia um salário maior do que o dela e que “pagou a si mesmo mais de 6 milhões de dólares, enquanto pagava dezenas de milhões a outras pessoas próximas dele.” A mãe, Lynne, estava a aproveitar-se de outra forma. Enquanto Britney estava a passar um dos piores momentos da sua vida, a mãe promovia um livro em todas as plataformas. “Corria tudo e qualquer talk show matinal a vender o seu livro acerca das vezes em que eu tinha estado no hospital, e que tinha enlouquecido por estar separada dos meus bebés.”
A tutela
Supostamente estava incapaz de tomar qualquer decisão e de fazer coisas sozinha, mas arranjaram-lhe uma participação num episódio de Foi Assim Que Aconteceu e uma digressão. O pai apoderou-se da casa. “‘Só quero que saibas’, disse ele, ‘que agora sou eu que mando. Tu sentas-te ali naquela cadeira e eu digo-te o que tens de fazer.’ Olhei para ele cada vez mais horrorizada. ‘Agora sou eu a Britney Spears’, concluiu.”
Tudo era controlado, até os possíveis novos encontros amorosos. O historial médico e sexual era revelado aos pretendentes. “Para que fique bem claro: isto acontecia antes do nosso primeiro encontro. Era profundamente humilhante.” Também não tinha direito a telemóvel. “Houve várias alturas em que resisti. […] Eu teria contrabandeado um telefone de outra pessoa e tentado libertar-me. Mas eles apanhavam-me sempre.”
Ficou “sem energia para lutar” e começou a fazer o que os outros queriam. “Deitava-me cedo. E depois acordava e fazia o que eles me mandassem. […] Fiz isto durante 13 anos.” O motivo, para Britney, era só um. Se se portasse bem, poderia ver os filhos.
Em 2008, o tribunal ordenou então que o pai de Britney, Jamie Spears, passasse a ser o tutor, controlando tudo na sua vida e na sua carreira. “Passei da diversão total para uma vida de monge.” Vigiada por seguranças, a cantora deixou de querer fazer até aquilo que lhe dava prazer. “Tornei-me um robô. Mas não apenas um robô — uma espécie de criança-robô. Tinha sido tão infantilizada que estava a perder bocados do que me fazia sentir eu própria.”
Nesse ano, ganhou mais de 20 prémios. Foi jurada no The X Factor, voltou a estúdio, aceitou atuar em Las Vegas. Nada disso parecia ser suficientemente bom.
A vida em Las Vegas (com semanada)
Instalou-se para os concertos a seguir ao Natal de 2013. Começou a namorar com um produtor de televisão que lhe deu suplementos energéticos. Ela tinha de cantar e dançar, agradeceu a ajuda extra. “O meu pai não gostou disso. Ele sabia o que eu comia. Até sabia quando eu ia à casa de banho.” Mandaram-na para uma clínica de desintoxicação.” Voltou para atuar em Las Vegas e ser ainda mais controlada.
“Eu não podia conduzir. Qualquer pessoa que me visitasse na minha autocaravana tinha de assinar uma declaração.” Para o pai, continuava gorda. Tinham um mordomo a quem ela implorava um hambúrguer mas, durante dois anos, só comeu frango e vegetais enlatados. “Enquanto a minha família ficava todas as noites no condomínio ridiculamente bonito que eu lhes comprara em Destin […], a servir-se de boa comida, eu passava fome e trabalhava.”
Recebia de semanada cerca de 2 mil dólares, mas se quisesse comprar um par de ténis que os tutores não gostavam, não lhe davam dinheiro. “Isto apesar de ter feito 248 espetáculos e ter vendido mais de 900 mil bilhetes em Las Vegas.” Em 2014 foi a tribunal referir o alcoolismo e o comportamento do pai. A ação não deu em nada.
Sem vontade de fazer música, presa numa clínica
Durante os anos em que o pai e os advogados controlaram tudo o que lhe dizia respeito, perdeu o direito até de fazer alteração nos alinhamentos dos concertos.
Houve meses em que pedia férias, dizia que não queria atuar mais em Las Vegas. Ameaçavam-na sempre com mais uma passagem pelo tribunal. Em outubro de 2018 anunciavam o início de uma nova digressão quando Britney desceu os degraus, passou pelas câmaras sem parar, entrou num carro e se foi embora. “O que as pessoas não viram foi o meu pai e a sua equipa a tentar obrigar-me a anunciar o espetáculo. […] Há meses que andava a dizer que não queria fazê-lo.”
Voltaram a interná-la. O pai disse-lhe que, se assim não fosse, iria a tribunal e seria envergonhada. “Disse-me: ‘Vamos fazer com que pareças uma idiota estúpida e, acredita em mim, não vais ganhar.’ […] Senti, honestamente, que eles estavam a tentar matar-me.”
Não podia fechar a porta do quarto, nem tomar banho sozinha, era vigiada a trocar de roupa e a ver televisão, religiosamente entre as 20h e as 21h. Quando lhe tiravam sangue, todas as semanas, tinha a enfermeira, um segurança e uma assistente a assistir. “Mantiveram-me fechada, contra a minha vontade, durante meses”. Se não cumprisse tudo religiosamente durante a semana, os filhos não a visitavam aos fins de semana.
Retiraram-lhe o Prozac, que tomava há anos e substituíram-no por lítio. “Fui ficando cada vez mais desorientada. Após dois meses completamente sozinha, foi mudada para um edifício onde convivia com outros pacientes. Pediu ao pai para ir para casa, nada. Pediu ajuda à mãe e à irmã, nada. No entanto, uma das enfermeiras mostrou-lhe vídeos dos movimentos, #FreeBritney, que estavam a formar-se pela sua libertação.
“Da mesma maneira que eu acredito que consigo sentir o que uma pessoa no Nebrasca está a sentir, acho que a minha ligação aos meus fãs os ajudou subconscientemente a saber que eu estava em perigo.”
Pânico de ser morta
Quando voltou para casa, mais de três meses depois, o pai, a mãe e a irmã apressaram-se a ir visitá-la. “Ainda tomava lítio, o que me fazia ter um sentido de realidade bastante confuso. E estava com medo. Veio-me à cabeça a ideia de que só tinham vindo visitar-me para acabarem o que tinham começado a fazer há uns meses, ou seja matar-me mesmo.”
Impulsionada pela força que via por parte dos fãs, começou a a querer interagir nas redes sociais. “Comecei a experimentar roupas e a mostrá-las no Instagram. Achei isso incrivelmente divertido.” Na pandemia ouvia livros de autoajuda, fabricava joias e olhava para as paredes. Com o afastamento de toda a gente, deu por si a ter saudades da família. “Porque é que continuei a falar com eles? Não sei. Porque é que permanecemos em relações disfuncionais?”
Foi visitá-los ao Luisiana e percebeu que muitas das coisas que guardava em casa da mãe tinham ido para o lixo. Tudo o que lhe dizia respeito era descartável, incluindo ela própria. “Naquele momento fiz as pazes com a minha família — ou seja, compreendi que nunca mais queria voltar a ver nenhum deles, e fiquei em paz com isso.”
A denúncia
A 22 de junho de 2021 telefonou para os serviços de emergência e fez queixa dos abusos do pai. Começaram a surgir documentários e a irmã estava a preparar um livro. No dia seguinte ia dirigir-se a um tribunal de sucessões de Los Angeles. “Pela primeira vez, naquilo que me pareceu uma eternidade, comecei a contar a minha história.”
Durante os 13 anos em que foi representada por um advogado que lhe foi atribuído, não sabia que podia ter escolhido outro. Quando percebeu, contratou Mathew Rosengart. A 29 de setembro, o pai deixou de ser o tutor, e em novembro terminou a tutela. “Todos os dias ponho música a tocar. Quando ando pela casa a cantar, sinto-me completamente livre, completamente feliz.
Gravou um dueto com Elton John, Hold Me Closer, lançado a 26 de agosto de 2022. No dia seguinte era número um em 40 países. “Os fãs diziam que eu soava livre.”
O futuro
“Avançar com a minha carreira musical não é o meu foco neste momento. Agora é tempo de por a minha vida espiritual em ordem, de prestar atenção às pequenas coisas, de abrandar”, admite. Foi de férias e voltou a comer chocolate — desta vez sem ninguém a gritar-lhe que é gorda. Casou-se (entretanto também se divorciou), engravidou e teve um aborto espontâneo. Expressa-se nas redes sociais da forma que sabe e que lhe dá prazer.
“Sei que muitas pessoas não compreendem por que razão adoro tirar fotografias com vestidos novos ou nua. Se tivessem sido fotografadas por outros milhares de vezes, espicaçadas a fazer poses para serem aprovadas por outras pessoas, iam compreender a alegria que me dá por-me numa pose que eu ache sexy e fotografar-me, e fazer o que quiser com a fotografia.”
Apesar das mudanças recentes, admite que os abusos que sofreu por parte da família não constituem um assunto totalmente encerrado.