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TOMÁS SILVA/OBERVADOR

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Os dois irmãos, a dona Ana, 15 mil à espera e aquela casa em São Tomé: uma noite nos bastidores com os Calema

Fradique e António celebraram 15 anos de carreira com dois concertos na MEO Arena. Na primeira noite estivemos entre os camarinha e o palco para descobrir de que é feito este fenómeno da música pop.

16h34: Dentro da MEO Arena, uma equipa de mil e trezentas pessoas ultima os pormenores para o concerto de celebração dos quinze anos de carreira dos irmãos Calema, que começará daqui a cinco horas. Em cima do palco, o Fradique e o António ensaiam uma última vez Até de Manhã com a Diana Lima. Uns metros mais à frente, a equipa de bailarinos orientada pelo Cifrão, dos D’ZRT (o casaco polvilhado de cifrões que traz vestido evita quaisquer confusões), dança a coreografia da música. Nada parece deixado ao acaso: treinam-se improvisos, apartes e movimentos em palco, dois bailarinos trocam sorrisos ao cruzarem-se à boca de cena, num gesto que poderia parecer apenas fruto de um entusiasmo momentâneo mas que se repetirá exatamente da mesma forma durante o concerto.

16h50: Aproveito o teste de som (que é, na verdade, um ensaio geral) para conversar com o Fred, o irmão mais velho do duo. O Fred fala-me da música que ouviam na infância e de São Tomé e Príncipe, de onde o Fradique e o António saíram há precisamente quinze anos, para estudar Multimédia em Lisboa, ao mesmo tempo que perseguiam o sonho de viver da música. Tento perceber a missão do Fred na estrutura da banda e, segundo o que me diz, o seu papel é o de ser o irmão mais velho. Está aqui, explica-me, para os trazer para baixo, para que os Calema não se armem em estrelas. Ajuda na gestão do calendário da banda e na construção da tournée, mas a sua tarefa é lembrar-lhes o sítio de onde vieram. Anuncia-me um concerto na Accor Arena, um recinto em Paris onde cabem vinte mil espectadores, mas diz que isso os entusiasma tanto como quando tocavam em França para cinco ou seis pessoas. Dito assim parece conversa fiada, mas se estivessem lá comigo, amigos leitores, acreditavam.

17h15: No exterior do recinto, junto à porta de acesso ao golden circle, converso com cinco raparigas com quem me cruzara à chegada. São dois grupos diferentes: uma mãe, uma filha e uma amiga, vindas do Porto, e duas assistentes de bordo portuguesas que moram em França. À sua volta, têm sacos com comida do McDonald’s. O trio nortenho diz-me que este momento é para compensar um concerto dos Calema adiado durante a pandemia, enquanto a mais entusiasmada da dupla voadora me conta que perdera por um dia o concerto da banda em Marselha. Explica que vai passar a noite por ali e depois regressa a França, mas que tudo vale a pena em nome da sua banda favorita. A mãe portuense garante-me que é mais maluca do que a filha e que viria a Lisboa mesmo que os Calema também tocassem no Coliseu do Porto. Diz que teve a oportunidade de ver o Luan Santana nos dois sítios e aqui foi muito melhor, porque até deram umas pulseirinhas luminosas, o que produziu um efeito que descreve como espectacular. A filha acusa-a então de adorar tudo o que seja grátis. A mãe não a desmente e conta-me que chorou com saudades dos pais quando ouviu a Abraços pela primeira vez. A assistente de bordo não se deixa ficar e garante que chora em quase todas, mas que baba e ranho é mais com a A Nossa Vez.

19h50: O teste de som acaba finalmente. Ninguém parece nervoso ou apressado, tudo é leve leve, apesar de faltar pouco mais de uma hora para o concerto

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17h46: Converso com Joaquim Furtado, um steward. O dever de discrição inerente ao seu papel torna-o pouco expansivo, mas, ainda assim, fala-me da perspetiva especial que tem dos concertos, que, nas palavras de São Paulo aos Coríntios, não vê face a face, mas como num espelho, de maneira confusa. Não assiste aos espectáculos das bandas de que mais gosta, mas daquelas que lhe calham em sorte e a sua quota-parte de felicidade advém da alegria no rosto de quem está à sua frente. É assim que lhe foi dado receber o mundo e isso basta-lhe. Ao conversar com o senhor Joaquim, lembro-me de que o Kafka (acho que era o Kafka, mas não se fiem muito no que vos digo) dizia que quando ia ao teatro não lhe interessava o que acontecia em palco, mas sim o que se passava na plateia e nos bastidores. Sempre me pareceu uma boa descrição do olhar do artista perante o mundo.

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18h30: Nos camarins, converso com o Alexandre Cardoso, mais conhecido por Alex. O Alex tornou-se agente dos Calema em 2012, quando eles ainda tocavam em recintos pequenos à chuva, mas viu no António e no Fradique potencial para serem muito maiores. Na altura, trabalhava como gestor e sugeriu-lhes que se inscrevessem no Lusartist, um concurso para vozes da lusofonia. Os Calema ganharam a competição e a partir daí começou o seu percurso ascendente, com a gravação do álbum Bomu Kêlê, em 2014. Diz-me que o José Figueiras foi o padrinho da banda e nesse momento lembra-se que o apresentador lhe telefonara no dia anterior. Pede-me licença para lhe devolver a chamada e oferece-lhe três bilhetes para o concerto que começa dali a pouco. Depois, fala-me de quando, em 2015, decidiu despedir-se e vir com os Calema para Portugal. Tal como o Fradique e o António, na altura vivia em França, onde aliás nascera, mas não hesitou em largar tudo atrás do sonho. Em 2016, o single Vai estreia na RFM, começam a atuar em discotecas em Portugal, Angola e Cabo Verde até que, pouco depois, o Nossa Vez torna-se um sucesso internacional.

À porta dos camarins, a dona Ana entretém-se com o telemóvel. Pela forma como está vestida, percebo que vai cantar, o que em nenhum momento fora referido na nossa conversa. Pergunto-lhe se é a primeira vez que canta com os filhos. A dona Ana puxa pela memória e diz: "Num concerto, acho que sim".

18h45: Enquanto conversamos, junta-se a nós a dona Ana, mãe dos Calema, que se prepara para uma sessão de maquilhagem. Acabada a conversa com o Alex, sento-me ao seu lado e ouço-a falar do grupo coral que integrava com o marido e os filhos, dos salmos que cantava nas missas, das noites em que a ausência de eletricidade os fazia sair para o meio da natureza. Ao luar, cantavam em família. Lembra o dia em que confrontou os filhos com a necessidade de decidirem o seu futuro, ao que estes responderam que queriam ser cantores. Não levantou grandes objeções, mas avisou-os de que quem abre a boca para cantar, tem de sentir. Caso contrário não é diferente de se bater numa panela. Pergunto-lhe se também ela sonhara ser cantora e ela diz que preferiria a vida de modelo, porque tinha um corpo lindo e torneado e gostaria de apresentar aquilo que é bom, mas que, tendo nascido em África, isso nunca seria possível. Depois, pergunto-lhe o que gostaria que acontecesse a seguir na vida dos filhos. Deixo-vos aqui a transcrição do que a dona Ana me respondeu, porque acho que vão gostar:

A — Para mim [encolhe os ombros e revira os olhos, como se o futuro lhe fosse indiferente]… Para mim não é a fama, não é o dinheiro, não é nada. Eu fico muito apreensiva como mãe. Não gostava que estivessem aí tão no mundo.

Tem medo de que seja um salto muito grande?

A — Sim e que percam a cabeça. Tudo isto é uma ilusão. Mas é muito bom eles darem alegrias aos lares.

19h15: Nos bastidores, encontro o rapper T-Rex, rodeado da sua comitiva. Apresento-me e ele dá-me um aperto de mão extraordinariamente complexo a que não consigo corresponder. Ele perdoa o meu erro, trocamos um simples hi-five e conta-me que nasceu para isto. Pergunto-lhe o que o distingue dos outros e ele diz-me que é muita coisa, mas resume em três palavras: dedicação, disciplina e motivação. Podes escrever aí quatro vezes motivação, acrescenta. Eu escrevo quatro vezes motivação no meu caderno, desejo-lhe sorte, ao que responde: “Não, deixa estar, não é preciso”. Agradece e vai-se embora.

19h50: O teste de som acaba finalmente. Ninguém parece nervoso ou apressado, tudo é leve leve, apesar de faltar pouco mais de uma hora para o concerto e os Calema ainda terem de se vestir, jantar, falar às televisões e, num mundo ideal, conversarem comigo durante vinte minutos.

21h53: Há uma equipa a filmar todo o concerto, mas, pelo sim pelo não, todos os membros do público decidem usar os telefones para gravar cada segundo do concerto

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19h58: Num corredor, os Calema fazem uma sessão de fotografias institucionais com uma marca de relógios que lhes oferece um relógio a cada, o que talvez um dia lhes venha ser útil.

20h07: Começam as entrevistas para a RTP, RTP África, TVI e SIC.

20h30: O road manager informa-me que não será possível entrevistá-los, uma vez que ainda têm de comer e vestir-se, o que me parece uma decisão bastante sensata. O concerto começará às nove em ponto, diz. O Alex vem ter comigo, pede-me desculpas e garante-me que no final os poderei entrevistar. Eu digo-lhe para não se preocupar com isso e aproveitar o concerto.

20h50: Já vestidos e tendo comido uma sopa, o Fradique engole uma sandes enquanto o António bebe água e conversa descontraidamente ao telefone com alguém que pergunta como pode aceder ao parque de estacionamento da MEO Arena. Ao que parece, a descontração é generalizada.

20h55: À porta dos camarins, a dona Ana entretém-se com o telemóvel. Pela forma como está vestida, percebo que vai cantar, o que em nenhum momento fora referido na nossa conversa. Pergunto-lhe se é a primeira vez que canta com os filhos. A dona Ana puxa pela memória e diz: “Num concerto, acho que sim”.

20h58: O road manager, a única pessoa que parece nervosa, avisa que começam dali a dois minutos. Ninguém lhe dá ouvidos.

21h05: O Alex diz que seria bom começarem às 21h15.

21h15: O produtor pergunta aos Calema se já jantaram.

21h22: O Alex pede cinco minutos para aquecerem a voz, o que lança o road manager num desespero silencioso em que só eu pareço reparar.

Fred junta-se aos irmãos e à mãe e afinal também vai cantar. Parece tranquilíssimo, como se subir a um palco em frente a quinze mil pessoas fosse uma situação comum para esta família que há menos de dez anos vivia na modesta casa santomense construída à mão e que aparece projetada nos écrãs lá ao fundo.

21h28: Arrancam para o palco. Posiciono-me na primeira fila, onde um homem grita pelo Benfica, recebendo resposta de alguém umas cinco filas mais atrás. Ao seu lado, está um grupo de raparigas com cachecóis dos Calema e mais à direita vejo um casal septuagenário abraçado, aguardando pacientemente o começo do espectáculo. A banda toca o início de Vai e a multidão exulta.

21h53: Aos primeiros acordes de A Nossa Vez, o Fradique aproxima-se do palco, o público grita e o intrépido benfiquista da primeira fila recebe um beijo de língua da (sua, parece-me) mulher à direita dele. Há uma equipa a filmar todo o concerto, mas, pelo sim pelo não, todos os membros do público decidem usar os telefones para gravar cada segundo do concerto. Caminho pelo fosso da imprensa e encontro a assistente de bordo, que mudara de roupa e pusera um batom vermelho. Contra todas as expectativas, não chora. À frente do palco, labaredas em barda.

21h58: Soraia Ramos sobe a palco para cantar O Nosso Amor. Fico preso atrás dos fotógrafos no fosso e um steward convida-me a ficar sentado ao seu lado. Vejo-o espreitar para um dos écrans gigantes e quase juraria que trauteia para dentro a canção. Do outro lado do palco, há marmelada de meia-noite entre alguns casais adolescentes enquanto um homem, claramente arrastado pela namorada, faz o que pode para bater palmas ao ritmo da música. Sem grande sucesso.

22h25: Fred junta-se aos irmãos e à mãe e afinal também vai cantar. Parece tranquilíssimo, como se subir a um palco em frente a quinze mil pessoas fosse uma situação comum para esta família que há menos de dez anos vivia na modesta casa santomense construída à mão e que aparece projetada nos écrãs lá ao fundo.

23h20: Sento-me na segunda fila do primeiro balcão, ao lado da mulher e dos dois filhos do Fradique, enquanto outra banda de irmãos, os Anjos, sobem ao palco para cantar Frágil com os Calema e anunciar um concerto de beneficência para acabar de vez com a violência doméstica. O público aplaude, parecendo concordar com a iniciativa.

00h30: Fradique diz que a alegria daquelas pessoas é o mais importante e que essa está garantida, por mais que se enganem num ou noutro momento

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23h45: O Alex sobe ao palco para presentar os seus agenciados com um disco de tripla platina e um disco de quíntupla platina. A seguir, tocam o êxito Maria Joana, com a colaboração da Mariza e do Nuno Ribeiro.

00h05: O concerto acaba. A família abraça os Calema e o António dirige-se aos camarins para comer um frango assado de proporções bem generosas. Parece-me que esta escolha de ementa poderia ter sido feita pelo Fred, para lembrar aos irmãos a forma como os momentos muito especiais eram celebrados em família na sua terra-natal. Chamo o Alex à parte e peço-lhe que cancele a nossa conversa, para que os Calema possam finalmente descansar, mas o agente da banda recusa imediatamente e garante que dali a cinco minutos, dez no máximo, falo com eles.

00h30: Começo a falar com o Fradique enquanto o António acaba de dar cabo do pobre frango. O Fradique fala da felicidade por em alguns segundos não ter desistido. Explica-me que é assim que as decisões importantes são tomadas, em breves e decisivos segundos. O António junta-se a nós e lembra as caças aos pássaros com uma fisga que fazia no meio da natureza com o irmão. Parece ter saudades. Depois, narra o dia em que recebeu uma guitarra e o tempo que demorava a carregar cada vídeo do YouTube. Diz que viam vídeos da dupla de sertanejo Rick & Renner e que parava a imagem em cada acorde para perceber onde pôr os dedos. Prometo não lhes roubar mais tempo, mas conto-lhes que me impressionou vê-los tão calmos durante todo o dia e pergunto como é possível. O Fradique diz que o público veio para ouvir as músicas, não para os ver a eles, que os Calema são só uma parte pequena do que ali acontece. Diz que a alegria daquelas pessoas é o mais importante e que essa está garantida, por mais que se enganem num ou noutro momento. Diz que sentem sempre que estão a tocar para amigos e que os amigos não se incomodam se alguma coisa correr mal e isso, parece-me, é a maneira de garantir que acontece o que ainda há pouco cantavam com a Soraia Ramos: “Sempre que me olhas, eu sei que vai correr bem./ Nós, os dois, sabemos que eu não quero mais ninguém”.

Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas.

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