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No verão de 87 houve “lutas de miúdos”, “uma classe que faz falta” e “uma campanha de amor”. Candidatos, militantes, líderes de juventudes partidárias, vencedores e vencidos, todos se lembram da dupla eleição que, durante um mês, levou para a estrada não só PS, PSD, CDS e CDU como também o Partido Renovador Democrático, de Ramalho Eanes, o Partido Popular Monárquico e uma coleção de esperançosos ao longo de todo o espetro político.
A 19 de julho de 1987, Portugal votava pela primeira vez nas eleições para o Parlamento Europeu. Exatamente no mesmo dia, nas mesmas mesas de voto, escolhia-se a composição da Assembleia da República — PS, PRD, PCP e MDP/CDE tinham feito cair o governo minoritário de Aníbal Cavaco Silva aprovando uma moção de censura apresentada pelo PRD a 3 de abril.
No final da dupla campanha, o PSD havia de conquistar a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva (50,2%). O PS, com Vítor Constâncio, sofria uma das maiores derrotas eleitorais da sua história (22,4%) e o PRD entrava em rápido declínio (caindo dos 17,9% conquistados em 1985 para 4,91%). A queda do PRD deixava a CDU como o terceiro maior grupo parlamentar, numa Assembleia da República (12,14%) onde ainda cabia um CDS-PP reduzido a “partido do táxi” (quatro deputados, passara de 9,9% para 4,4%).
O impacto do voto útil nas legislativas foi evidente quando comparado com o resultado das europeias: o resultado do PSD não ultrapassava os 37,45%, com o PS estável nos 22,4%. A transferência viria sobretudo do CDS que, para o Parlamento Europeu, conseguiu 15,4% dos votos. “Judas foi um indivíduo que votou útil”, chegou a afirmar o líder centrista da altura, Adriano Moreira, num comício em que já temia esta disparidade de resultados. CDU (com 11,5%) e PRD (4,4%) mantiveram-se quase na mesma nas duas votações. À porta ficou o PPM — os 2,7% não chegaram para eleger Miguel Esteves Cardoso.
Mas antes de haver maiorias, eurodeputados eleitos e mudanças de liderança, houve campanha. E se uma campanha conta muitas histórias, duas campanhas contam muitas mais.
Os elefantes do CDS carregados de mulheres belas e fiéis
O CDS precisava de encher o Pavilhão dos Desportos, hoje Pavilhão Carlos Lopes. Tinha um concerto dos Táxi (o que não deixa de ser uma ironia tendo em conta o resultado que iria conseguir nas legislativas) antes do comício eleitoral, que contava com discursos do líder da Juventude Popular, Manuel Monteiro, do cabeça de lista às Europeias, Francisco Lucas Pires, e do presidente do CDS-PP, Adriano Moreira.
O que mais chamou a atenção neste 9 de julho foram as quatro crias de elefante, alugadas a um circo, com a bandeira do CDS-PP no dorso, que desfilaram pela Avenida da Liberdade, numa manobra planeada por Artur Albarran. “Funcionou, mas hoje era impossível”, relata ao Observador Manuel Monteiro, continuando: “Seria imediatamente aproveitado e dito que se estava a fazer uma exploração dos animais porque não tinham liberdade de escolha e não se perguntou se queriam participar na campanha eleitoral. Haveria um coro de protesto”.
Com militantes a ocupar todo o pavilhão, ainda houve comédia antes dos discursos. Nicolau Breyner tratou de atacar o PS: “Estou aqui com muito prazer. Mas devo dizer-vos que vim apenas substituir um colega das lides artísticas que infelizmente não pôde comparecer. É um colega com um passado artístico muito mais importante que o meu. Trata-se do nunca por de mais desejado Vítor Constâncio”.
Manuel Monteiro lançou-se contra o PSD. Adriano Moreira fechou a noite criticando o PCP, a Constituição e a possibilidade de uma maioria absoluta. E no meio falou Lucas Pires, num elogio patriótico que procurava “preparar [Portugal] para entrar na Europa”. Elogiou os clubes de futebol portugueses (o FC Porto acabara de ganhar a sua primeira Liga dos Campeões em futebol — 2 a 1 frente ao Bayern de Munique), a indústria têxtil de Portugal e a mulheres portuguesas.
Disse Lucas Pires que as mulheres portuguesas eram “as mais bonitas e fiéis da Europa”, devendo por isso lutar mais pelos seus direitos e intervir na vida política. Na notícia que escrevia para o Diário de Lisboa, o jornalista Ribeiro Cardoso comentava que era “um bom conselho, convenhamos, sejam ou não as mais bonitas, ou as mais fiéis”.
Palavras que Manuel Monteiro recorda como bem intencionadas, e até progressistas: “Lucas Pires procura saudar a mulher portuguesa com as características da mulher portuguesa do tempo em que está a falar, mas ao mesmo tempo tem o cuidado de dizer ‘Atenção que não basta seres bonita, tens de lutar pelos teus direitos, tens de te afirmar‘”.
A queixa do PS contra o PSD que não falava da Europa
Os temas centrais das europeias de 1987, nos comícios, nas rádios, na televisão (RTP) e nos jornais, eram sobretudo os temas das legislativas. Mas votar na Europa falando nos problemas de Portugal deu polémica, e uma das primeiras vozes a insurgir-se foi a do cabeça de lista do Partido Socialista à Assembleia da República, Vítor Constâncio.
Era Cavaco Silva a peça central do primeiro tempo de antena do PSD nas europeias, transmitido a 30 de junho, apesar de ser Pedro Santana Lopes o cabeça de lista para o Parlamento Europeu. O resultado, para Constâncio, parafraseado pelo Diário de Lisboa foi “um bocado robotizante” e um aproveitamento despropositado das europeias para a “divulgação de questões internas, em especial assuntos que dizem respeito à ação governativa”.
A crítica seria recorrente. A 8 de julho, durante um comício em Santarém, era a vez da cabeça de lista do PS Maria de Lurdes Pintasilgo: “Parece que têm vergonha de aparecer nos tempos de antena, já que estão sempre a ser substituídos pelo Sr. Primeiro Ministro”.
No limite, o PS ponderou mesmo fazer queixa à Comissão Nacional de Eleições, tendo chegado a ser pedida por Constâncio uma apreciação do caso pelo gabinete jurídico do partido. Concluíram que não havia suporte jurídico para a queixa. As questões de política nacional e a campanha para as legislativas continuariam a contaminar a campanha das europeias.
Pedro Santana Lopes reconhece que foi precisamente esta a estratégia do PSD: “O líder do partido entendeu que se devia aproveitar os tempos de antena todos para falar de Portugal, de estabilidade, de maioria”. “Foi uma opção de Cavaco Silva, legítima, que respeitei, mas de que discordo”, até porque, sublinha, “Portugal precisa de pão para a boca de saber o que se passa na Europa”.
Ramalho Eanes, o anti-campanha: “Vou votar em si!”, “Pense bem, pense bem”
A campanha do PRD fez-se ao estilo de Ramalho Eanes. Um estilo marcado por uma década como Presidente da República. Muito contra os desejos de conselheiros, Ramalho Eanes manteve uma campanha tão sóbria que alguns militantes criticavam-na como sendo feita de “ingenuidades”.
Eanes recusava música na caravana da campanha, salvo o ocasional grupo folclórico, preferia o “comício-diálogo” ao “comício-espetáculo”, não parava muito tempo num local para evitar que se formassem grandes multidões e quase nunca apelava diretamente ao voto no partido, preferindo pedir um “voto consciente”.
Um dos mais conhecidos confrontos entre Eanes e a sua comitiva deu-se em Portimão. Ao chegar ao local escolhido pela distrital do PRD para o comício, Eanes apercebeu-se de que poderiam ouvir o seu discurso pessoas que estavam em esplanadas próximas. Não querendo incomodar aqueles que não quisessem ouvir um discurso eleitoral, deitou fora as palavras que tinha escrito e improvisou: “Gostaria de estar num local em que pudesse falar com quem lá estivesse a falar comigo; como aqui há esplanadas onde estarão outras pessoas, não lerei o que trago comigo, talvez por isso não agrade nem a uns nem a outros, mas tentarei o possível por mais uma vez ser verdadeiro”, explicou.
“Porque estou num ambiente em que não estão apenas militantes e simpatizantes do meu partido”, continuou Ramalho Eanes, “não apelo ao voto no PRD”, afirmou, pedindo antes que os presentes votassem “em consciência, em quem entendam que melhor possa gerir o nosso presente e o nosso futuro”.
Hermínio Martinho, o homem que antecedeu e sucedeu a Ramalho Eanes na liderança do Partido Renovador Democrático, recorda mesmo que o ex-presidente “era incapaz de pedir que se votasse no PRD”. “Uma vez veio um senhor dizer-lhe ‘Eu vou votar em si’, e Ramalho Eanes respondeu ‘Pense bem, pense bem’“, exemplificou ao Observador.
As restrições auto-impostas de Eanes foram justificadas pelo próprio em Viana do Castelo, discursando para militantes. O ex-presidente queria uma campanha digna: “Peço-vos que durante esta campanha cumprimentem sempre todos aqueles que apareçam com autocolantes de outros partidos; e mesmo que eles vos voltem a cara, como há pouco me fizeram a mim – atitude que me enoja profundamente – cumprimentemo-los duas e três vezes, quantas as necessárias para que eles compreendam que somos irmãos de nacionalidade”.
Hermínio Martinho explica esta vontade de Eanes: “Foi uma questão de caráter. É um homem impoluto, que tentou sempre ter uma postura íntegra e imparcial”. “Quem viveu o que ele viveu, sentiu o que ele sentiu e passou o que Eanes passou na consolidação da democracia em Portugal não podia vestir a sério uma camisola partidária“, afirma, notando que Ramalho Eanes nunca renegou o PRD, mas também nunca se “sentiu confortável numa postura partidária”.
Era, garante, “um defensor da democracia muito mais do que de um partido” que “se preocupava com o país e não estava interessado em tomar uma atitude divisiva de votem aqui, votem ali”. “Uma pessoa diferente”, com “uma classe que faz falta”, “intrinsecamente séria e intrinsecamente democrata”, sublinha Hermínio Martinho: “Se tivéssemos mais meia dúzia de homens como ele, as coisas podiam ser diferentes”.
Nestas europeias, o PRD não foi além dos 4,4%, mas elegeu um deputado ao Parlamento Europeu.
O ordenado (quase) apostado de Carlos Pimenta
Três décadas depois é fácil acertar no resultado de uma eleição. Em 1987 também era fácil adivinhar, pelo menos, a vitória do PSD. A verdadeira dúvida era se Cavaco Silva governaria sozinho, em maioria absoluta, ou em coligação — estava afastada a hipótese um novo governo minoritário.
Durante toda a campanha os sociais-democratas fizeram por não dar a entender que a campanha estava ganha. Mas logo a 30 de junho, no final de um comício em Belém, o ainda Secretário de Estado do Ambiente, candidato a eurodeputado, Carlos Pimenta não conteve o entusiasmo e tentou apostar um ordenado em como o PSD teria maioria absoluta, contra a então jornalista do Expresso (hoje do Público) Teresa de Sousa.
Foi a jornalista a recusar, diz-se que perguntando “Qual ordenado? O que vai receber pelo Parlamento Europeu?”. Hoje, Carlos Pimenta recorda-se mal quer da questão, quer da aposta, mas não estranha o episódio por ser “muito novo e muito otimista”, por se dar bem com Teresa de Sousa, e por ser um “grande admirador” do pai da jornalista, Silva de Sousa, antigo Diretor Geral do Ministério do Ambiente.
Agora, desafiado pelo Observador a apostar no resultado social-democrata para as Eleições Europeias de 2019 recusou de forma bem humorada o convite, preferindo investir na “maioria absoluta do bloco democrático e pró-europeu”. Para Carlos Pimenta vai a votos nesta eleição, mais do que um partido ou um governo, o sistema democrático: “Nunca tive tanto receio pelos direitos humanos básicos, pela democracia, pela sociedade, por tudo o que tomamos como garantido depois de séculos de pessoas a morrer na fogueira por nós”.
“Espero que as forças da xenofobia e da intolerância não vinguem“, conclui Carlos Pimenta, afirmando que “estamos num verdadeiro desafio civilizacional”.
A razão do PPM pintar a Europa a cores e Portugal a preto e branco
O episódio é uma nota de rodapé nos jornais da época, mas ficou na memória de quem o viveu. O Partido Popular Monárquico entrou na campanha com um orçamento muito reduzido. Tão reduzido que a certa altura os responsáveis do partido se aperceberam de que não teriam fundos suficientes para pagar a impressão a cor de todos os cartazes.
Perante o dilema, tiraram à sorte e imprimiram a cores a propaganda para as Eleições Europeias, com Miguel Esteves Cardoso, e a preto e branco a que se destinava às legislativas, com Gonçalo Ribeiro Teles. “Fica bem porque o slogan do PPM para as europeias é ‘Por uma Europa Colorida'”, comentou à época Ribeiro Teles.
Pela mesma razão, o tempo de antena do PPM para 1 de julho fez-se com “graves deficiências técnicas”, segundo comunicado do próprio partido antes da emissão. No final do bloco, o atual líder dos monárquicos Gonçalo da Câmara Pereira aproveitou para cantar um fado “às escuras” . Nestas europeias concorre como o número dois da Coligação Basta, atrás de André Ventura.
Foi uma campanha “feita por amor”, explica Miguel Esteves Cardoso ao Observador, indicando que ele próprio desenhou os cartazes e que todos os participantes se voluntariavam: “Não tínhamos um escudo. Foi uma campanha caseira. Tudo foi dado de graça”. Acrescenta Miguel Esteves Cardoso que admite que foi também uma “candidatura falhada”.
Mas o ex-candidato vê uma característica redentora, e partilhada com as candidaturas dos atuais “partidos pequenos”: “Como eles só elegem um deputado, sabe-se sempre quem é que vai para lá, quem é que dá a cara”. Fator positivo, para Miguel Esteves Cardoso, pois “nos partidos grandes os deputados escondem-se”, enquanto que nos pequenos “estão expostos”. “Uma pessoa vê os cabeças de lista dos grandes a debater e é ridículo, porque eles estão todos eleitos e fingem que podem perder“, sublinha.
“Não nos interessamos pelo Parlamento Europeu. Não queremos saber. Eu gostava de lá ir como jornalista para denunciar o que se passa lá. É uma simulação de democracia em que ninguém manda e todos colaboram na ficção do poder”, indica, já longe de ambições políticas.
O jornalista e autor retrata mesmo a relação com as europeias como desinteresse puro: “A abstenção é uma expressão muito eloquente do eleitorado. É dizer ‘Eu não estou para ir. Não me vou deslocar à mesa de voto para uma porcaria que nem sei o que é’. Votar em branco é dizer ‘Sou contra isto’. A abstenção é dizer ‘Eu nem quero saber'”.
Miguel Esteves Cardoso nem nos apelos ao voto confia: “Quando os partidos se queixam da abstenção é preciso reparar na ganância deles, na necessidade de ter mais uns milhões de votos que justifiquem as suas existências fúteis”.
JSD vs. JS: Quem era mais “Jota”?
Hoje é uma “batalha de miúdos”. Na altura, para Francisco Assis, membro da Comissão Nacional da Juventude Socialista, foi “confronto típico de uma campanha eleitoral”. A 14 de junho, com a votação à porta, a JSD acusava a JS de plágio por utilizar o termo “Jota” para se referir a si própria.
A JSD argumentava que usara o termo “Jota” desde a revolução de 1974, enquanto que a JS só adotara a designação para a campanha dupla de 1987. Mais, os slogans da JSD eram “A Jota é de mais” e “Vamos acelerar o futuro”. Já os da Juventude Socialista eram “A Jota é o máximo” e “Vamos curtir com a Jota”.
Parecenças suficientes para justificar uma reclamação formal, por carta, enviada da JSD para a JS: “Somos forçados a dizer à JS que achamos o máximo da falta de imaginação, o máximo de descaramento e o máximo de desfaçatez tentar confundir o eleitorado apropriando-se indevidamente de uma designação“.
“À distância, parece-me um bocadinho sem sentido, mesmo que na altura tenha gerado polémica por acharem que tinham uma imagem de marca e terem aparecido outros a dizer o mesmo”, sustenta Assis, que reconhece que a JSD até terá começado a utilizar o termo “Jota” primeiro.
Já o então líder da JSD, agora eurodeputado em plena campanha eleitoral, Carlos Coelho, garante que “os socialistas podiam ter tido um bocadinho mais de criatividade para encontrar um slogan deles”. “Os slogans são parecidos demais para não ter havido plágio”, lança Coelho, antes de ceder, entre risos, à classificação de Francisco Assis: “Talvez tenha razão. Talvez tenha sido uma batalha de miúdos”.
Recusando reduzir as jotas a uma disputa em 87, Francisco Assis faz ao Observador a defesa de uma instituição dos partidos que às vezes é vista apenas como uma fábrica de boys: “Hoje há uma certa tendência para desvalorizar as organizações de juventude, e elas têm aspetos negativos, mas nunca podemos esquecer os aspetos positivos — quer a JSD quer a JS tiveram líderes que se tornaram depois figuras de primeiríssimo plano na vida política portuguesa”, acrescenta.