António Costa entrou por uma porta, na mesma sala onde quatro dias antes tinha anunciado a sua demissão de primeiro-ministro, e pela porta do fundo entrou a sua mulher. Fernanda Tadeu sentou-se no chão, junto dos fotojornalistas e perto do púlpito onde o primeiro-ministro surgiu com três objetivos debatidos e estudados com a sua equipa em São Bento desde manhã: tentar aplacar a onda de choque junto de reais e potenciais investidores estrangeiros no país; dizer ao seu sucessor que as leis não podem paralisar as decisões políticas (numa crítica indireta ao Ministério Público e na defesa das decisões políticas do seu Governo nos processos em causa); cortar radicalmente com amizades e proximidades problemáticas. Uma coreografia e estratégia pouco compaginável com a afirmação que fez sobre o fim da sua carreira política — e que também deixou pelo meio da declaração com uma significativa variante.

A comunicação foi marcada ao final da manhã para a hora dos noticiários generalistas, oito da noite, e o primeiro-ministro demissionário surgiu a dedicar a parte inicial da intervenção a explicar as decisões políticas em processos como o do centro de dados de Sines e a exploração do lítio nas minas de Montalegre e Boticas. Foram os dois exemplos em que pegou — e que estão no centro dos processo judiciais que envolvem governantes, ex-governantes, autarcas, amigos e conselheiros seus –, para defender que os políticos não se devem “colocar numa posição de paralisia ou de medo” perante os processos judiciais. Não disse por estas palavras, mas foi isso mesmo que acabou por transmitir, mesmo que tenha jurado não estar a querer interferir na investigação judicial que envolve o seu Governo:

Somos um Estado de Direito onde a lei se cumpre, mas onde criamos condições para atrair e acolher o investimento e dizer aos diferentes organismos da administração que não é o facto de haver lei, de estarmos todos obrigados ao estrito cumprimento da lei que isso nos deve colocar na situação da paralisia, do medo de violar a lei. Teremos de cumprir a lei, mas saber que a lei mão se cumpre na paralisa da decisão mas no rigor da decisão”.

Quando o Ministério Público investiga pressões de privados junto do poder político para acelerar processos nos projetos para o hidrogénio verde e o lítio, Costa vem dirigir-se diretamente aos futuros governantes: “Tenham confiança na vossa capacidade de aplicar com inteligência a lei. Não inventem problemas onde não existem, não se protejam com burocracias onde podemos ter maior simplicidade e tenham confiança e não tenham medo de decidir porque isso é a função que temos e responderemos pelos atos que cada um pratica”.

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A tese do políticos vs. técnicos

Para o primeiro-ministro demissionário, entre os vários interesses públicos em jogo em cada projeto de investimento (e em particular nos que estão a ser investigados e que foi dando como exemplo), cada um dos que os defende “cumpre bem a sua função”. Quanto à função do Governo, diz, “é procurar articular diferentes posições e ver como simultaneamente maximizando o porto [de Sines], aproveitamos a zona industrial sem sacrificar os valores ambientais. Isto significa ação política, não é delegável em qualquer competência técnica. A ação política tem de ser preservada”, disse balizando-a:

Quase sempre o interesse público, na atração de investimento, exige harmonização com outros interesses públicos tão ou mais relevantes como a preservação de valores ambientais, o desenvolvimento regional, o bem estar das populações ou a garantia da salutar concorrência entre empresas o que exige negociação, articulação e concertação”.

Recorde-se que no caso do porto de Sines, que é citado por Costa, a localização do centro de dados que se estendia sobre a Zona Especial de Conservação (ZEC), acabou mesmo aprovado com suspeitas de pressão política e contra o Instituto de Conservação da Natureza, por exemplo. Quando tocou neste assunto, Costa foi até 1971 e a Marcello Caetano, para dizer que a ambição de ter ali um porto estratégico de águas profundas é antiga e que as proteções ambientais que foram sendo feitas naquela região já se sabia “conflituarem” com os projetos para o local. “O que temos é de reduzir a dimensão do conflito e poder encontrar as formas adequadas para não desperdiçar investimento”, afirmou a este propósito.

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Sobre o lítio, defendeu a ação do Governo dizendo que “um país que tem poucos recursos naturais e tem um minério estratégico para a transição energética como o lítio não se pode dar ao luxo de não aproveitar esse lítio”: Reconhece que isso “implica mitigar os impactos e inconvenientes que isso tem nas populações. É necessário que quem promove esses investimentos cumpra o que foi decidido nesse estudo de impacto ambiental”, reforçou, adiantando que isso também não pode parar um investimento importante para o país. À ação política cabe, mais uma vez,  “promover o diálogo, a negociação, a concertação para assegurar que o conjunto dos interesses públicos todos sejam protegidos. Nada do que acontece, afirmou, “se faz só por decreto ou por magia, mas dialogando e isso é muito importante”, diz na defesa da ação política (dos seus governantes e ex-governantes) nestas situações.

Receio com fuga de investimento estrangeiro

Além da preocupação política com a perceção que estes casos trazem sobre os governos — no caso, os seus governos –, Costa arrancou a declaração a mostrar preocupação com o impacto que o caso judicial possa ter perante investidores estrangeiros que queiram vir para Portugal. Aliás, foi a principal justificação que apresentou para vir a público falar do assunto: “Faço-o para que Portugal  não desperdice oportunidades estratégicas para o seu desenvolvimento e sobretudo para que futuros governos não percam instrumentos de ação política que são essenciais à atração do investimento, à valorização dos nossos recurso naturais e ao aproveitamento das infraestruturas de que o país dispõe”.

A todos os que têm depositado confiança para investir em Portugal quero dizer que hoje e sempre o investimento empresarial é bem-vindo e vai ser sempre acolhido”

Costa garantiu, na parte das perguntas, que o rating português não está em risco, até porque “o país tem contas públicas sólidas”, elencando dois excedentes que tem no currículo e o terceiro previsto para o próximo ano. “Não é coisa pequena”, afirmou. “Não tenho qualquer receio quanto ao rating“, afirmou.

E que, mais uma vez, foi precisamente a atração de investimento estrangeiro — e até sublinhou que o de Sines é o maior investimento estrangeiro em Portugal desde a AutoEuropa — que o fez vir falar nesta altura. Isso é a “ideia que parecia muito perigosa de que os governantes não devem agir para atrair investimento, que não devem agir para resolver problemas que surgem, para simplificar investimento e procedimentos burocráticos. São ideias perigosas para o desenvolvimento do país” e que, do seu ponto de vista, podem “inibir e limitar” quem vier a governar.

Afastar-se dos amigos tóxicos

Os processos judiciais não envolvem apenas decisores políticos e há nomes muito próximos do primeiro-ministro que acabaram por fazer com que a investigação se estendesse a ele mesmo, num inquérito instaurado pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça e que foi o que fez Costa pedir a demissão. Costa voltou a dizer que foi “surpreendido” por “um processo judicial com suspeitas muito graves que determinaram” a sua demissão e abriu logo a declaração a pedir desculpa pelo que se tinha passado dentro do seu próprio gabinete, a quantia de dinheiro vivo espalhada na sala de trabalho do seu chefe de gabinete, Vítor Escária.

A apreensão de envelopes com dinheiro no gabinete de uma pessoa que escolhi para comigo trabalhar, mais do que magoar pela confiança traída, envergonha-me perante os portugueses e tenho o dever de pedir desculpa.”

O corte total com este episódio era uma das principais intenções desta declaração. A exoneração de Escária, imediatamente depois de ser noticiada a apreensão em causa, já pretendia ser um primeiro sinal nesse sentido, mas Costa ainda acrescentou, já na parte da resposta às perguntas dos jornalistas, que a escolha que fez de Escária teve por base “o sólido currículo académico”, admitindo que nele depositava “natural confiança”. E, por fim, que de tudo o que foi ouvindo sobre as intervenções de Escária nos projectos de investimento em causa: “Umas são do meu conhecimento, outras do meu absoluto desconhecimento”.

O afastamento mais radical foi com o seu “melhor amigo” Diogo Lacerda Machado. Quando questionado sobre se o autorizou a falar em seu nome — como consta na indiciação do Ministério Público — Costa começou pela separação profissional: “Há muitos anos que não colabora neste gabinete e não tinha qualquer mandato da minha parte para fazer o que quer que seja neste caso referido. Nunca falou comigo a respeito deste assunto em circunstância alguma”.

O que quer que tenha feito ou não neste processo nunca fez com a minha autorização, conhecimento, interferência e nunca por nunca falou comigo sobre este assunto”.

Depois a parte pessoal: “Apesar de num momento de infelicidade de ter dito que era o meu melhor amigo, o que é a realidade é que um primeiro-ministro não tem amigos. E quanto mais tempo exerce, menos amigos tem”.

Primeiro exclui “cargos públicos”, depois corrige para “cargo executivo”

“Com grande probabilidade não exercerei nunca mais qualquer cargo público”. A afirmação foi dita logo na resposta à primeira pergunta dos jornalistas, sem que ninguém tivesse dirigido a pergunta ao primeiro-ministro e sem que fechasse totalmente essa porta. Mas acabaria por ter uma variante significativa do ponto de vista político mais à frente.

Não está no meu horizonte nem no horizonte de ninguém que volte exercer qualquer cargo executivo

Até aqui António Costa tinha sempre rejeitado outros cargos políticos que não fossem os executivos, o que excluía do seu caminho político à Presidência da República. E na segunda vez em que, nesta mesma conferência de imprensa, voltou a falar do que parecia a declaração do fim da sua carreira política, já balizou esse futuro, excluindo concretamente cargos executivos — que era os únicos que assumia até aqui.

Quanto ao mais, continua sem dizer se demite o ministro João Galamba, embora seja expectável que seja isso que vai fazer a Belém na próxima terça-feira à tarde quando se reunir com o Presidente da República. E tenta proteger o governador do Banco de Portugal — que está no meio de um vendaval de críticas da oposição, depois de o seu nome ter sido apresentado por Costa a Marcelo como solução alternativa às eleições antecipadas.

O primeiro-ministro demissionário queria que Marcelo nomeasse Mário Centeno para o seu lugar, mantendo intocável a maioria absoluta socialista no Parlamento. Mas agora acrescenta que o atual governador do Banco de Portugal só daria uma resposta ao Presidente — se Marcelo fosse pela sua nomeação — depois de falar com o chefe de Estado, “conhecer as condições de governação e se saber se a comissão política nacional do PS corresponderia à proposta” que fez. “O diálogo com o presidente seria essencial”, sacudiu o primeiro-ministro sobre um assunto sensível e que acabou por levantar dúvidas da oposição sobre a independência de Centeno na função que agora ocupa.

O que Costa garante ter feito foi colocar uma hipótese em cima da mesa que acalmaria o impacto da situação atual até para a reputação externa do país, apresentando uma figura “com reconhecimento e credibilidade internacionais”. Mas o final dessa história foi escrita por Marcelo que convocou eleições para 10 de março.