Há muitos anos, não sei precisar quando, estava a seleção argentina em Berlim para disputar uma partida, quando Carlos Bilardo, o treinador da alvi-celeste começou a moer a paciência aos jogadores: que tinham de melhorar a técnica, que o jogador argentino tem de ser capaz de fazer tudo com uma bola, até que lhe saiu que os jogadores argentinos deviam ter uma bola no pé de manhã, à tarde, à noite e até a dormir.
Bilardo tanto repetiu este bordão que um dia Maradona saiu do seu quarto a dar toques na bola sem a deixar cair, desceu no elevador ainda a dar toques, entrou na sala das refeições do hotel ainda a dar toques na bola sem a deixar cair, sentou-se e – note-se que a bola ainda está a subir no ar e descer até ao pé de Maradona que a faz de novo subir e assim consecutivamente – começou a tomar o seu pequeno-almoço (sendo o primeiro ingrediente um pão). Feliz, Bilardo voltou-se para os seus jogadores e disse “Veem? É por isto que ele é o Maradona”.
Espero que não me levem a mal o facto de os dois parágrafos anteriores serem um plágio de uma passagem de um texto recente de Jorge Valdano sobre Maradona – ao fim e ao cabo, William Faulkner dizia que os grandes escritores não pedem emprestado, roubam. Messi, por exemplo, roubou despudoramente o toque de bola de Maradona, a sua criatividade (até o seu melhor golo, plagiando, contra o Getafe, o golo sem mão de Maradona contra a Inglaterra em 1986), e elevou-a a um novo patamar de consistência.
Não tenho a mínima dúvida que Messi tem a capacidade técnica para fazer exatamente o mesmo que Maradona fez naquele dia – e caso fosse desafiado (e pago para isso) Messi provavelmente fá-lo-ia todos os dias. Com uma diferença: o ato seria filmado pela sua entourage, colocado no Instagram, numa qualquer rede social chinesa, no Twitter. Com sorte ainda víamos Messi a assinar mais um contrato publicitário enquanto dava toques na bola.
Nisto Messi e Maradona são muito diferentes – nem sequer sabemos dizer quem Maradona roubou, porque nesses tempos não havia uma câmara constantemente atrás dos jogadores, muito menos dos jogadores que anteciparam Maradona. Também por isso este é, desde 1986, um mito que provocou uma idolatria que julgamos ser impossível de repetir, mesmo no caso de Messi. O que mudou, desde os dias de Maradona até aos de Messi, porque é que Maradona se auto-destruiu (ou quase) enquanto que o mais próximo que Messi esteve de um escândalo foi uma fuga ao fisco e a tentativa falhada de sair do Barcelona?
O exercício de escolher dois jogadores a dedo e, ao colocá-los lado a lado, mostrar as inúmeras diferenças entre ambos pode soar a demagogia – ao fim e ao cabo, quaisquer dois jogadores terão um mundo de diferença entre si. Mas Maradona e Messi são apenas símbolos de uma mudança maior: antes criavam-se conteúdos sobre futebol porque o povo adorava futebol; hoje há futebol de modo a alimentar a indústria de conteúdos. Este não é um texto sobre Maradona e Messi – é um texto sobre essa mudança, que sendo abissal se foi executando de forma gradual e quase impercetível.
Os génios-pobres e os garotos-estrela
Uma simples prova da proposição acima é o facto de as competições terem continuado, pese embora sem público: vemos 22 homens em campo, bancadas vazias e ouvimos o som dos adeptos nas bancadas – um som falso, recriado a partir das milhares de horas de som de futebol que o mundo acumulou nas últimas décadas, um som mais próximo da sonoplastia de um filme que de uma emoção imediata, incontida, como a que o futebol costumava proporcionar.
É certo que tal só sucede por estarmos no meio de uma pandemia, mas não foi apenas neste aspeto que o mundo do futebol mudou. Antigamente, os jogadores de futebol tinham pouco mais que a 4ª classe (quando a tinham); Maradona, por exemplo, cresceu numa casa feita pelo próprio pai, de chão de terra e chuva a entrar pelas chapas de zinco. Quando Maradona gastava mais umas solas de umas sapatilhas, à conta de tanto jogar futebol, Maradona Sénior alertava-o para as dificuldades financeiras da família, espancando-o antes de se embebedar.
Agora pensem em Paul Pogba, que saiu aos 19 anos para a Juventus por não aceitar que o seu clube de formação, o Manchester United, não lhe pagasse um prémio de alguns milhão de euros aquando do seu primeiro contrato profissional. Como tal, deixou esgotar o contrato e saiu de graça para a Juve, que estava disposta a dar-lhe os ditos milhões. E assim Pogba, aos 19 anos, era um multimilionário e nunca mais teria de trabalhar na vida, mesmo que tivesse feito menos de meia dúzia de jogos como profissional na vida.
Hoje os melhores jogadores são quase-estrelas aos 16, 17 anos: Hazard era-o aos 16, bem como Messi ou Pulisic ou Jordan Sancho desde a primeira vez que vestiu a camisola do Dortmund. Têm dezenas de milhares de seguidores no Instagram mesmo antes de chegarem à equipa sénior, agentes, por vezes até contratos publicitários, sem que alguma vez tenham feito um jogo nas camadas séniores – basta que brilhem num campeonato europeu de sub-15 ou sub-17.
Nem sempre as quase-estrelas perdem o prefixo – volta e meia adquirem outro, o terrível “ex-” de “ex-estrela”. Foi o que aconteceu com Bojan, que nunca chegou a ser o novo Messi, talvez por jogar lado a lado com o verdadeiro Messi. Mas não há a mínima dúvida que os miúdos-jogadores, hoje, estudam mais, estão mais preparados para o possível estrelato, encaram o futebol como uma via para o enriquecimento e são – como dizer isto de forma delicada? – mais profissionais, caindo menos nas armadilhas dos antigos.
Antigos como Maradona. A primeira vez que Maradona experimentou cocaína foi aos 22 anos, em Barcelona, uma etapa da sua carreira que o viu tornar-se o primeiro jogador daquele clube a ser aplaudido pelos adeptos do Real Madrid, um tornozelo partido numa entrada violentíssima de Goikoetxea, famoso carniceiro do Athletic Bilbao, alguns troféus e um motim, na final da Copa del Rey de 1984 contra nem mais nem menos que o Athletic Bilbao. Após várias entradas violentas de Goikoetxea, insultos racistas dos homens do Bilbao e das bancadas, Maradona perdeu a cabeça, ou pelo menos impeliu-o com força contra um jogador do Bilbao, iniciando uma batalha campal que incluiu Goikoetxea a aplicar-lhe um golpe de karaté e que ficou para a história e determinou o fim da sua carreira na cidade de Gaudí.
Só neste curto período a carreira de Maradona teve mais emoção, caos e irracionalidade que 99,9% das carreiras atuais, com a possível exceção de Paim. Há razões para isto – uma delas é a falta de preparação que Maradona tinha para arcar com a popularidade do seu talento; ele é o primeiro ídolo futebolístico da era da comunicação em massa, das transmissões em direto e a cores para todo o mundo, dos jornais diários de futebol.
Outra das razões para o caos que permeou a carreira de Maradona é o futebol que se jogava – um futebol extraordinariamente violento, criado (por assim dizer) para ser disputado entre jogadores grandes e fortes, e não por anões tecnicamente geniais. A violência que Maradona sofreu em campo à conta do seu talento não tem paralelo com nenhum outro desportista, nem mesmo Jordan ou Kobe Bryant. Messi nunca sofreu uma falta que sequer se aproximasse de uma das 10 ou 20 entradas que os adversários tentavam efetuar sobre Maradona em cada jogo. Hoje protege-se o talento; antigamente considerava-se que o físico tinha direito divino a decidir o jogo da forma que entendesse.
Tudo isto tornou Maradona um jogador sui generis: os seus colegas diziam que estava sempre pronto a ensiná-los, que queria que a equipa vencesse, que era um treinador em campo; mas sempre que vi Maradona a jogar vi um homem a lutar pela vida: não driblava porque era a decisão correta, driblava para evitar que lhe partissem de novo o tornozelo.
Agora é que é? Ou antes é que era bom?
Olhando para a lista de feitos de Maradona e Messi, nem sequer faz sentido discutir quem é o melhor: Maradona marcou 312 golos em 588 jogos como sénior, foi campeão do mundo de seleções, ganhou a Primera Divisón argentina, uma Copa del Rey, uma Copa da Liga e uma SuperCopa em Espanha, foi campeão duas vezes pelo Nápoles em Itália, levantando ainda a Taça de Itália, a Taça UEFA e uma SuperCopa italiana. E é tudo – forma de dizer que estou a descontar o final de carreira errático e agonizante, com passagens efémeras por vários clubes.
Por sua vez, Leo Messi marcou 652 golos em 775 jogos, leva dez campeonatos espanhóis, seis Copas del Rey, oito SuperCopas de Espanha, quatro Champions (embora pouco tenha jogado na primeira, de 2005/6), três SuperTaças europeias, três campeonatos do mundo de clubes.
Só que não é assim tão simples decidir quais os maiores feitos quando os colocamos em contexto: Messi é mais consistente; mas Messi cresceu numa era em que as camadas jovens eram ensinadas desde cedo um tipo de futebol, acompanhados na escola, e introduzidos na equipa com paciência. Maradona simplesmente tornou-se profissional aos 15 porque era melhor que todos os outros e tinha de ajudar a alimentar a família.
Os campos hoje são melhores e a arbitragem protege os artistas; mas os adversários também são mais argutos e taticamente inteligentes e quando vemos um jogo de Maradona e um de Messi vemos que Maradona tinha mais espaço para progredir (embora as chances de morrer nesse ato fossem altamente mais elevadas que as de algum adversário sequer pensar em fazer algo desagradável a Messi).
Messi leva mais oito títulos de campeão do que Maradona, mas o que é mais difícil: levar, em sete anos, o Nápoles (que fora 14.º na época anterior à sua chegada e cujo plantel era razoavelmente patético) aos seus dois únicos títulos de campeão da história, ou conquistar dez títulos no Barcelona com Xavi e Iniesta e, durante quatro anos, Guardiola a treinar?
Ninguém sabe a resposta a estas perguntas. Sabemos que era mais difícil ser campeão europeu de clubes no tempo de Maradona, porque nessa era a então Taça dos Campeões era disputada apenas por clubes que efetivamente tivessem sido campeões na época anterior – só isso afastaria Ronaldo de várias das suas Champions; não havia fase de grupos, era logo a eliminar.
A criação da Champions terá sido talvez o momento em que o futebol decidiu que se ia tornar uma mega-indústria. Uma mega-indústria tem exigências: mais jogos, mais televisão, mais jornais e sites – o que implica mais médicos, mais nutricionistas, maior proteção dos jogadores, que hoje “falam” através da equipa de Relações Públicas dos clubes e através da sua equipa de redes sociais.
Maradona ainda pertencia ao tempo em que os jogadores diziam o que queriam, quando queriam, porque eram vistos como bichos exóticos. Eram amigos dos jornalistas, que escondiam os seus defeitos – no caso de Maradona a coca, o ocasional ato de violência, que levou pelo menos duas vezes a polícia a fazê-lo passar a noite na prisão, por supostamente ter batido na mãe dos seus filhos e, anos mais tarde, numa namorada, isto descontando tiros de pressão de ar contra jornalistas que abancaram à porta de sua casa.
Isto nunca aconteceria a nenhum Messi – ao primeiro controlo anti-doping feito pela equipa médica do clube inventava-se uma lesão e o jogador ia desintoxicar-se discretamente num qualquer lugar a centenas de quilómetros. Ou era despedido no momento, como Mourinho fez com Mutu.
Basta olhar para as redes sociais atuais para saber que nunca, hoje, Messi ou um qualquer aspirante a Messi poderia passar dias sem aparecer aos treinos – porque logo pela matina as redes sociais dos clubes colocam imagens do treino, a cujos primeiros 15 minutos os jornalistas assistem, e o escrutínio é tão grande que seria impossível a um treinador dizer “bom, ele não apareceu nos últimos 4 treinos, mas vai jogar na mesma porque é o Maradona”.
O espectáculo não vai parar, não pode parar
Um resumo destes últimos 40 anos de futebol seria assim: os jogadores são hoje mais cultos, crescem dentro de clubes que os ensinam a cuidar do corpo, a pensar em equipa, a terminar o 12.º ano, cumprem códigos internos de conduta rígidos, têm médicos e nutricionistas a avaliá-los quase diariamente, sofrem menos violência dos adversários, mas mais desgaste muscular, descansam mais, bebem menos, fumam menos, são geralmente menos agressivos (os próprios pais serão provavelmente menos agressivos que o pai de Messi), e são muito mais profissionais e desinteressantes que qualquer jogador de há 40 anos, porque fazem parte de um espectáculo que nunca pára porque há contratos de transmissão e patrocínios nas camisolas e namings de estádios e contratos publicitários para alimentar e esta indústria nunca pode parar, nunca, nem que se tenha de usar sons enlatados de adeptos como numa má sitcom.
Maradona foi um génio, o primeiro génio a ser explorado pelos media, que na sua época descobriram que o futebol podia ser uma mina. Um génio nunca polido, que não teve escola de futebol ou pais que o educassem – a primeira casa dos seus pais, no norte da Argentina, junto a um rio, era feita de argila e era para lá que Diego fugia quando já não aguentava Maradona.
Maradona foi o último génio por polir, é uma emanação de um outro tempo, em que se nascia em casas de argila e se assinava de cruz, em que um jogador de futebol era ídolo do povo pobre e não um exemplo para a sociedade. Envolveu-se com a máfia, terá causado muito mal a quem o rodeava (exceto se fosse um colega de equipa), ao passo que Messi apenas causou dano ao fisco espanhol e, semanalmente, ao ego dos pobres adversários.
Hoje vemos Messi jogar e sabemos que ele vai receber bem, com o corpo orientado, e sabemos que ou vai tabelar ou vai procurar um passe de rutura ou vai da direita para o meio procurar o remate em arco. Mas antigamente, quando víamos Maradona jogar, nunca fazíamos ideia do que ele ia fazer.
Nos tempos de hoje dir-se-ia que Maradona daria ótimos conteúdos.