À volta de Nicolás Maduro, quase todos pareciam olhar para o céu. O Presidente da Venezuela já discursava há alguns minutos, perante uma multidão de guardas em formação, por ocasião do 81º aniversário da Guarda Nacional Bolivariana (GNB). Ao lado, tinha várias patentes militares de topo, entre as quais o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López.
Só a mulher do ditador venezuelano, a deputada Cilia Flores, destoava naquele ambiente militar. Vestida com um conjunto saia-casaco, além de olhar para a frente, parecia sorrir na altura em que o seu marido apelava à “Venezuela honesta, trabalhadora e consciente”, como é habitual nos discursos que vem fazendo.
“Faço um apelo à Venezuela honesta e trabalhadora, à Venezuela consciente: vamos apostar no bem do nosso país. Chegou a hora da recuperação económica. E necessi…”
A meio da frase, ouve-se uma explosão vinda do céu, para o qual todos passam a olhar — e aqueles que o olhavam até agora de forma vazia, como Vladimir Padrino López, passam a fazê-lo em alerta. Depois, Nicolás Maduro desaparece por trás de uma barreira de escudos à prova de bala, que os seus seguranças colocam à sua frente. Ainda tenta continuar o seu discurso. “E necessitamos…”, diz, como se nada se passasse.
Mas passa — e já não é ocasião para discursos. À sua volta, dizem: “Sabotaram-nos!”. E, pouco depois, já é o próprio Nicolás Maduro que dá ordem de saída. “Vamos, vamos pela direita”, diz aos seguranças. Nessa altura, ouve-se uma segunda explosão, mais distante. Ao ouvi-la, em poucos segundos, os guardas, que até agora se dispunham em formação na Avenida Bolívar, fogem numa debandada geral digna dos piores pesadelos de qualquer general (momento que pode ver neste vídeo a partir dos 0m31s).
A Venezuela de Nicolás Maduro não se faz de imagens agradáveis. Ao longo dos últimos anos, desde que a crise dos preços do petróleo afundou este país cuja economia em muito depende do crude, o resto do mundo ficou a saber da Venezuela através de imagens de motins e manifestações que levaram à morte mais de 100 pessoas só em 2017, de filas intermináveis nos supermercados ou de pessoas que, perante a escassez alimentar, são pele e osso.
Porém, poucas imagens desses momentos que têm marcado a vida nacional venezuelana terão por si só tanta força e eficácia como esta que aqui descrevemos: a de um regime que, reunido para se comprazer a si mesmo numa cerimónia militar, é atacado pelos céus e abandonado em terra.
Já em segurança, no Palácio de Miraflores, Nicolás Maduro faria um novo discurso poucas horas depois. Ali, refeito do susto, passou ele a disparar em todas as direções. Apontou o dedo à Colômbia, responsabilizou o seu Presidente cessante Juan Manuel Santos pela autoria do atentado, fez o mesmo com Donald Trump e referiu ainda os exilados venezuelanos na Flórida e a ultra-direita.
E continuou a insistir na ideia de que, mais uma vez, o ataque com dois drones veio de fora da Venezuela. “Os magnicídios não são um costume venezuelano”, disse, para depois elencar uma série de elementos que agentes estrangeiros estão a “introduzir na vida política do país”. “A queima de seres humanos há um ano, a violência para impor aquilo que não se consegue impor pela política, tentativas de golpes de Estado, todos frustrados, todos derrotados, e agora um atentado contra o Presidente da República”, disse.
Nesta frase, Nicolás Maduro comete pelo menos um equívoco: o de achar que as tentativas de golpe de Estado não fazem parte da história venezuelana. Antes pelo contrário — e ele, que dirige um regime que se aguenta no poder desde 1999, sabe que o dia de uma tentativa de larga escala para derrubar o seu governo pela força militar passou a estar mais próximo desde que o céu explodiu sobre a Avenida Bolívar.
“Os golpes de Estado fazem parte da nossa tradição”
Não são poucos os militares venezuelanos presos. Em junho, de acordo com a ONG Justicia Venezolana, havia 152 militares atrás das grades, sendo que 60 tinham sido presos já no decorrer deste ano de 2018. Em grande parte dos casos, estes militares foram encarcerados por uma só razão: estariam a preparar um golpe de Estado contra Nicolás Maduro.
Em abril de 2017, numa altura em que enfrentava grandes manifestações contra o seu regime, Nicolás Maduro deixou bem claro num discurso o que esperava — e o que não admitia — aos militares das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas: “Não é tempo de traidores, não é tempo de traição, não é tempo de vacilantes. Que cada um se defina. Ou estamos contra a pátria, ou estamos com ela”. Dois meses mais tarde, Óscar Perez, um ex-militar conhecido como o “Rambo da Venezuela”, dirigiu um ataque de “nacionalistas patriotas institucionalistas” que roubaram um helicóptero da polícia para, a partir dele, disparar e lançar granadas contra o Tribunal Supremo.
Aos olhos dos mais distraídos, Nicolás Maduro pode soar como um homem paranóico com a sua segurança e o seu poder. Porém, Hernán Castillo, professor na Universidade de Simón Bolívar, de Caracas, especialista em temas militares, olha para este cenário com naturalidade. “Na Venezuela, existe um quadro sumamente crítico do qual uma das saídas possíveis é a violência militar. Eu não a apoio, mas não se pode descartar este cenário”, diz ao Observador, numa entrevista por telefone.
“Os golpes de Estado são sempre uma possibilidade, não se podem descartar, até porque fazem parte da nossa tradição”, explica o académico. Nas últimas três décadas, houve três tentativas deste género na Venezuela: em fevereiro de 1992, com a liderança de Hugo Chávez, que acabou preso após o fracasso do levantamento militar contra o governo de Carlos Andrés Pérez; em novembro de 1992, também por setores próximos a Hugo Chávez; e, por fim, em 2002, já Hugo Chávez era Presidente da Venezuela e o poder quase lhe foi arrancado das mãos.
Hernán Castillo não acredita que um golpe de Estado esteja por perto — mas para todos os efeitos não afasta essa possibilidade. “Historicamente, os militares venezuelanos sempre conspiraram, porque vivemos num sistema democrático onde as instituições são muito débeis e frágeis e, por isso, facilmente corrompíveis”, diz. “Existe sempre a possibilidade de haver um levantamento militar. O próprio Hugo Chávez deu-se a conhecer ao país através de um.”
Também Ronal Rodríguez, investigador do Observatório da Venezuela da Universidade de Rosário, na Colômbia, não descarta essa possibilidade. “É preciso ter em conta que na Venezuela os espaços políticos têm sido consecutivamente fechados. Isso cria espaço para que os setores mais radicais da oposição ponham em marcha métodos mais violentos, mesmo que grande parte da oposição não concorde com eles”, diz o investigador ao Observador, também por telefone.
Raúl Gallegos, consultor de geopolítica e autor do livro “Crude Nation: How Oil Riches Ruined Venezuela”, também não descarta a possibilidade de haver um golpe de Estado na Venezuela — mas assegura que esse não é, para já, um acontecimento dentro do domínio do provável. “É verdade que há um descontentamento geral nas forças armadas, da mesma maneira que há na sociedade em geral. Mas não temos visto nada que nos leve a dizer que há um grupo armado, com meios e vontade para derrubar Maduro”, diz ao Observador, por telefone.
O analista colombiano explica que, ao longo dos tempos, Nicolás Maduro tratou de pôr nas mãos dos militares meios suficientes para que estes não se levantassem contra o seu poder. Além da indústria petrolífera, é sabido que os militares têm o controlo do narcotráfico na Venezuela. “Chávez e Maduro foram muito hábeis para ter estratégias que levassem os militares a estarem comprometidos com o governo”, sublinha. “O livre-trânsito de corrupção em grande escala é um exemplo disso. Por um lado, mantêm-nos felizes. Por outro, no dia em que esses militares começarem a mostrar desagrado, o governo vai ter com eles e diz-lhe: ‘Escute, você fez muito dinheiro connosco de forma ilegal. Se não quer ser preso, não levante ondas.”
Além disso, explica Raúl Gallegos, hoje em dia será mais fácil corromper um militar do que em tempos de vacas gordas. Aqueles que se deixavam comprar com somas chorudas hoje podem abrir mão dos seus princípios por algo tão simples e corriqueiro como uma caixa de comida. “Quando as pessoas têm menos, o governo compra-as mais baratas. Se estás numa de querer dizer ‘não’ ao governo, o mais certo é que haja uma grande fila de pessoas dispostas a vender a sua lealdade por muito menos. Por isso, em vez de te deixares corromper com uma casa, corrompes-te com a garantia de comida”, diz. “Isto acontece com militares e com civis, é igual.”
O analista colombiano refere ainda que o regime de Nicolás Maduro e a sua sobrevivência estão alicerçados naquelas que diz serem as suas “duas melhores valências”: a propaganda e os serviços de informação. “O aparato de intelligence do governo da Venezuela é muito, muito eficaz. E o governo é também muito bom a utilizar as informações que consegue para fins propagandísticos. Eles são muito hábeis nisso”, diz. “Nos próximos tempos, vão apostar com força nisso. Vamos assistir ao chavismo a tentar manter-se no poder a todo o custo.”
Um Erdoğan na Venezuela
Sobre o alegado atentado de sábado pouco se sabe ao certo. Aos relatos iniciais de dois drones munidos de explosivos, juntou-se um tweet de uma organização de militares anónimos até aí pouco conhecida entre os venezuelanos. No Twitter, o grupo Soldados de Franelas fez um post com o vídeo do discurso de Nicolás Maduro e assumiu a autoria daquela ação. “A operação era sobrevoar dois drones carregados com C4, o objetivo era o palco presidencial. Os snipers da guarda de honra derrubaram os drones antes de estes chegarem ao objetivo. Demonstrámos que são vulneráveis. Não o conseguimos hoje, mas é uma questão de tempo”, lia-se no tweet.
https://twitter.com/soldadoDfranela/status/1025880632084320259
Pouco depois, Patricia Poleo, uma suposta jornalista venezuelana exilada nos EUA, lia uma declaração dos Soldados de Franelas. “Vai contra a honra militar manter no governo aqueles que não só se esqueceram da Constituição como fizeram da função pública uma maneira obscena de se enriquecerem”, leu Patricia Poleo.
Não é certo que este grupo tenha algum alcance. “Ninguém os conhece, não são como as FARC na Colômbia, que eram um grupo guerrilheiro, estabelecido, com uma hierarquia e do qual se sabem os números de armas e operativos tais como as áreas de influência”, compara Raúl Gallegos. “Qualquer pessoa pode montar uma página no Twitter e dizer que é isto e aquilo. Isto é muito fácil.”
Mais difícil é o que vem a seguir — seja para este suposto grupo, seja para a oposição. É essa a certeza que dão os três analistas consultados pelo Observador, que apontam para este momento como o início de uma nova onda repressiva do regime de Nicolás Maduro. Esta segunda-feira, foram detidas seis pessoas por supostas ligações ao alegado atentado contra Nicolás Maduro. E a promessa é a de que vai haver novas detenções, à medidas que as buscas continuam. Esta segunda-feira, o Hotel Pestana Caracas, propriedade do Grupo Pestana, de Portugal, foi evacuado pelos serviços secretos venezuelanos para ali serem feitas buscas.
Ronal Rodríguez prevê que, nos próximos tempos, Nicolás Maduro copie o exemplo de um dos poucos líderes mundiais que, nos dias que se seguiram ao incidente de sábado, demonstraram solidariedade com o Presidente da Venezuela. “A partir de agora, Maduro vai usar a fórmula Erdoğan”, disse, referindo-se ao Presidente da Turquia, que subiu o nível de repressão no seu país após uma tentativa de golpe de Estado em julho de 2016, ao mesmo tempo que, após um referendo de execução questionável, mudou a Constituição. Quanto ao texto fundamental da Venezuela, Nicolás Maduro já adiantou caminho, ao criar uma Assembleia Constituinte que, neste momento, leva já cerca de 80% da nova Constituição redigida. A votação, num parlamento totalmente chavista, será uma mera formalidade.
“O nível de repressão vai ser muito forte, sobretudo com os opositores. E tal como Erdoğan, Maduro vai também procurar reprimir pessoas que estão fora das suas próprias fronteiras”, diz. Para Erdoğan, o alvo foram os curdos no Norte da Síria. Para Maduro, explica Ronal Rodríguez, o alvo poderão ser os políticos exilados no outro lado da fronteira com a Colômbia.
Insistindo na possibilidade de um golpe de Estado, e sublinhando que Nicolás Maduro teme verdadeiramente esse cenário, Hernán Castillo refere que, para já, a repressão deverá começar precisamente pelas forças armadas. Para justificar a sua análise, o professor da Universidade Simón Bolívar remete para as imagens de sábado. “A atitude que os militares tiveram foi de uma apatia e de uma fraqueza inacreditáveis. Nenhum governante pode viver com aquilo. Num país normal, se houvesse um ataque ao Presidente da República, os militares seriam os primeiros a defendê-lo”, diz. “Mas ali não. Fugiram, bateram em retirada sem ordens para isso. Fugiram! Isto demonstra a perda moral e a fratura que existe entre os militares.”
Assim, continua Hernán Castillo, é “normal” que nos próximos tempos os militares venezuelanos se entreolhem pensando, afinal, quem entre eles é ou não um “traidor”. E é aí, conclui o analista, que começam as guerras civis. “Há muito tempo que na Venezuela há todas as condições emocionais, psicológicas, culturais e políticas para haver uma guerra civil”, diz. “Agora, hoje, mais do que ontem.”