É bem-sabido que as melhores coisas nos chegam por vezes dos sítios de onde menos as esperamos. E, se não era bem-sabido, fica a ser bem-sabido agora.

Os ingleses — e logo os ingleses! — conseguiram criar a série de televisão mais transversal de sempre. Uma série que rebentou com estrondo aquela parede que havia entre os programas vistos por um tipo de pessoas e os programas vistos por outro tipo de pessoas. Por exemplo, e não façam segundas leituras, entre as pessoas que viam uma ópera do Wagner na RTP2 e as pessoas que viam a crónica criminal do Hernani Carvalho. Acho que é assim que se escreve Hernani.

O mais perto que alguém tinha chegado dessa transversalidade foi com o Baby TV, muito apreciado quer por bebés de seis meses quer por adultos em LSD. Mas, ainda assim, com um alcance relativamente restrito.

“Downton Abbey” pôs os chiques e as sopeiras com os rabos sentados nos sofás — com mais chintz ou mais polyester — e de olhos colados à televisão. Os primeiros a pensar: “Ai, pois é! Nós somos assim!”, e as segundas a pensar: “Ai, credo! Nós somos assim?”. E vice-versa.

O Reino Unido, a única nação do mundo ocidental que ainda tem uma sociedade oficialmente por castas — cada qual com o seu assento parlamentar —, deu ao mundo o buraco de uma fechadura por onde espreitar esse rarefeito universo. “Downton Abbey” conseguiu conquistar público de todas as idades, de todos os credos (sobretudo, as pessoas que dizem “credo!”), de todas as ocupações, de todos as inclinações políticas, de todas as classes sociais e de todos os géneros e orientações sexuais. Bom, com a exceção, talvez, dos homens heterossexuais e das mulheres homossexuais.

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Ainda assim, é uma pilha de gente.

[O trailer do filme de “Downton Abbey”:]

O mérito será de Julian Fellowes, o autor da série, mas a ideia não é original. A tradição de histórias voyeurísticas sobre aristocratas ingleses e os seus criados é mais velha que um Bollycao do Minipreço.

Já em 1971, a BBC estreava “Upstairs Downstairs” (em português: “A Família Bellamy”), que contava a vida dos senhores (no cimo das escadas) e do pessoal doméstico (em baixo das escadas). A história acompanhava as suas aventuras paralelas que, tal como as linhas, nunca se tocavam. Ou melhor, tocavam-se às vezes, quando os segundos vinham trazer chá aos primeiros e quando os primeiros gritavam para os segundos: “Deixa aí o chá e desaparece daqui”.

Antes disso, houve o maravilhoso livro de Evelyn Waugh, Brideshead Revisited (em português: Reviver o Passado em Brideshead), que foi também uma série de televisão de 1981, com Jeremy Irons e Anthony Andrews.

Na minha opinião — que vale o que vale (ou seja, imenso) — “Downton Abbey” é melhor que “Upstairs Downstairs” mas pior que “Brideshead Revisited”. Façam dessa informação o que quiserem.

Mas é preciso dizer que em todos esses casos a realidade supera a ficção.

O Reino Unido teve condições históricas — nomeadamente um império gigante — que permitiram a acumulação de fortunas imensas. Ora e o que faz uma pessoa com uma fortuna imensa? Pois vocês, não sei, mas os aristocratas ingleses constroem casas. E “casas” aqui é piada. Constroem palácios que fazem Versailles parecer um T2 na Damaia. Ou no Bairro do Aleixo, para os leitores do Porto perceberem. Ainda hoje, muitas das maiores casas privadas do mundo são inglesas. A maior delas, Wentworth Woodhouse (aqui excluem-se as residências reais) tem uma fachada de 185 metros, 23 mil metros quadrados de área e cerca de 300 quartos (“cerca” porque nem os donos sabem exatamente quantos são). Outra delas, o Palácio Blenheim, residência (em inglês: seat) dos Spencer-Churchill, duques de Marlborough, e onde nasceu o famoso primeiro-ministro do mesmo apelido, tem 187 quartos. Já a casa que serviu de cenário a Downton Abbey — o Castelo Highclere — é mais pobrezinha: apesar dos 300 quartos, tem uns meros 3 mil metros quadrados. Um casebre, portanto.

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Ora, como o leitor muito bem sabe por experiência própria, as casas — grandes ou pequenas — não se limpam sozinhas. E os aristocratas — grandes ou pequenos — não se vestem sozinhos. Era preciso gente para encher tanto salão, tanta drawing room (é difícil traduzir para português; os possidónios geralmente chamam-lhe “salinha”), tanto quarto de dormir. E, vai daí, toca de enchê-las de pessoas a que aqui chamarei, para simplificar, “criados”. Era tal o número e o tamanho destas casas que o Reino Unido chegou a ter quase tanta gente com ocupações domésticas como na agricultura. E nem sequer estou a brincar. Em 1901 eram um milhão e meio de pessoas. As casas maiores chegavam a ter muitas dezenas de empregados, com uma estrita hierarquia e com funções como cozinheiras, mordomos, valetes, lavadeiras, criadas de tudo e mais alguma coisa, chauffeurs, moços de estrebaria, guardas, governantas, babysitters, tutores, secretários, enfim, um sonho. E isto, muitas vezes, para servir uma família de cinco pessoas. Quanto a vocês, não sei, mas isto a mim dá-me imensa vontade de rir. Será que vou para o Inferno? Provavelmente.

Mas, já dizem as criadas, “não há bem que sempre dure nem mal que não se acabe”, e isto às vezes acabava mal. Os direitos sucessórios em Inglaterra são implacáveis: a casa (em inglês: the manor), a fortuna e o título são indissociáveis. E são sempre herdados pelo varão mais próximo ao defunto titular. Se for o filho mais velho, não resta às irmãs senão casar com outro tipo rico qualquer que lhes garanta a subsistência, e não resta aos irmãos mais novos senão serem pobres ou bêbedos ou drogados (ou, as mais das vezes, as três coisas concomitantemente). No caso de não haver filhos homens, pois que lá vem um primo de não se sabe de onde para tomar conta da herança e mandar as primas à fava. Este tema já era o enredo principal de Sense and Sensibility (em português: Sensibilidade e Bom Senso) de Jane Austen. E é o ponto de partida de “Downton Abbey”, que era onde isto tudo queria chegar, desculpem lá, mas odeio escrever para pessoas ignorantes e assim já estamos todos na mesma página.

A história começa em 1912, no dia a seguir ao naufrágio do Titanic (creio que num piscar de olho a uma das temporadas de “Upstairs Downstairs” que começa exatamente da mesma maneira). Como se sabe, o navio levou para o fundo do mar mil e quinhentas pessoas, quase todas pobres, mas algumas, coitadas, não. Foi o caso. O que foi uma chatice, como se verá.

Deixo-vos aqui a lista das personagens principais de Downton Abbey, começando pelo andar de cima, como pertence.

Robert Crawley, 7º conde de Grantham

Hugh Bonneville é Robert Crawley

Robert, o conde, é o dono da casa, como é evidente. É casado com uma americana, Cora, o que na altura era mais ou menos a mesma coisa do que ser casado com a Kátia Aveiro. Mas a verdade é que estas herdeiras americanas salvaram muitas famílias aristocráticas inglesas — na ficção e na vida real — da penúria. De terem — sei lá — de descobrir onde era a cozinha para fazerem o seu próprio pequeno-almoço. Ou, imagine-se, terem de guiar os seus próprios carros. Havia a história de uma velha condessa inglesa que era tão pobre, tão pobre, que as flores das jarras do quarto de dormir só eram trocadas uma vez por dia. Adiante.

O conde tem três filhas, todas mulheres, coitado. Para quem saltou a introdução, isto é uma grande chatice, que nenhuma delas pode ser sua herdeira. Mas ele, que é um aristocrata e os aristocratas já se sabe que são muito espertos, tem a ideia de casar a filha mais velha, Lady Mary, com o primo que um dia lhe há-de suceder, quando o conde for desta para pior (os aristocratas ingleses, como se imagina, não vão desta para melhor, mas sim para pior, não desfazendo do Céu). Então, pronto! Caso encerrado! Acabou a série! Cinco minutos e está a coisa feita! Estaria, não fosse o tal naufrágio do Titanic, que mandou o primo ser comida para peixe. Aliás, é possível que o leitor já tenha comido uma orelha deste primo, numa baguete de delícias do mar da Companhia das Sandes. Mas primos há muitos, e o conde lá desencanta outro para a filha, neste caso um burgesso chamado Matthew, a quem já irei, salvo seja.

Robert não é particularmente inteligente, mas é industrioso, que é uma palavra que não sei bem o que quer dizer, mas que acho que lhe assenta como uma luva. Mas também, se fosse inteligente, era professor de astrofísica, não era um aristocrata inglês, não é verdade?

Cora Crawley, condessa de Grantham

Elizabeth McGovern é Cora Crawley

A condessa é a mulher do conde. Em geral, e neste caso em particular. É um amor de pessoa, o que é péssimo numa condessa. Vê-se logo que é americana. As americanas são sempre muito queridas, adoram dar beijinhos, que dão sempre aos pares. Eu, pessoalmente, odeio, mas é um género, e tem imensos fãs entre o público da série. Como já é casada com o conde há imensos anos, se estiver calada e não se mexer muito, até parece uma senhora. Estou a brincar, por acaso não está nada mal. No fundo, é ela quem comanda o navio. Os americanos são muito assim. O marido nem sempre acha muita graça, mas ela lá deixa a insinuação no ar de que quem paga o circo todo é ela, por isso os palhaços que baixem a bolinha. Como curiosidade, Cora é filha da Shirley McLaine. Não, isto não é uma piada com a idade da Shirley McLaine. Shirley entra vagamente na série como a mãe americana e nova rica de Cora. Mas olha, agora fica também uma piada com a idade dela.

Violet Crawley, condessa viúva de Grantham

Maggie Smith é Violet Crawley

Podia dizer que Lady Violet é a mãe do conde. Mas a mãe do conde sou eu. Lady Violet é Lady Violet. É, “sem sombra de dúvida alguma” como dizem as criadas, a personagem mais icónica da série. Daqui a cem anos, quando já ninguém souber sequer o que foi uma televisão, quando já nem houver seres humanos, quando a Terra já não existir, quando as únicas formas de vida inteligente no Universo forem uns bichos redondos e verdes com três antenas, ainda haverá um engraçadinho a perguntar “O que é um fim-de-semana?”. Escrevam o que eu digo. Ou melhor, digam o que eu escrevo, que isto é um texto.

Lady Violet é a pessoa que toda a gente quer ser quando for velha. Mas que pouquíssimos de nós seremos. Ou pouquíssimos de vocês serão. Eu morrerei a tentar. Nem mesmo as mentes mais progressistas resistem ao seu wit e ao seu horror escandalizado com tudo o que seja vagamente moderno. De memória, algumas das suas frases que já mandei estampar em T-shirts: “Não sejas pessimista, isso é tão classe média”. Ou quando respondeu a um “vou levar isso como um elogio” com um “devo ter dito mal, então”. Há quatro tipos de pessoas: as que veem os episódios completos, as que passam à frente na box as partes com a família Crawley, as que passam à frente na box as partes dos criados e as que passam à frente na box todas as cenas em que não entre Lady Violet. Eu pertenço ao grupo destas últimas.

Lady Mary Crawley

Michelle Dockery é Lady Mary Crawley

Mary é, sob vários aspetos, a personagem principal de “Downton Abbey”. E isso não é especialmente bom, posto que é uma chata do caraças. Toda a gente tem uma amiga assim — provavelmente um bocado mais ordinária —, que está sempre chateada com tudo. Como odeio gente enjoada, fartei-me de gritar com ela através de um ecrã de televisão, como fazem as pessoas mais velhas com o telejornal.

Como filha mais velha do conde, calhou-lhe o presente de casar com Matthew, o primo distante e herdeiro inesperado. Ao início, vão dar-se como o cão e o gato, mas depois a coisa lá se dá. E, é verdade, ela vai ficando mais amorosa. Sem querer fazer spoilers, eles casam e ele morre num desastre de automóvel. Que é um spoiler equivalente a dizer que o Jon Snow mata a Daenerys no fim. Mas, por amor de Deus, estas séries já acabaram há imenso tempo. Se ainda não viram, não andem a ler artigos sobre elas. Estão mesmo a pedi-las.

Depois de viúva, Lady Mary vai ter uma data de pretendentes, e acaba por casar com Henry. Não se sabe se foram felizes para sempre, porque a série acabou. Mas devem ter sido, de certeza. Porque, ao contrário do que pensam as criadas, o dinheiro traz imensa felicidade.

Lady Edith Crawley

Laura Carmichael é Lady Edith Crawley

É a irmã do meio. Não sei se isto é assim com todos os irmãos do meio, mas Lady Edith não é carne nem peixe, coitada. Nem é gira como a irmã mais velha, nem tem o espírito da irmã mais nova. Por isso, a série é cheia de momentos em que alguém lhe diz: “Ah, estavas aí! Não tinha reparado!”. A vida amorosa dela é um desastre que não é menor que o do Titanic: um dos noivos deixa-a plantada no altar e outro é morto por nazis. Já me aconteceu a mesma coisa e posso dizer que não é nada agradável, sobretudo a parte dos nazis. Lady Edith ainda vai causar algum escândalo em casa quando decide não só trabalhar, mas… trabalhar como jornalista! Sim! Imaginem! Jornalista! Mas acaba casada com um marquês, por isso não foi tudo mau.

Lady Sybil Crawley

Jessica Brown-Findlay é Lady Sybil Crawley

A filha mais nova e a ovelha negra da família. O que, como já perceberam, não é fácil. Do género de fugir de casa para ir à Festa do Avante. Odeia tudo o que são convenções sociais. Não sei mesmo se um dia não se passou e fez a própria cama! Mas acho que não. Há limites para tudo, até para o socialismo. Claro que, sem surpresa, casa com o chauffeur. Felizmente, morre no fim. Estou a brincar. Quer dizer, morre mesmo, mas o “felizmente” era a brincar.

Matthew Crawley

Dan Stevens é Matthew Crawley

Matthew é o tipo de classe média que um dia recebe uma cartinha em casa a dizer que acaba de se tornar herdeiro do conde. Isto é uma coisa que acontece às vezes. Vá, vão lá a correr à caixa do correio, que eu espero. Oh! Não vos aconteceu? Que pena!

Como já expliquei DEZ vezes, a ideia seria casá-lo com Lady Mary, para ficar tudo em casa. Lá se muda ele de armas e bagagens — umas malas de viagem péssimas, de cartão — para Downton Abbey. As classes mais baixas e as classes mais altas têm muitas coisas em comum. O peixe fora de água é sempre a classe média, que tenta desesperadamente não parecer das primeiras e tenta desesperadamente parecer das segundas. Como eu, com esta frase. Matthew vai, portanto, viver as tensões entre os seus valores burgueses e os valores aristocráticos da sua nova família. É um amor e toda a gente gosta dele. Mas não vale a pena afeiçoarem-se muito porque, como já disse, estampa-se de carro e morre. Mas, antes disso, Lady Mary e ele têm um filho, George, e está o caso da herança arrumado.

Isobel Crawley

Penelope Wilton é Isobel Crawley

Mais uma viúva, desta vez, a mãe de Matthew. É assim toda a puxar ao moderno, o que, claro, vai fazer com que seja muitas vezes o alvo dos enxovalhos maravilhosos de Lady Violet. Mas as duas acabam por ficar amigas, sobretudo depois da morte de Matthew, que, se ainda não sabiam, MORRE NUM DESASTRE DE CARRO. Por falar em amigas, Isobel é muito amiga do seu amigo, e passa grande parte da série a fazer obras de caridade. O que tem graça, que ela até nem tem muito dinheiro. Já o resto da família, que dinheiro é coisa que não lhes falta, nem semelhante coisa lhes passaria pela cabeça. Fazem bem, que nunca ninguém ficou rico a dar dinheiro aos pobres.

No final da série, casa com um barão. Barão é um título de nobreza do mais baixo que há (os ingleses ainda inventaram “baronete”, mas isso é mesmo já só violência gratuita). Mas sempre fica “baronesa” em vez de só “Isobel”, que parece que se está a chamar uma criada.

Tom Branson

Allen Leech é Tom Branson

Tom pertenceria primeiramente à galeria da criadagem, posto que era chauffeur dos Crawley, mas o seu romance e posterior casamento com Lady Sybil trá-lo para a parte de cima da casa. E ainda por cima era irlandês. Enfim… para o que uma pessoa havia de estar guardada. Ele odeia os sogros e as suas manias de aristocratas e os sogros odeiam-no e à sua mania de saltar do banco da frente do carro para o banco de trás, e ainda por cima com a filha. Peço desculpa por este momento mais brejeiro. No final, ficam amigos e acabam por gostar todos uns dos outros. Que é uma coisa que, como se sabe, nunca aconteceria na vida real.

E, por falar em criados:

Mr. Carson

Jim Carter é Mr. Carson

É o mordomo, que trabalha lá em casa desde rapazinho. Na complexa hierarquia do serviço doméstico, é responsável pela copa, pela casa de jantar e pelos criados homens. E é assim uma espécie de pai para eles. Não gosta de grandes avarias como telefones e luz elétrica e essas porcarias assim. É das poucas pessoas que sabe dizer poucas e boas a Lady Mary. Geralmente poucas, mas quase sempre boas. Ainda se vê envolvido numa escandaleira, quando se descobre que, antes de trabalhar em Downton Abbey, tinha sido corista de revista, mais ou menos. Mas o conde resolve fingir que nem estava a ouvir e acaba tudo bem. Reforma-se no fim, devido a achaques vários, desculpem o spoiler.

Mrs. Hughes

Phyllis Logan é Mrs. Hughes

Se Carson é o responsável pelo pessoal masculino, Mrs. Hughes é a responsável pelo pessoal feminino. Guardei este spoiler para aqui: eles casam e são felizes para sempre. Só não têm muitos filhos porque já são velhos como o caraças. É talvez a personagem mais amorosa. É boa e generosa, mas sabe ser dura por vezes, que governar uma casa também não é fácil. Vai ter um grande problema de saúde, que não vou dizer qual, para não estragar a surpresa a quem nunca viu a série. Estou a brincar, é um cancro da mama. Mas fica tudo bem, graças a Deus.

John Bates

Brendan Coyle é John Bates

É uma personagem do caraças. É o criado pessoal do conde, o que dito assim parece um emprego de merda, mas é uma posição muito importante numa casa. Não é qualquer pessoa que sabe exatamente quantas cuecas tem um conde. E quantas vezes por semana as troca. Começa o seu novo emprego no primeiro dia da série, e é logo tratado com desconfiança, entre outras coisas, por usar uma bengala. Os criados nem uns para os outros são bons, credo. A verdade é que, ao longo da série, são várias as tentativas de lhe fazerem a folha, umas mais graves e outras menos graves. A única pessoa que o trata como deve ser é Anna, uma criada. “Anna, uma criada” parece aqueles nomes de personagens das peças inglesas do início do século XX. Bom, que é o que isto é.

A verdade é que vão conseguir fazer-lhe a vida num inferno. O que é bom, porque dá alguma ação às partes da série que tratam dos criados que, caso contrário, era acartar com bandejas escada acima, escada abaixo. Brinco.

Anna e ele apaixonam-se, claro. Claro, porque era a única pessoa que lhe falava. O romance teria ido bem, não fora o facto de Bates ser casado com uma tipa detestável, Vera. Ele quer divorciar-se, mas ela é torta como tudo e farta-se de lhe fazer ameaças. Ai, odeio gentinha. Bom, às tantas, Vera aparece morta, envenenada, e Bates vai enfiar-se numa camisa de onze varas. Até o Hernâni Carvalho se riu. Afinal, Hernâni leva acento circunflexo. Bates é preso, e Anna não desiste até provar que ele está inocente. Bonito.

A verdade é que este casal vai ser protagonista das histórias mais palpitantes da série. Assassinatos, prisões, segredos, não falta nada. A trama é tão complicada e está sempre tanta coisa a acontecer na vida destes dois que, às tantas, perdia-me e puxava a box para trás, para ficar só a ver uma cena qualquer com a família Crawley, onde nunca se passava nada. Nem um copo de Martini aquela gente entornava para cima do sofá. O que é ótimo para descansar a cabeça, como dizem as criadas.

Anna Bates

Joanne Froggatt é Anna Bates

Anna Bates é a tal criada casada com o criado acima. É a criada pessoal de Lady Mary (em inglês: lady’s maid). É daquelas pessoas que se vê logo que adora trabalhar. Deve acordar às quatro da manhã já cheia de genica. Tem muito orgulho no seu trabalho e na família Crawley. Tem bom feitio e é a única pessoa que não trata mal Bates. O que, nesta altura, era o suficiente para casar, que é o que acontece. Mas a vida não é a preto e branco (só nos filmes do Bergman) e Anna esconde segredos que irão levá-la à prisão e quase à forca. Chiça! Mas Fellowes não quis que parecesse que não se importava com finais felizes para os criados, e Anna e Bates acabam a série com um filho nos braços. Que é dele. Diz ela. Eu não sei, que não vi. Estou a brincar! Claro que é! Deve ser.

Thomas Barrow

Rob James-Collier é Thomas Barrow

Chegámos enfim ao grande vilão da série. O que, no caso de Downton Abbey, onde não acontece assim grande coisa, que isto não é a “Guerra dos Tronos”, quer dizer que temos aqui um grande intriguista. Este homem, benza-o Deus, só está bem é a espalhar o ódio e o terror por onde passa. Desde miúdo. É under-butler, que não tem tradução em português, que aqui o pessoal doméstico é tudo corrido a “mulher-a-dias”, mas acho que mesmo em inglês se percebe o que é. Quem não percebeu, percebesse.

Tom passa os dias quase todos a tentar fazer a folha a Bates, para lhe ficar com a posição. Tem como cúmplice de maldades O’Brien, a lady’s maid (agora já sabem o que é) da própria da condessa. Mas Tom e O’Brien não vão formar um par romântico. Isto porque Tom joga noutra equipa. Ou melhor, neste caso, na mesma equipa da amiga. Tom é, como diria a minha Avó, “bastante mal-empregado”, porque é bastante jeitoso, de facto. Aliás, hão-de reparar que, a partir dos trinta anos, os homens homossexuais têm sempre muito melhor ar que os homens heterossexuais. Então a partir dos quarenta, nem parecem da mesma espécie. Não sei se será alguma coisa que as mulheres lhes põem na água, mas que é um facto, é.

Entre truques e esquemas — que acabam por dar graça à coisa, mas quase lixam a vida a uma série de gente — vai viver uma paixão por Jimmy, um outro criado. Mas não ficam juntos porque Jimmy não é disso. Tom dedica-se então ao cricket. E é feliz para sempre, suponho.

Sarah O’Brien

Siobhan Finneran é Sarah O’Brien

O’Brien, como já disse, é a lady’s maid da condessa. Que é quase tão bom como ser uma condessa. A única diferença é dormir só quatro horas por noite e ter de fazer tudo o que uma condessa não faz. Como as condessas não fazem nada, esta frase era irónica.

É a grande cúmplice de Tom contra Bates, e também é uma grande intriguista. Mas olhem, eu gosto dela. Era a única criada que fumava. Gosto de pessoas que fumam. E fumava com tanto gosto que eu também acendia sempre um cigarro. Infelizmente, não chegou ao final da série: mandou os Crawley à fava e foi trabalhar para outra casa. Mas deixou uma cartinha de despedida. Vá lá…

Daisy Mason

Sophie McShera é Daisy Mason

Daisy trabalhava na cozinha, que é o pior emprego que se pode ter numa casa boa. Apesar de passar cerca de doze horas por dia a lavar loiça (os aristocratas ingleses sujam imensa loiça), ainda arranjava tempo para se apaixonar por uma data de gente. Não tinha era muito sorte, coitada. A sua primeira paixão é logo por Tom. Foi um verdadeiro “ó filha, tu daqui não levas nada”. Depois de mais uma data de paixões, acaba com um tipo que tem uma quinta. Que não era o Tio Manel.

Mrs. Beryl Patmore

Lesley Nicol é Mrs. Beryl Patmore

Ai, já estou farto de criados, mas não dá para não falar nesta, que era a cozinheira. Era amorosa e era como uma mãe para Daisy, ainda que se fartasse de lhe gritar. Às duas por três começa a ficar quase cega e põe sal num pudim. O conde, que podia muito bem tê-la despedido com justa causa (que era o que eu faria) paga-lhe uma operação aos olhos. Como agradecimento, ela pega num dinheiro que recebeu de herança e despede-se para ir abrir uma pensão. Ingrata, pá. Estou a brincar. O conde, se calhar, nem reparou.

E é isto. Há mais uma data de gente, mas isto é assim um apanhado geral.

Aguardo agora em jubilosa esperança para ver que mais emoções o filme nos trará.

E nunca se esqueçam: o que separa o andar de cima do andar de baixo é simplesmente uma escada.

Esta frase não quer dizer absolutamente nada, mas gosto sempre de acabar com uma frase que pareça um provérbio. Como as criadas.

Hugo van der Ding é autor (“A Criada Malcriada”), apresentador, ilustrador e cómico em geral