O narrador é aqui aquele nosso “eu” moralista que está sempre a sussurrar-nos ao ouvido tudo o que não fazemos mas devíamos estar a fazer, o chicote ético e moral interior que nos faz sentir sempre em falta. O uso do possessivo na segunda pessoa não é inocente neste texto, uma vez que o contador da história do segundo livro do cingalês Shehan Karunatilaka se dirige diretamente à personagem principal. E a personagem principal de As Sete Luas de Maali Almeida (Clube do Autor) é um fotojornalista de comportamentos desviantes – é descrente, joga a dinheiro, bebe muito, é catastrófico nas relações amorosas, bissexuais – que acaba de ser assassinado e que se encontra junto ao guiché caótico do purgatório.
Estamos em Colombo, na capital, e também em vários outros territórios em guerra, principalmente a Norte, do Sri Lanka de 1989. O narrador é o fantasma dentro do fantasma, que vai tentar descobrir quem o assassinou. Prémio Booker de 2022, o segundo livro de Shehan Karunatilaka é uma maravilhosa panóplia de bonecas matrioskas, tanto a nível formal como narrativo. Há muitos espíritos, sopros de vento, mortes grotescas, banalização do mal, mas há também a importância do registo, da imagem como testemunho – em nome do futuro.
Escreveu esta história no Sri Lanka ou fora do Sri Lanka? Viveu em vários sítios.
Vivi no Sri Lanka a maior parte da minha vida, mas viajei para fora, trabalhei em Londres, trabalhei em Singapura. Comecei a pensar no livro quando estava a viver em Singapura. Regressámos para o nascimento do meu primeiro filho, que tem agora nove anos. Por isso, sim, desde 2015 que estava no Sri Lanka a escrevê-lo. Mesmo com o meu primeiro livro [Chinaman: The Legend of Pradeep Mathew], pensei na ideia quando estava em Londres. Mas é preciso voltar e ouvir a forma como as pessoas falam, sentir o cheiro do ar. É por isso que acho que as personagens falam de uma forma muito autêntica. Em 2020, tinha o primeiro rascunho feito e depois editámos durante mais dois anos. Foram sete anos de trabalho.
É um livro sobre a História muito recente do país. Como é que conseguiu ter distanciamento para escrever? Foi um período tão dramático do Sri Lanka.
Parece recente, mas também parece antigo, porque não falamos sobre isso. Tivemos tantas crises desde então. Se olharmos para os anos 80, a UNP [partido de centro direita] estava no poder e havia os Tigres Tamil [movimento independentista], o JVP [partido marxista-leninista], a força de manutenção da paz indiana. Depois disso, entrou um novo governo. Houve conversações de paz, o fim da guerra, outro governo. É quase impossível falar das coisas que aconteceram em 1989. Quer dizer, há algumas notícias, os jornalistas escreveram sobre as coisas que aconteceram, mas já não há memória. Depois tivemos novamente uma crise constitucional e uma ditadura. Uma ditadura que pode voltar, quem sabe.
Houve ainda os atentados da Páscoa.
Em que penso que morreu um cidadão português. A seguir, veio o colapso económico. Por causa do que estava nas notícias e de vários outros fatores, acho que em 2009 os Tigres Tamil foram derrotados de forma decisiva, foram silenciados. Toda a gente ficou aliviada com o fim da guerra, não se falou muito sobre o assunto. Por isso, não me pareceu que fosse recente. A ideia que comecei a ter para este projeto foi: e se os mortos do Sri Lanka pudessem falar? Uma história de fantasmas, um mistério que envolva um homicídio… há diferentes narrativas sobre o assunto. Um lado dirá que a culpa foi tua e o outro dirá que a culpa não foi tua. Achei que devíamos deixar os mortos falar.
A guerra foi até 2009.
Devia ter escrito sobre 2009 e sobre como é que as guerras acabam. Mas não sabemos como é que as guerras acabam, o que sabemos é que as guerras acabam. Tentam manter a imprensa afastada, depois bombardeiam e os civis morrem. O Sri Lanka não se sente à vontade para falar sobre isso, porque foi o que fizemos ao nosso próprio povo. Foi essa a razão por que fui para 1989. Parece mais distante. Essa é a razão. E, também, porque toda a gente está morta. Todas as pessoas que podiam ser ofendidas, que eram os maus da fita, os bons da fita, os diferentes lados, desapareceram. Por isso, senti-me seguro a escrever sobre este período.
Era adolescente em 1989.
Sim, sim. Eu não sabia de nada, era um adolescente. Quer dizer, nós sabíamos que havia uma guerra.
A guerra não chegou a todo o território. Só no norte.
Sim. Essa é a base do Sri Lanka. Jaffna, Trincomalee, Batticaloa, esta era a zona, talvez também em qualquer outro lugar, mas estávamos em Colombo [capital, a sudoeste] e havia explosões de bombas ocasionais, muitos postos de controlo, verificação das malas, assassinatos de políticos, jornalistas desaparecidos. Era esse o ambiente. Mas um adolescente não sabe isso. Só sabe que a escola pode fechar por uns dias. O que nós adorávamos… víamos a MTV, ouvíamos rock’n’roll, víamos críquete.
No livro, fala também de muitas mortes em Colombo.
Não sei até que ponto tinha consciência disso, mas conseguia ver o medo nos olhos dos meus pais quando falavam sobre o assunto. E eles não falavam sobre isso à nossa frente. Só mais tarde é que vim a pesquisar sobre o tema. Depois de 2009, quando voltei, aí, sim, apercebi-me dos horrores do que tinha acontecido no meu bairro.
Sabe porque é que teve a necessidade de escrever sobre esta história recente do Sri Lanka?
O primeiro livro estava a escrevê-lo tinha 30 e poucos anos. Foi por volta de 2007/2008. Queria escrever um livro sobre o Sri Lanka que não mencionasse a guerra. É sobre dois tipos em Colombo que veem velhos a assistir a críquete, bebem e veem críquete, obcecados por críquete, e que decidem ir à procura de um tipo genial que jogou pelo Sri Lanka nos anos 80. Mas, no fundo, o que é que se passava? Era assim que vivíamos em Colombo. Distraíamo-nos e seguíamos em frente. No Sri Lanka, muitos livros são sobre a guerra, sempre sobre a guerra. Uma história de amor entre um rapaz Tamil e uma rapariga, esse tipo de coisas. Eu sentia-me demasiado novo para isso. Também não sabia se tinha alguma coisa a comentar sobre esta guerra – que ainda estava a decorrer nessa altura. Era portanto a história de dois bêbedos e um estrela de críquete. Entre o primeiro e o segundo livros, tivemos este período para olhar para trás. Foi um período de esperança, na verdade. Pensámos: “ok, agora o país pode, com paz e prosperidade, ser esta grande nação”. Já este segundo livro é sobre um tipo morto que tenta resolver o mistério do seu próprio homicídio, é uma história de fantasmas. Situei-o em 1989 e pesquisei sobre esse período, falei com pessoas que viveram esse período. E então tornou-se político. No primeiro livro, consegui evitar a política. Neste, tornou-se no centro de tudo.
Com quem falou, durante a pesquisa?
Falei com elementos da família da minha mulher. Cresci em Colombo, o meu pai era médico e recebíamos telefonemas a dizer-lhe para não ir trabalhar para o hospital, que era público. Havia ameaças desse género, porque os marxistas queriam manter as pessoas incapacitadas para trabalharem para o Estado. Já o meu sogro era plantador de chá e tinha histórias verdadeiramente horríveis para contar. As grandes plantações eram propriedade do governo. Os marxistas mandavam as pessoas parar de trabalhar. Se um indivíduo fosse trabalhar, encontráva-lo morto, pendurado numa árvore, esse tipo de coisas. Depois falei com amigos da minha idade, onde cresci. Falei com os cingaleses que tiveram de fugir, falámos sobre a experiência de terem as suas casas queimadas e de terem de fugir como refugiados, alguns deles nunca mais voltaram.
Este é também um livro sobre a natureza humana, sobre o que a humanidade é capaz de fazer. Lemos aqui sobre uma normalização do mal, cadáveres por todo o lado, formas atrozes de matar. Parece o Inferno de Dante todo este ambiente. Daí a necessidade dos fantasmas, como espécie de contraponto? Como anjos que ajuízam?
Sim. É por isso mesmo. Todos os fantasmas do livro são baseados em assassinatos reais não resolvidos. Toda a gente, o exército Tamil, o médico, até as personagens secundárias. Tudo isto porque eu vi o registo dos homicídios nos anos 80. Raptos, pessoas desaparecidas. Foi a partir daí que comecei. Mas acho que a questão para mim sempre foi (e penso que para muitos no Sri Lanka): como é que esta bela ilha, cheia de pessoas adoráveis, visitada por turistas, que dizem que as pessoas são tão calorosas e simpáticas, pode cometer atrocidades destas? Foi este o meu ponto zero. E talvez não queiramos falar sobre isso, porque não temos respostas. O que é que nos levou a fazer isto? É uma pergunta que não tem resposta.
Não tem?
A resposta foi inventar um mundo espiritual. Li a banda desenhada de Sandman, vi filmes de terror, mas li também sobre a mitologia budista e hindu, a mitologia judaico-cristã, filosofia. Há muitas vertentes em que te podes perder, mas, no fim, tens de construir uma vida depois da morte que faça sentido. Fazer, por exemplo, a pergunta: porquê? Qual é a razão para o Sri Lanka estar assim? Porque os fantasmas do nosso passado ainda lá estão, não estão enterrados, não estão a ser falados. Estão lá sentados a criar problemas, significam algo sobre a nossa História. Eu tinha um conhecimento básico acerca do JVP, da UNP, dos Tamil. Às vezes, trabalhavam juntos. Às vezes, estavam a matar-se uns aos outros. Pôr um tipo no meio disto que está a trabalhar para todos os lados pareceu-me uma ideia interessante.
Falamos da necessidade de repor justiça?
Sim. Muitas destas pessoas nunca encontraram os pais, nunca souberam o que lhes fizeram. Ainda estão na prisão, algures? Não obtêm respostas. Eu tinha de resolver problemas. Depois de delinear o enredo, questionei-me: e se fosse o fantasma a contar a história? Quais são as regras? Já li livros que imaginam a vida depois da morte e muitos deles eram, como nos filmes, um pouco incompletos quanto aos pormenores. Por isso, tive de criar algo que tivesse a sua própria lógica. Fui buscar a lógica dos sete dias ao folclore do Sri Lanka. Temos esta crença e não é só no Sri Lanka. Já vi isto noutras culturas. Penso que na Grécia são nove dias. O espírito fica a pairar durante sete dias depois da morte.
E o que acontece ao sétimo dia?
Temos uma bênção. Um sacerdote vem e envia a alma para onde quer que esteja destinada. Pensei: o que faria se fosse um espírito? O que é que saberia? Iria provavelmente ver os meus entes queridos. Vê-los-ia no quarto a dormir, tudo isso. Mas criei muitas regras. Por exemplo, os fantasmas não conseguem comunicar com os vivos.
Fê-lo de forma muito realista, o que acrescenta corpo à história.
Há todas estas regras invisíveis. A gravidade e a eletricidade, por exemplo. O vento. Tem força, mas não o vemos. Podemos senti-lo. Se calhar, são os espíritos que estão a viajar. Mas a terceira regra é a mais importante: o espírito só pode ir aonde já foi ou se o nome for pronunciado, o que é um bom dispositivo para esta estrutura. Num sítio em que alguém disse “Maali Almeida”, ele pode ir lá. Acho que significa também que temos uma segunda morte quando o último vivo diz o nosso nome pela última vez. É por isso que os fantasmas não costumam durar mais do que duas gerações. Quando os nossos netos se esquecem de nós, não há mais ninguém que se lembre de nós. Por isso, os fantasmas não podem comunicar com os humanos senão através de sonhos, de sussurros.
E as orelhas? Porquê as orelhas?
A nossa cara esconde muitos dos nossos segredos. O que há mais? Pensei: “ninguém fala das orelhas, o karma pode estar escondido nas orelhas”. Não podemos ver as nossas próprias orelhas. Diverti-me muito com isto, mas demorou muito tempo, cerca de dois anos. Já sabia o que o protagonista tinha de fazer, tinha os fantasmas – muitos deles não queriam ir para a luz. Então e a noite? E será que Maali quer nascer de novo? A vida dele era uma treta, sofreu uma injustiça, morreu. Ele quer voltar atrás? Se a tua vida foi uma treta e sofreste uma injustiça, quererás voltar atrás? Esperam-te o Céu ou o Inferno, se te puseste a fazer coisas terríveis? O facto de todas estas criaturas, estes espíritos, não quererem ir para a luz ou para o escuro tem uma razão. O mesmo acontece com Maali. Ele também não tem a certeza se quer renascer ou não. Às vezes, pergunto-me o que faria eu nessa situação.
Não explora muito a questão da religião nesta história, os hindus, os budistas, os muçulmanos. Porquê?
Olhemos para o budismo tibetano, para o budismo de Teravada. No budismo tibetano, o panteão tem estas pinturas maravilhosas, com animais, fantasmas famintos, demónios, deuses. Eles têm a ideia de que os humanos não deveriam ser o centro do universo. Os humanos são apenas mais uma parte. Mas, por vezes, diz-se que um só ser humano pode tornar-se num Buda. Isso interessava-me. Por isso, muitas destas criaturas foram-me emprestadas por eles. Mas a mitologia hindu tem também o Raktabija, o demónio, baseado na deusa Cáli. Acho que a religião e a noção judaico-cristã da luz, do céu e do inferno, são guias espirituais. As pessoas que tiveram uma experiência de quase morte relatam coisas muito semelhantes, que caminharam por um túnel até à luz e que havia alguém ao seu lado a dizer-lhes para voltarem para trás.
Não era a altura delas.
Não era a altura delas. Ainda têm coisas para fazer. Peguei em tudo isso. Por isso, acho que há religião. Mas as guerras no Sri Lanka nunca tiveram uma base religiosa. Temos igrejas, mesquitas e templos e vamos aos locais de culto uns dos outros. Há um ateu morto no início do livro que diz gostar de ir ver as pessoas a rezar porque quer ver como parecem estúpidas. A verdade é algo de muito lato.
É religioso?
Cresci budista e continuo a meditar, a fazer ioga. Ainda ponho a minha aplicação de mindfulness a tocar. Andei numa escola não católica, mas anglicana, na Nova Zelândia. Por isso, estive em igrejas e li razoavelmente bem sobre estas coisas. Nunca vi um fantasma, mas não estou a dizer que não haja fantasmas. Tenho a certeza de que pode haver uma senhora a observar-nos. Quem sabe? Há coisas que podemos pedir emprestadas de qualquer fé. Construí a vida depois da morte. Logo, tenho esperança de que haja alguma coisa, mas não me surpreenderia se não houvesse nada. Havemos todos de descobrir.
O acaso tem um papel deveras importante no livro. Como é o caso de se poder ser morto por engano. De que forma trabalhou a questão do acaso?
A eletricidade é esta força invisível que alimenta tudo, a internet, os nossos telefones. E a maior parte das pessoas não sabe, ou talvez se lembrem das aulas de ciências na escola, como é que realmente funciona. Se as luzes se apagam, gritamos com o governo, mas fingimos que cresce nas árvores. Só a tivemos durante o quê, 100 anos? É bizarro. A humanidade pode fazer coisas incríveis, aproveitar a natureza e transformá-la numa vida moderna que tomamos como garantida. Mas o acaso é um grande fator. Foi por isso que fiz de Maali um jogador. Eu acreditava que as hipóteses de ganhar o Booker eram de uma em seis. Estavam lá seis bons escritores finalistas. E tenho a certeza de que há livros muito melhores em toda a lista. Por isso, se o nosso nome for incluído por qualquer razão, temos de aceitar que é uma hipótese.
Mas Maali é um jogador que lida com probabilidades.
Sim. Por isso, quando vai para estes lugares perigosos, calcula os riscos e pensa se vale a pena correr esse risco por aquela razão: quando anda a dormir com estranhos, com homens que encontra durante as suas aventuras, por exemplo. Tudo isto são riscos calculados que Maali corre. Quando regressa dessas aventuras, gasta dinheiro a jogar porque não se sente bem a usá-lo, por qualquer razão. Ele vê a vida como probabilidades. E sabe que nasceu numa classe privilegiada e que, por isso, está protegido da guerra, tal como todos os seus amigos. Olha para a bolha de Colombo com desprezo, porque estão ali sentados a festejar e a dizer disparates enquanto outras pessoas estão a sofrer. Ele está consciente de que tudo é sorte. O que não quer dizer que não tenha poder sobre nada. Devemos respeitar esses dois deuses, a boa e a má sorte.
Fez dele um descrente. Ele não acredita em muita coisa na vida.
Não, por causa das coisas que viu. Fiz pesquisa e não há muitas fotografias desse tempo. Foi também por isso que o tornei fotógrafo. A ideia de que, se não tivermos fotografias, é quase como se algo não tivesse acontecido ou como se o tivéssemos esquecido. Agora toda a gente tem câmaras, a partir de agora vai ser difícil. Nos anos oitenta, havia fotógrafos profissionais.
Mas porquê a falta de fé dele se é um jogador?
Quando morrem crianças, mulheres e idosos, morrem sem razão. E as pessoas que lançam as bombas vivem em mansões e ficam impunes. A justiça não os pune. Não é um argumento novo, existe desde os gregos antigos. Como é que pode haver maldade no mundo e a virtude ser punida? Maali vê isso. Ele percebe que tudo é um acaso e por isso faz coisas perigosas, dorme com todos aqueles homens. Há aqui também comédia: ele é ateu, perde a vida e acorda na vida após a morte. E percebe que a vida depois da morte é uma burocracia, um visto cingalês, um escritório de passaportes, um escritório de impostos. O Sri Lanka é um absurdo. O Sudeste Asiático é absurdo. Talvez o mundo o seja, há muitas coisas bizarras que vemos acontecerem até hoje. Acho que Maali captou tudo isto. Este ateu encontra-se num gabinete de vistos e não se lembra de como morreu. Pareceu-me um bom começo.
Fotografar as atrocidades da guerra não é uma espécie de fé no futuro, na medida em que servirão de arquivo, de memória, uma forma de repor a verdade?
Sim, ele tem todas estas fotografias que ninguém viu e acredita que elas vão mudar o mundo. Mas a realidade é que este livro se passa em 1989 e a guerra continuou durante mais 20 anos. Por isso, tive de pensar: “quem é que eu quero que entre?” O Tarantino fez aquele filme em que o Hitler morre no fim [Sacanas Sem Lei], mas esse não era o tipo de livro que eu queria escrever. As fotografias podem ser expostas ou podem ser levadas, e tudo o que resta são as belas imagens de coqueiros do Sri Lanka. Maali queria ser como o fotógrafo que tirou a fotografia da rapariga nua a fugir da sua aldeia, atingida por napalm, na guerra do Vietname. Isso foi em 1972, o massacre de My Lai. Ganhou um Pulitzer, ficou famoso, mas não acabou com a guerra. A guerra continuou até 1975. Vemos as fotografias do que os EUA fizeram em Abu Ghraib. Vemos fotografias de todas as guerras, mas isso não nos impede de voltar a entrar em conflito.
Ainda não encontrámos resposta para isso.
Assisti a um debate em Kerala, na Índia. Foi espetacular. No painel, havia um general de cinco estrelas, uma poeta vietnamita e um político do Bangladesh. Estavam a discutir sobre livros e guerras. Era um debate bastante unilateral, porque ela lia um poema sobre a guerra do Vietname e era belo, comovente. Mas era só isso. Foi então que pensei no Guerra e Paz do Tolstoi. Um livro sublime que qualquer um de nós sonharia ter escrito. Haver um clássico intemporal russo sobre a guerra não impediu a Rússia de meter em guerras nos últimos 100 anos. Fazemos esta arte, damos a nossa vida… Quero dizer, os jornalistas são os heróis de todos os meus livros. Há detetives, sim, mas são mais o problema. São os jornalistas que vão para o terreno, que dão a vida para preservar estas memórias, que contam estas histórias, para aprendermos com elas ou para deixarmos de as fazer. Mas será que isso nos mantém fora das guerras? Tornámo-nos bastante cínicos muito cedo na vida. Talvez haja uma nova geração que leia os livros e venha a agir de forma diferente.
Pelo menos não terão uma desculpa, os livros existem.
Sim, é essa a minha esperança. A geração mais nova não tem consciência da guerra. Quero dizer, tem consciência dela, mas…
Não a viveu na pele.
E os pais não falam sobre isso. Os professores não falam sobre isso. Não é ensinado nas escolas. Ensinaram-nos sobre os antigos reis, os colonos, os portugueses, os holandeses, os britânicos, a independência em 1948. Pouco mais. Já não ando na escola há muito tempo, mas ficaria muito surpreendido se o ensino fosse sobre 1983, 1989, 1995, 2002, 2009.
2015.
2015, 2019. No tempo do meu pai, eram só os homens que iam para a rua protestar. Agora, são homens, mulheres, LGBTIQ+, são todos ativistas, são de todas as raças, de todos os credos – há muçulmanos, tamiles, miúdos cingaleses que cresceram no estrangeiro, os que cresceram na aldeia. Agora, se erguermos uma faixa, não desaparecemos, o nosso corpo não desaparece, mas levam-nos para a prisão, tiram-nos as impressões digitais e soltam-nos. É uma forma de as autoridades dizerem que não toleram mais protestos. O meu próximo livro é sobre 2000/2001. Por isso, vou demorar mais tempo a escrevê-lo.
Deixe-me perguntar-lhe sobre o narrador, o fantasma a sussurar sempre sarcástico ao ouvido do fantasma de Maali. É espantoso. Torna o início do livro muito pujante. Como é que lhe surgiu a ideia para este narrador?
Tentei escrever na primeira pessoa, “sou um fantasma, estou confuso” e tudo isso. Mas depois pensei: como é que lhe dou voz? Quando o nosso corpo morre, se é que existe alguma coisa, o que é que sobrevive à alma? E como é que eu descrevo esta personagem? O que é a alma? A alma é o coração? É o cérebro? Talvez seja a voz na nossa cabeça. Todos nós temos uma voz na cabeça.
Uma voz moralista.
Do género: “seu idiota, devias ter acordado mais cedo. Vais chegar atrasado à entrevista. Que raio estavas a fazer? Estavas ali sentado a fumar”. É como se fosse outra pessoa. E essa voz está lá na minha cabeça. Não diria que é como a minha mãe ou o meu pai. Não é. É a minha voz, mas é um eu diferente. Como disse, faço o meu mindfulness todas as manhãs. Esta manhã não fiz, devia ter feito. É a voz a falar comigo. Não sou um grande estudioso de budismo, mas, és a pessoa que gera os pensamentos ou és a pessoa que ouve os pensamentos? O que é a atenção plena? Sentamo-nos, os pensamentos virão, deixamo-los passar, escolhemos os pensamentos em que nos concentramos e os que ignoramos. Acreditamos que os nossos pensamentos vêm de nós, mas talvez haja alguém aqui sentado a sussurrar. Isso é muito poderoso.
Faz para si sentido identificar algum realismo mágico nesta história?
Rushdie, Kafka. Esses são os mestres. Margaret Atwood…
Seria mais Isabel Allende.
A sobrinha de Salvador Allende, é verdade. Não era essa a tradição que eu estava a tentar seguir. Segui o que eu pensava ser uma história de fantasmas. Mais como Stephen King, Clive Barker, Neil Gaiman. Escrevi uma história de fantasmas com um pouco de política. Não é a primeira vez que um jornalista me refere o realismo mágico. Tenho perguntado, um pouco por todo o mundo, qual é a diferença entre fantasia e realismo mágico. Ninguém me soube responder. Nas livrarias, a secção de fantasia tem Game of Thrones e Tolkien, coisas clássicas de espada. Ishiguro tinha um livro, The Buried Giant, que tinha um dragão. É magia? É fantasia? Por isso, estava a pensar mais na tradição de uma história de fantasmas e no que os nossos espíritos estão a fazer com os demónios. E acrescentei-lhe um pouco de suspense. Também se chama literatura pós-colonial, certo? Li algures que os argelinos escrevem em francês para dizer aos franceses que não são franceses. Eu escrevo em inglês. Há 100 anos, era assim que a escrita do Sri Lanka costumava ser, tentava soar a inglês.
Penso que o realismo mágico tem a ver com o facto de os elementos fantásticos que existem na história espelharem as crenças e tradições de uma dada realidade, passadas de geração em geração. Já a fantasia tem componentes imaginárias construídas a partir do zero.
É a melhor resposta que já recebi. Obrigado. Pois, Maali não é imortal, a história passa-se no Sri Lanka de 1989 e tem elementos mágicos. Sim, acho que isso é também verdade para o Cem Anos de Solidão, do García Márquez. E, ainda, para o trabalho de Roberto Bolaño. Não pensei nisso.
É muito injusto categorizar livros e histórias.
Mas é assim que se vendem livros. Posso ser artista e dizer que não tenho categorias, que escrevo livros, mas também preciso de fazer marketing. Trabalhei em publicidade como copy. Sei como é.