Recuperar as causas do partido, relançar a discussão sobre o papel do país no euro e no projeto europeu, e, sobretudo, carregar contra aqueles que são, neste momento, os maiores adversários políticos do partido: o PS e António Costa. No fim de semana que marca a passagem de testemunho entre Catarina Martins e Mariana Mortágua, os três fundadores vivos do Bloco de Esquerda — Francisco Louçã, Fernando Rosas e Luís Fazenda — traçaram o caminho que a futura coordenadora do partido deve seguir: no “tempo feio” da maioria absoluta, os bloquistas devem esquecer as tréguas dadas na ‘geringonça’ e voltar ao “combate frontal” ao PS.
Pensado a partir dos escombros da derrota do “sim” no referendo pela legalização do aborto de 1998, imaginado à mesa do restaurante Oh! Lacerda, em Lisboa, o Bloco nasceu quando Francisco Louçã (PSR), Luís Fazenda (UDP), Fernando Rosas (independente) e Miguel Portas (Política XXI), começaram a tentar perceber se havia um caminho que podiam trilhar juntos.
Passaram-se 24 anos desde a fundação do partido e o Bloco é hoje fruto de experiências muito diferentes. Na sua fase juvenil, foi um partido de causas fraturantes, liderado por um intelectual. Sofreu na transição, mas afirmou-se com uma força histórica à boleia de Catarina Martins. E foi também com ela que atingiu os seus mínimos olímpicos, depois de ter experimentado o poder com a ‘geringonça’. Agora, na qualidade de senadores, Louçã, Rosas e Fazenda — Miguel Portas desapareceu em 2012 — subiram ao palco para pedir a Mariana Mortágua uma espécie de regresso às origem.
Louçã — o único dos quatro fundadores que foi líder — focou-se essencialmente num apelo àqueles que estão arrependidos por terem votado no PS nas últimas eleições legislativas e que deram aos socialistas uma maioria absoluta que é hoje um “fantasma”. “Quem festejou nessa noite… o que é que fizeram da vitória? Alguém se lembra de tanta encrenca? Quem votou no PS sabe do desastre social, que apodrece a República. O desastre da maioria absoluta está a corroer a vida democrática”, atirou Louçã
Elencando alguns dos casos que têm atingido o Governo, Louçã falou sobretudo das falhas na Saúde, da inflação alimentar galopante, dos lucros dos bancos e das dificuldades nos créditos, da falta de acesso à Habitação e da situação em que se encontram muitos dos migrantes que nos procuram. Nas entrelinhas, o antigo líder do Bloco ia apontando aquelas que devem ser as áreas de intervenção do partido. Empurrando o BE para falar para as “vítimas da maioria absoluta” do PS, Francisco Louçã defendeu que este é o tempo de “recuperar o país” e acabou a citar Chico Buarque. “‘É preciso espantar este tempo feio’. Assim se fará forte a esquerda.”
Coube a Fernando Rosas, como é a sua marca nas convenções do Bloco, fazer a intervenção mais ideológica da tarde. O antigo deputado dividiu a sua intervenção em três questões, todas centradas no suposto dilema com que o partido está confrontado: como combater o PS, evitando que o papão da subida da extrema-direita ao poder seja usado para alimentar o apelo ao voto útil à esquerda. A estratégia parece ser responsabilizar o próprio PS por esse reforço da “extrema-direita”.
“Existe um perigo real da extrema-direita fascizante? A meu ver, existe”, começou por questionar e responder Fernando Rosas, acrescentando: uma “extrema-direita” que “manipula o medo” e que se alimenta da “precariedade” e do “desespero” de largas fatias da população, atirando o país para “uma crise social” que é também “fruto da rendição da maioria absoluta do PS.” Para Rosas, aliás, a “extrema-direita”, uma referência não concretizada ao Chega, representa na verdade a “vanguarda caceteira” de uma “pulsão neoliberal” que domina a política.
Em segundo lugar, continuou o bloquista, coloca-se outra pergunta à futura direção do Bloco de Esquerda: “É possível combater o perigo da extrema-direita aceitando a governação do PS? Na minha opinião, não é possível. São os efeitos da política do PS que alimentam a extrema-direita”, notou Fernando Rosas.
Para o historiador, portanto, não resta outra alternativa que não fazer “oposição frontal ao PS” porque o contrário — e o contrário é “aceitar a velha chantagem” de que a esquerda não pode combater o PS porque isso significa abrir a porta à direita — é “amarrar sem esperança” qualquer alternativa “emancipatória” que possa surgir. “O que fazer? Sejamos claros: devemos estar na luta e ousar vencer. Na luta ideológica, mas simultaneamente na luta política e social”, rematou Rosas.
Luís Fazenda acabou por centrar grande parte da sua intervenção na tentativa de clarificar a posição internacional do partido — tema que, a propósito do apoio à Ucrânia. tem marcado grande parte da XIII Convenção do Bloco de Esquerda. De resto, há uma curiosidade: Mário Tomé é, nesta reunião magna, o grande apoiante da ala que se opõe a Mortágua; no passado, foi ele quem agilizou o encontro entre Fazenda e Fernando Rosas, então colunista do Público, para perceber se existiam ou não pontos de convergência entre as várias forças de esquerda.
A esse propósito, Fazenda aproveitou a sua intervenção para responder diretamente a Mário Tomé, que, em entrevista ao Observador, sugeriu que a Ucrânia pode ter de ceder território como contrapartida para o fim do conflito. “Não se pode dizer Putin fora da Ucrânia e não se pode dizer depois numa entrevista que parte da Ucrânia pode ficar para a Rússia. Temos de ser solidários”, atirou, olhando diretamente para o lado do pavilhão onde estavam os críticos da atual direção e deixando mais um recado: “Ou a esquerda toma conta da questão da autodeterminação dos povos ou os fascistas avançam com os nacionalismos.”
Do grupo de fundadores, Fazenda foi aquele que mais distante esteve de Catarina Martins e da sua liderança, sem que, no entanto, alguma vez tivesse rompido com a direção — rumo que Mariana Mortágua deverá manter. Ora, nesta intervenção, Fazenda fez questão de falar da posição do partido face à Europa e ao projeto europeu, tentando recuperar uma bandeira — a da renegociação da dívida pública — que deixou de ter a centralidade no discurso no Bloco. “O estrangulamento do financiamento público tem de acabar. Temos de questionar a dívida [pública] existente. O Bloco de Esquerda põe em causa este modelo europeu. E demarcámo-nos, para que a Europa não continue a ser um travão”, sublinhou Fazenda.