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“Game Over“. A reação do Presidente surgiu de imediato no Twitter, minutos após a conferência de imprensa do Procurador-Geral William Barr a anunciar que seria divulgado na íntegra o relatório do procurador-especial Robert Mueller. A montagem tinha uma fotografia do próprio Donald Trump, de costas, com a frase Game Over (O jogo acabou) em letras de estilo semelhante à da série Game of Thrones, cuja última temporada estreou recentemente. E acrescentava: “Não há conluio. Não há obstrução. Para os haters e os democratas da esquerda radical o jogo acabou.”
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) April 18, 2019
Trump pode ter rejubilado com as conclusões divulgadas pelo relatório de Mueller, que o ilibam e à sua campanha do crime de conspiração com a Rússia, mas uma análise mais fina deixa claro que o Presidente não está tão a salvo no que diz respeito às suspeitas de obstrução da Justiça. Os analistas ouvidos pelo Observador são claros: Mueller só não acusou o Presidente para respeitar o precedente do Departamento da Justiça de não acusar Presidentes no cargo. O que não impede o Congresso de tomar ação num possível processo de impeachment. Nem impede a Justiça de agir num futuro em que Trump não seja Presidente.
As suspeitas de conluio com os russos ficaram para segundo plano, por falta de provas claras que pudessem sustentar uma acusação judicial, mas podem voltar à baila num processo que, pela sua natureza, é mais político do que jurídico. E o relatório, ao contrário do que o Procurador-Geral Barr tinha dado a entender na versão inicial e na conferência de imprensa desta quinta-feira, é claro: “Não é possível exonerar o Presidente” com base nos factos conhecidos, escrevem Mueller e a sua equipa.
Trump foi ilibado do conluio com os russos. Mas pode ter tentado obstruir a Justiça pelo menos sete vezes
Ao ler o relatório de Mueller, com mais de 400 páginas, fica claro que a equipa não obteve provas suficientes para alegar que a campanha de Donald Trump, durante as eleições presidenciais de 2016, esteve coordenada com agentes russos numa conspiração para eleger o milionário.
“Embora a investigação tenha identificado várias ligações entre indivíduos com ligações ao Governo russo e indivíduos associados à campanha Trump, as provas não foram suficientes para acusar nenhum membro da Campanha como agente não registado do Governo russo ou outro representante russo.”
Ao Observador, o professor de Direito da Michigan State University Brian Kalt não tem dúvidas em concluir que o Presidente foi “praticamente ilibado de qualquer conluio com a Rússia”. “O relatório, contudo, não iliba a própria Rússia. Torna claro que a Rússia interferiu com a eleição e teve muitos cúmplices — simplesmente Trump não foi um deles”, afirma. O relatório diz, preto no branco, que a Internet Research Agency, o organismo russo de interferência online também conhecido como “fábrica de trolls“, “utilizou contas em redes sociais e grupos de interesses para semear a discórdia no sistema político norte-americano através daquilo que convencionou chamar ‘guerra de informação’.” Precisamente por isso, vários cidadãos russos já tinham sido formalmente acusados pelo gabinete de Mueller. Aquilo que ficou aquém foi na prova de uma ação coordenada deste organismo ou de outros com a campanha de Trump.
Mas se estas conclusões já eram mais ou menos expectáveis, tendo em conta que a informação disponível no relatório sobre este tema é praticamente a mesma que foi divulgada ao longo dos últimos meses nos media norte-americanos, o mesmo não pode ser dito sobre a segunda parte que diz respeito às suspeitas de obstrução da Justiça pelo Presidente. O relatório fala em várias ações e em vários momentos “relacionados com potenciais questões de obstrução da Justiça envolvendo o Presidente” sobre os quais “obteve provas”.
E Mueller afirma sem reservas que não pode ilibar Trump desta conduta, num parágrafo demolidor: “Se tivéssemos confiança, após uma investigação detalhada dos factos, que o Presidente claramente não cometeu obstrução da Justiça, afirmaríamos isso mesmo. Com base nos factos e nos padrões jurídicos aplicáveis, contudo, não podemos chegar a essa conclusão (…). Assim sendo, embora este relatório não conclua que o Presidente cometeu um crime, também não o exonera.”
O Observador selecionou sete das ações que podem configurar obstrução da Justiça cometidas por Trump e detalhadas no relatório Mueller, por ordem cronológica. São elas:
- Pedir ao diretor do FBI, James Comey, que parasse a investigação às ligações aos russos
A frase foi esta: “Espero que consigas encontrar uma forma de deixar isto cair, de largar [o conselheiro Michael] Flynn [que admitiu encontros com o embaixador russo]. Ele é um bom tipo. Espero que possas deixar isto cair.” - Intervir na declaração do filho, Donald Trump Jr., sobre o encontro com uma advogada russa na Trump Tower
O relatório explica qual terá sido a ação do Presidente: “Antes de os emails se tornaram públicos, o Presidente editou um comunicado de imprensa de Trump Jr., apagando uma frase que reconhecia que o encontro foi com ‘um indivíduo que disse a [Trump Jr.] que poderia ter informação útil para a campanha’ e dizendo apenas que o encontro foi sobre adoções de crianças russas.” - Despedir o diretor do FBI, James Comey
Após o testemunho de Comey perante o Congresso, onde recusou responder a perguntas sobre se o Presidente estava a ser investigado, Trump decidiu demitir o diretor do FBI. “No dia seguinte ao despedimento de Comey, o Presidente disse a responsáveis russos que tinha ‘enfrentado grande pressão por causa da Rússia’ que agora tinha sido ‘levantada’ com o despedimento de Comey”, pode ler-se no relatório. - Tentativas de afastar o procurador-especial Robert Mueller
O incidente mais claro aconteceu em junho de 2017 e a demissão só não produziu efeitos porque Donald McGahn, advogado da Casa Branca, não seguiu a ordem. O relatório explica: “O Presidente telefonou a McGahn, que estava em casa, e ordenou-lhe que telefonasse ao Procurador-Geral e dissesse que o Conselho Especial tinha conflitos de interesse e devia ser eliminado. McGahn não cumpriu a ordem, contudo, decidindo que mais depressa se demitia do que espoletava aquilo a que chamou como um Massacre de Sábado à Noite.” - Tentativas de usar um subordinado para influenciar o Procurador-Geral
De acordo com o relatório, o Presidente terá tentado pressionar várias vezes o seu antigo diretor de campanha, Corey Lewandowski, a passar mensagens ao Procurador-Geral Jeff Sessions, dizendo-lhe que deveria afirmar publicamente que a investigação de Mueller era “muito injusta”. - Tentativas de levar o Procurador-Geral a retirar a escusa que pediu sobre o caso
O Procurador-Geral à altura, Jeff Sessions, tinha pedido escusa do caso, passando a supervisão do Conselho Especial para o segundo da sua linha de comando. O Presidente, porém, não gostou disto e aproveitou para atacar Sessions, até publicamente, várias vezes. De acordo com o relatório Mueller, Trump pediu diretamente ao seu Procurador-Geral que retirasse a sua escusa e voltasse a supervisionar a investigação pelo menos duas vezes. Numa delas, disse-lhe que se o fizesse seria “um herói”. - Pedir a testemunhas que mentissem
Por fim, já em inícios de 2018, Trump terá feito uma última ação que Mueller entende poder configurar o crime de obstrução da Justiça, ao ordenar a McGahn que mentisse publicamente quando questionado pela imprensa sobre se tinha recebido ordens de Trump para despedir Mueller. McGahn recusou fazê-lo.
Apesar de não constar como possível prova, Mueller e a sua equipa não se coibiram de incluir no relatório as informações que obtiveram sobre a reação inicial do Presidente ao saber que tinha sido nomeado um conselho especial para investigar o possível conluio com os russos, com base nas notas tiradas de uma reunião por Jody Hunt, chefe de gabinete do Procurador-Geral Jeff Sessions: “Quando Sessions disse ao Presidente que um Conselho Especial tinha sido nomeado, o Presidente reclinou-se na cadeira e disse ‘Ó meu Deus. Isto é terrível. Isto é o fim da minha presidência. Estou f*****.’ O Presidente irritou-se e atacou o Procurador-Geral pela sua decisão de pedir escusa da investigação, dizendo ‘Como pudeste deixar que isto acontecesse, Jeff?’ (…) Sessions recorda que o Presidente lhe disse ‘devias ter-me protegido’ ou algo do género. O Presidente voltou às consequências da nomeação e disse ‘Toda a gente me diz que estes conselhos independentes estragam as presidências. Demoram anos e anos e não conseguem fazer nada. Isto é o pior que me podia acontecer.'”
Se os episódios de possível ação criminosa são claros, porque Mueller decidiu não acusar Trump?
Com base nestes e noutros excertos do relatório, o professor Kalt, do Michigan, não tem dúvidas em afirmar ao Observador que Mueller “excluiu por completo a possibilidade de Trump ser ilibado” dos crimes de obstrução da Justiça. “Ele disse que se Trump fosse claramente inocente o diria, mas ele não é claramente inocente”, resume.
Já o professor de Direito da Universidade de Northwestern Michael S. Kang acrescenta outro ponto que crê ser ainda mais relevante: “O Conselho Especial concluiu que Trump teria sido bem sucedido ao obstruir a Justiça, não fosse a recusa dos seus subordinados em alinhar nisso. Para mim, isto é altamente prejudicial, ao contrário do que Trump insiste em dizer”, declara.
Richard Arenberg, professor da Universidade de Brown cuja formação é em Ciência Política e não em Direito, vai direto ao ponto na sua avaliação: “A parte do relatório sobre o conluio com os russos é clara ao dizer que o Conselho Especial não encontrou provas suficientes. Se é a exoneração total ou não que o Presidente diz que é, é outra questão”, resume numa conversa telefónica, após ter lido as 400 páginas do relatório. “Mas o foco passou agora a ser colocado na questão da obstrução da Justiça, porque o relatório é muito mais prejudicial [para Trump] do que foi descrito inicialmente pelo Procurador-Geral.”
O documento não engana e invoca até as possíveis motivações do Presidente para dificultar a investigação do procurador-especial: “Nesta investigação, as provas não estabelecem que o Presidente esteve envolvido num crime relacionado com a interferência russa nas eleições. Mas as provas apontam para um leque de outros motivos pessoais que podem ter incentivado a conduta do Presidente. Estas incluem preocupações com o facto de a investigação poder questionar a legitimidade da sua eleição e potencial incerteza sobre se determinados eventos, como o aviso prévio da WikiLeaks de que iria divulgar informação ou a reunião de 9 de junho de 2016 entre membros seniores da campanha, poderiam ser vistos como atividade criminosa do Presidente, da sua campanha ou da sua família.”
Mas se esses danos são assim tão evidentes, porquê não acusar Trump de obstrução à Justiça? O relatório cita vários pontos para justificar essa decisão, nomeadamente o facto de não ser constitucionalmente claro se presidentes no cargo podem ser acusados e de o entendimento do Departamento da Justiça até agora ter sido não o fazer. O que, sublinha Kang, faz com que a decisão de Mueller faça sentido, porque “haveria incentivos e oportunidades óbvias para os oponentes políticos manietarem um Presidente em funções” se o fizesse. Ou, como explicou a própria equipa de Mueller, “mesmo que uma acusação fosse selada durante o mandato do Presidente, ‘seria muito difícil preservar [o seu segredo]’ e se uma acusação fosse tornada pública, ‘o estigma e o opróbrio’ poderiam prejudicar a capacidade do Presidente para governar.” Por essa razão, explica Kang ao Observador, “faz sentido que o Conselho Especial decida passar as suas conclusões ao Congresso e a investigações futuras”. “Os antecessores de Mueller, nos casos dos Presidentes [Richard] Nixon e [Bill] Clinton, procederam de forma semelhante”, conclui.
Já Jessica Levinson, especialista em lei eleitoral da Loyola Law School, reconhece que a decisão de não acusar traduz “o entendimento sobre o qual o Departamento da Justiça tem operado”, mas acrescenta que “não há nada na Constituição que diga que não se pode acusar um Presidente em funções”. “Há argumentos relacionados com o respeito pelo tempo do Presidente e pela separação de poderes para não o fazer. Mas talvez seja altura de repensar esses argumentos”, declara a professora de Direito ao Observador.
Contudo, Levinson reconhece que o procurador-especial Mueller estava um pouco de pés e mãos atados. “Ele estava entre a espada e a parede. É difícil provar obstrução da Justiça sem demonstrar que houve uma intenção corrupta. E é difícil provar uma intenção corrupta sem ter interrogado presencialmente o Presidente. A não ser que intimasse o Presidente, creio que Mueller teve de aceitar a realidade de produzir uma não-decisão.”
Processo salta para a arena política do Congresso. Game Over para os democratas ou a Chegada do Inverno para o Presidente?
Mas se há divisões entre os especialistas sobre se Mueller poderia ou não ter acusado formalmente Donald Trump, há pontos onde todos concordam: a ação do Procurador-Geral William Barr, ao desvalorizar as conclusões de Mueller sobre a obstrução da Justiça, foi errada — e as suas declarações desta quinta-feira assemelharam-se mais às de um “ator político” do que as de um procurador do Estado. E, embora judicialmente Trump se tenha livrado da acusação de Mueller, o Congresso deverá rapidamente avançar para uma acusação política, que pode resultar num impeachment.
Quanto ao primeiro ponto, Richard Arenberg, da Universidade de Brown, não tem mesmo problemas em classificar a conferência de imprensa de William Barr como “vergonhosa”. “Agiu não como um procurador do povo, que é a sua função, mas como advogado do Presidente”, afirma. “Foi uma tentativa de modelar a interpretação total do relatório Mueller, mas acho que no caso da obstrução fez um péssimo trabalho.”
Antes de o relatório ser tornado público, Barr fez uma conferência de imprensa onde se centrou no facto de não ter ficado provado qualquer tipo de conluio com os russos. Quanto às suspeitas de obstrução da Justiça do Presidente, o Procurador-Geral procurou enquadrá-las: “Ao avaliar as ações do Presidente é importante recordar o contexto: o Presidente Trump enfrentava uma situação sem precedentes”, declarou aos jornalistas. Estava “frustrado e zangado pela sua convicção sincera de que a investigação estava a minar a sua presidência, de que era alimentada pelos seus adversários políticos e por fugas de informação ilegais”, acrescentou Barr.
Michael S. Kang avalia a prestação de Barr com palavras tão ou mais duras do que Arenberg: “O Procurador-Geral claramente vê o seu papel como sendo o de defensor do Presidente, em vez de agente jurídico independente. Eu analisaria as suas declarações como uma forma enviesada de defender Trump. Trump nomeou Barr como Procurador-Geral porque assumiu que ele agiria desta forma. Barr não o desapontou.”
Mas o professor de Norhthwest não considera, contudo, que a defesa de Barr seja suficientemente forte para convencer tudo e todos da inocência de Trump e relembra que há outras formas de investigar e acusar um Presidente em funções: “Há o mecanismo constitucional do impeachment, que pode ser utilizado para tratar de conduta presidencial errada”. Ou, por outras palavras, King crê que Mueller parece estar a relembrar aos políticos, no seu relatório, que o Congresso pode agir. Jessica Levinson assina por baixo: “Parece que Mueller atirou isto diretamente para o colo do Congresso.”
O professor Arenberg, de Ciência Política, é ainda mais claro na sua leitura política: “O relatório tem uma narrativa em relação à obstrução da Justiça, com os vários incidentes que podem constituir crime. Essa narrativa pode ser lida como um roteiro para o próprio Congresso”, afirma. E, num processo que é muito mais político do que jurídico, todos os detalhes de contactos entre a campanha Trump e os russos presentes no relatório podem servir para condenar o Presidente de outra forma: “O Congresso é livre de investigar coisas que não são crimes e de o destituir por coisas que não são crimes”, relembra Kalt ao Observador.
O professor de Direito do Michigan, especialista em lei constitucional e no funcionamento das instituições democráticas, não tem dúvidas de que o conteúdo do relatório Mueller pode afetar ainda Trump de várias formas possíveis, quer políticas (com um possível impeachment), quer judiciais. “É importante notar que ele ainda pode ser acusado, só que apenas depois de ter cumprido o mandato. Posto de outra forma, a potencial imunidade do Presidente é temporária. Não se trata de um ‘se’ ele for acusado, trata-se de um ‘quando’“, afirma.
Quanto ao processo político, esse então parece estar para durar. “O jogo não acabou”, diz Kalt, referindo-se ao tweet do Presidente que afirmava Game Over. “Duvido que muita gente mude de ideias com base no que está no relatório, mas as provas de obstrução da Justiça serão difíceis de serem ignoradas pela Câmara dos Representantes. Sei que a presidente [da Câmara, Nancy] Pelosi não quer avançar com um impeachment, mas acho que vêm aí audições às ações do Presidente e essa discussão vai colocar-se. Não há nada naquele relatório que possa fazer os democratas dizerem ‘acho que ele não fez nada de mal’. Antes pelo contrário.”
Em público, o Presidente pode gritar aos sete ventos que o pior já passou. Mas o mais provável é que, à boa maneira da Guerra dos Tronos, o Inverno esteja a chegar.