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“Não teria conseguido interpretar o Richard Williams desta forma antes de ter examinado a minha vida e de ter percebido tantos aspetos da minha infância que afetaram as decisões que tomei enquanto pai”, explicava Smith ao The New York Times antes de vencer o galardão

Myung Chun / Los Angeles Times via Getty Images

“Não teria conseguido interpretar o Richard Williams desta forma antes de ter examinado a minha vida e de ter percebido tantos aspetos da minha infância que afetaram as decisões que tomei enquanto pai”, explicava Smith ao The New York Times antes de vencer o galardão

Myung Chun / Los Angeles Times via Getty Images

Os traumas familiares, a glória no cinema e um Óscar marcado por uma bofetada: a história e os dramas de Will Smith

Violência doméstica, um casamento demasiado público e um fantasma de cobardia definiram a carreira do ator que chegou ao Óscar com "King Richard", numa noite manchada pela agressão a Chris Rock.

Tinha pouco mais de 20 anos quando, todas as sextas-feiras após terminar as gravações de “O Príncipe de Bel-Air”, se sentava com o manager e delineava, passo a passo, o plano para se transformar na “maior estrela de cinema do mundo”. Que filmes fazer, que papéis evitar, com quem trabalhar — estava lá tudo. O método de Will Smith começou por funcionar na perfeição com os blockbusters “Dia da Independência”, “MIB — Homens de Negro” ou “Bad Boys”. Houve uns tropeções pelo meio, como “Wild Wild West”, mas também duas nomeações para o Óscar de Melhor Ator (com “Ali” e “Em Busca da Felicidade”). O mais irónico é que a vitória chegou quando o ator de 53 anos deixou de tentar ser o melhor em tudo.

A interpretação de Richard Williams em “King Richard — Para Além do Jogo” deu-lhe o Globo de Ouro e o SAG, o prémio dos críticos e agora o Óscar — numa noite que fica marcada pelo episódio mais insólito da história dos prémios, quando Smith reagiu a uma piada de Chris Rock com uma agressão em palco.

É discutível se a prestação no filme que lhe valeu a estatueta, depois deste episódio que rapidamente se tornou viral, é melhor do que as outras duas mas, como não é inédito acontecer nos prémios mais importantes do cinema, parecia estar na hora da consagração de Smith — Leonardo DiCaprio recebeu um Óscar graças a “The Revenant”: O Renascido”, em 2015, após cinco nomeações, algumas melhores do que aquela que lhe deu a vitória. Apenas o inesperado momento poderia suscitar uma mudança nos planos da Academia, hesitação que afinal de contas não chegou a confirmar-se. Entre lágrimas, Will Smith voltaria mesmo a palco, agora para agradecer a distinção.

[o momento em que Will Smith agride Chris Rock:]

“Richard Williams era um grande defensor da família. Nesta altura da minha vida, neste momento, sinto-me esmagado pelo que Deus me pede para ser neste mundo. Estou a ser chamado para amar as pessoas e para proteger as pessoas”, começou por dizer Smith, lembrando as dificuldades da profissão de ator, justificando ainda que “o amor faz-nos fazer coisas doidas”.

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Mas voltemos a títulos anteriores. “Pensava que ‘Em Busca da Felicidade” era o melhor filme que alguma vez tinha feito. […] A reação que ’King Richard — Para Além do Jogo’ está a ter era o que eu achava que ‘Em Busca da Felicidade’ ia ter. Alguma coisa muito única aconteceu com este filme, nunca tinha passado por este nível de apreciação com um filme”, confessou em entrevista ao “The Blast”. Sem saber muito bem como, garante, neste projeto tudo se conjugou na perfeição. “Ser parte desta história e sentir a forma como o mundo está a reagir é um nirvana artístico”, descreveu ao site “Deadline”.

“King Richard — Para Além do Jogo” conta a ascensão das tenistas e irmãs Venus e Serena Williams, que devem grande parte dos respetivos sucessos ao pai, Richard, um homem obstinado, pica-miolos e sonhador (ou talvez com uma certa dose de loucura?). O que deu mais prazer a Will Smith neste projeto foi poder incentivar e puxar pelas jovens e inexperientes Saniyya Sidney e Demi Singleton, que interpretam Venus e Serena, respetivamente. Talvez essa generosidade tenha contribuído para a atribuição do Óscar que chega naquela que o ator descreve como a melhor fase da sua vida.

Em "King Richard" Will Smith é Richard Williams, o pai das tenistas Serena e Venus Williams

“Não teria conseguido interpretar o Richard Williams desta forma antes de ter examinado a minha vida e de ter percebido tantos aspetos da minha infância que afetaram as decisões que tomei enquanto pai”, explicou ao “The New York Times”.

Referia-se à violência doméstica de que a mãe foi vítima e que o deixava sempre inerte, com um sentimento de cobardia que o perseguiu durante quase toda a vida e que só conseguiu ultrapassar após a morte do pai, em 2016, e com a publicação de uma biografia, em 2021. “Estava a organizar a minha biografia no mesmo momento em que estava a fazer ‘King Richard’. As duas coisas andaram de mãos dadas. As minhas competências como ator expandiram nos últimos 18 meses. Foi um dos saltos mais exponenciais que já tive no campo da compreensão emocional.”

Não ao IMT, sim ao rap

Willard Carroll Smith herdou o nome do pai e nasceu a 25 de setembro de 1968 em Filadélfia, no estado da Pensilvânia (EUA). A mãe era administrativa numa escola, o pai veterano da Força Aérea e engenheiro de refrigeração. O casal já tinha uma filha, Pamela, e depois de Will nasceram os gémeos Harry e Ellen.

Tentando ignorar o clima de tensão que tinha em casa, passava horas infinitas na cave do amigo Jeffrey Townes a criar música. No final da escola secundária foi aceite num programa de verão de pré-engenharia no MIT (Instituto de Tecnologia do Massachusetts) mas não desistiu, tal como também não se inscreveu na faculdade. Já aí sabia bem o que queria fazer: rap.

Will Smith Portrait Session

Will Smith em 1996, em Los Angeles

Getty Images

Ainda nem tinha terminado o ensino secundário e já tinha um sucesso nas mãos. “Girls Ain’t Nothing but Trouble” foi gravado com Jeffrey (nesta altura já DJ Jazzy Jeff) e com Ready Rock C. Smith (ou Fresh Prince, nome que já tinha adotado) era o MC. Em 1989 conquistou o primeiro Grammy com Jeff e em 1991 o segundo. Por esta altura já estava a recuperar do desfalque que tinha levado nas contas — sendo que o primeiro desfalque foi feito por ele quando não declarou todos os seus rendimentos. Acabou a pagar uma dívida de 2,55 milhões de euros, ficou sem muitos bens materiais e todos os meses as Finanças lhe confiscavam parte do que ganhava. O problema, porém, não estava só aí: estourou milhares em carros e prendas para namoradas e acabou a pedir dinheiro a um traficante de droga para se mudar para Los Angeles.

“O Príncipe de Bel-Air”, a sitcom feita em torno dele, tirou-o do buraco, dando em simultâneo início à sua carreira de ator. O casting aconteceu no momento mais inusitado possível: durante uma festa na mansão de Quincy Jones. Para o público da série, no ar de 1990 a 1996, o que transparecia era energia e boa disposição, apesar de nada disso corresponder à realidade. “A imagem animada e feliz foi pintada sobre uma verdadeira falta de auto-estima e respeito”, confessaria cerca de três décadas depois em “Will”, a biografia publicada no ano passado.

A bofetada de Will Smith a Chris Rock no momento mais insólito (da História) dos Óscares

A carreira no cinema fez-se lado a lado com a carreira a solo (“Men in Black” e “Gettin’ Jiggy wit It” continuam nas cabeças de toda a gente). Recusou o papel de Neo na saga “Matrix” (que foi parar a Keanu Reeves) para fazer “Wild Wild West”, um flop.

Fugiu sempre de estereótipos, sobretudo sobre o passado de escravatura nos EUA. “No início da minha carreira não queria mostrar as pessoas negras sob aquela luz. Queria ser um super-herói. Portanto, queria representar a excelência negra ao mesmo nível dos meus colegas brancos. Queria fazer papéis que dariam ao Tom Cruise. A primeira vez que o equacionei [um filme sobre escravos] foi com ‘Django Libertado’. Mas não queria fazer um filme de escravatura sobre vingança”, explicou à revista “GQ”. Acabaria por abordar o tema este ano com “Emancipation”, que se encontra em pós-produção. Desta vez, aceitou o projeto por ser “sobre amor e o poder do amor negro”.

Em 2001 conseguiu a primeira nomeação para os Óscares ao interpretar o pugilista Muhammad Ali em “Ali”. 2007 deu-lhe a segunda, graças a “Em Busca da Felicidade”, um filme inspirado numa história verídica no qual contracenou com o filho, Jaden Smith, na altura com nove anos.

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Na cerimónia dos Óscares, com a mulher Jada Pinkett Smith

WireImage,

Casou pela primeira vez em 1992, com Sheree Zampino, com quem teve um filho, Trey. A relação terminou passados três anos e, em 1997, Will Smith voltou a casar, desta vez com Jada Pinkett, que conheceu quando esta fez um casting para “O Príncipe de Bel-Air”. Além de Jaden, têm uma filha, Willow.

Os Smith admitiram ambos ter tido casos extra-conjugais e a sua vida conjugal é quase tão mediática (ou será mais?) do que as carreiras. Os dois têm escolhido falar abertamente dos desafios da união de décadas. “Navegamos juntos, morremos juntos. Mau casamento para a vida”, garantiram durante um episódio de “Red Table Talk”, programa de conversas que Jada Pinkett Smith conduz geralmente ao lado da filha, Willow, e da mãe, Adrienne.

O pai, a figura que definiu tudo

Em novembro de 2021 publicou uma biografia, Will, escrita em parceria com Mark Manson, autor de A Arte Subtil de Saber Dizer que se F*da. Um dos temas centrais é a ligação ao pai. Quando tinha nove anos viu-o esmurrar a mãe na cabeça. “[Esse momento] definiu quem sou hoje”, escreveu. Naquele instante, uma das irmãs fugiu para o quarto para se esconder, o irmão tentou parar a agressão e Will Smith ficou bloqueado, sem conseguir reagir.

Os pais separaram-se quando tinha 13 anos e, apesar do mau ambiente em casa, Will Smith assumiu a culpa. “Foi a única altura da minha vida em que equacionei o suicídio. Era culpa minha. Sabe como a cabeça dos miúdos funciona, era de alguma forma culpa minha o facto de a minha família estar a desmoronar-se”, revelou numa conversa concedida ao programa “Sunday Morning”, da CBS, a 12 de março.

Will Smith só começou a abrir este capítulo depois de publicada a biografia. “Nunca teria conseguido falar sobre isso [a violência doméstica] antes de ele [o pai] morrer”, explicou à revista “GQ”. “Vi o meu pai bater à minha mãe e essa narrativa não encaixava na imagem que eu estava a criar. Era embaraçosa”, disse ao site “NPR” aquando do lançamento do livro.

Foi diagnosticado um cancro a Willard Carroll Smith Sr. em 2016, três semanas depois de o ator aceitar participar em “Beleza Colateral”, onde a sua personagem lida com a morte da filha. Para se preparar para o papel tinha começado a ler livros sobre religião e vida após a morte, o que acabaria por aproximá-lo do próprio pai. “Ter de enfrentar a mortalidade e a morte iminente do meu pai enquanto estava a preparar-me para este papel deu-nos uma interação incrível durante aquele tempo. Conseguimos ter conversas que nunca teria tido maturidade ou abertura suficientes antes […]. Foi uma forma muito bonita de me preparar para um filme e uma maneira ainda mais majestosa de dizer adeus ao meu pai”, contou à publicação “USA Today”. Willard sénior acabaria por morrer em novembro desse ano.

2002 Tree of Life Awards

Com o pai, Willard Smith, em 2002, na Califórnia

Ron Galella Collection via Getty

Antes da publicação do livro, decidiu reunir as pessoas mais próximas mencionadas na biografia para lhes ler as passagens que lhes eram dedicadas. As partes mais difíceis diziam respeito à mãe. “Ela nunca tinha ouvido a minha perceção do que aconteceu. De certa forma foi catártico. Correu muito bem mas foram umas semanas pesadas”, disse à “GQ”.

Na obra explicou que, ao longo dos anos, se focou em agradar a toda a gente, achando que, assim, nunca teria como resposta a violência. “A comédia dissipa todo o negativismo. É impossível estar zangado, com raiva ou violento quando estamos contorcidos a rir.”

Quatro da manhã: hora de meditar

Quando saiu da casa dos 40 anos e entrou nos 50, percebeu que o amigo Denzel Washington tinha razão quando lhe dissera que seriam os “fuck-it 50s” (a década do “que se lixe”). Deixou de se preocupar com o que os outros pensavam e focou-se nele. Alugou uma casa no estado do Utah onde ficou sozinho durante 14 dias, deixou de andar com seguranças para todo o lado, viajou até ao Peru e participou em vários rituais ayahuasca (através de um chá que provoca alucinações), sendo que Will Smith nunca tinha fumado erva e quase não bebe álcool. Apesar de todas essas mudanças, continua a ter uma rotina muito bem definida. Entre as quatro e as seis da manhã está sempre acordado. Lê, medita ou sonha com projetos que quer muito concretizar. “Suponho que a ideia de controlo sossega a minha cabeça”, reconheceu ao “The New York Times”.

Tornou-se ainda uma sensação no Instagram e no TikTok. Pesquisou a melhor forma de criar conteúdos, inspirou-se em colegas e influencers, e desde 2017 que através da sua empresa, a Westbrook Media, começou a filmar, editar e a partilhar os bastidores das produções onde trabalha. Às vezes pede opinião aos filhos sobre os posts.

Aos 53, parece pouco importado com flops ou sucessos de bilheteira, tendo apenas um objetivo: “contar histórias que ajudem as pessoas a perceber como ser feliz aqui. […] Passei a primeira metade da minha vida a juntar, juntar, juntar, e agora, a segunda metade, é para dar”, disse à “GQ”.

Ao “The New York Times” foi mais longe na explicação: “Fazer estratégias sobre como ser a maior estrela de cinema no mundo — isso está completamente acabado. Percebi que para aproveitar o meu tempo aqui, e de forma a ser útil, é muito mais sobre auto-examinação. Quero aceitar papéis nos quais possa olhar para mim próprio, onde possa olhar para a minha família, onde possa ter ideias importantes para mim”, explicou ao “The New York Times”.

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