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Outros poderes. A radiografia à Associação Nacional de Farmácias

Como funcionam as organizações mais poderosas do país? De onde vêm as receitas? Quem manda? Muito mais do que a associação das farmácias, a ANF é o segundo de uma série de artigos de investigação.

O Observador publica nas próximas semanas vários capítulos de uma grande investigação sobre organizações com impacto e influência na sociedade portuguesa. Os trabalhos foram realizados com uma bolsa Gulbenkian de investigação jornalística.

Protagonistas nos seus setores e com grande capacidade de mobilização, as organizações selecionadas falam e atuam em nome de milhares de associados, têm capacidade de influenciar a opinião pública e o poder político e podem receber e gerir milhões de euros em nome do Estado.  Mas o escrutínio público não é feito de forma sistemática, às vezes nem pelos próprios pares, e só aparecem no radar quando são apanhadas por uma “crise”.

Como funcionam? Como são financiadas? Quem as governa e a quem prestam contas? Estas são algumas das respostas que este trabalho procura responder para a Associação Nacional de Farmácias (ANF).

O edifício sede da ANF em Sta Catarina acolhe também o museu da farmácia e tem um restaurante. Foto Melissa Vieira/Observador

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

A sede da Associação Nacional de Farmácias fica num palacete em Santa Catarina, no coração histórico de Lisboa. O edifício do século XIX acolhe também o museu da Farmácia e um restaurante com vista panorâmica sobre a zona ribeirinha. O espaço combina com um setor que tem sido historicamente associado a grandes margens de negócio, mas as duas realidades são distintas, como avisa o histórico presidente da ANF.

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“O setor das farmácias nunca foi tão rentável como se dizia, mas criou-se essa ideia por causa da imagem de poder que a associação tinha”, afirmou João Cordeiro numa entrevista dada em 2018.

Nos 40 anos do Serviço Nacional de Saúde, assinalados em 2019, foi lançada a petiçãoSalvar as Farmácias. Cumprir o SNS”, com dados que mostram um setor a perder a vitalidade económica e com grandes assimetrias.

O número de farmácias em insolvência mais do que triplicou em cinco anos, passando de 241 em 2012 (8,3% do total) para 630 em 2017 (21,4%). A petição entregue no Parlamento indica que 679 estabelecimentos estão em risco de insolvência ou penhora, 23% do total de 2.900 farmácias. A introdução dos genéricos, que representam já 40% dos medicamentos vendidos, e a queda das margens na venda são fatores apontados como causadores desta situação. A necessidade de garantir a dispensa de medicamentos comparticipados pelo Estado é mais uma pressão financeira. E as farmácias são também vítimas da desertificação e do envelhecimento de grandes áreas do país.

Nos últimos anos fecharam 150 unidades e abriram 200, mas a maioria dos fechos foi no interior e as aberturas no litoral. No petição, as farmácias são apresentadas como o braço do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que está mais perto dos cidadãos, sobretudo nas localidades mais pequenas do interior do país, onde fecharam o centro de saúde, o tribunal e outros serviços públicos. A rede portuguesa ainda é apontada com uma das cinco melhores do mundo, com mais de três profissionais por farmácia. Mas isso está em risco, avisam os promotores do apelo lançado aos políticos, para quem é urgente salvar as farmácias. A petição foi apoiada por mais de 120 mil assinaturas e conquistou o direito a ser discutida no Parlamento.

Uma parte das dificuldades financeiras das farmácias resultou de medidas adotadas no primeiro Governo de José Sócrates, logo a partir de 2005, para acabar com o “monopólio” e as margens comerciais consideradas generosas que este permitia. Desde a liberalização da venda de medicamentos sem receita médica, passando pelo fim da exclusividade na propriedade das farmácias (por parte dos farmacêuticos). Apesar de decisões vistas como hostis, João Cordeiro, então presidente da ANF, deixou elogios ao ex-primeiro-ministro e destacou o “carinho” de Sócrates para com este setor, em entrevista em abril de 2008.

“Hoje posso afirmar isso com bastante mais segurança porque José Sócrates manteve uma atenção muito especial para com o sector. Em fases decisivas, soube mostrar o carinho, o interesse e a avaliação positiva do sector. Soubemos responder de forma muito positiva aos desafios que tivemos nestes últimos três anos.”

O então líder das farmácias também questionou a tese do grande poder atribuído ao setor e à ANF.

“Os nossos adversários tentam criar essa imagem, de que somos um lóbi poderosíssimo (…) Acho isso ridículo, sobretudo se compararmos o poder das farmácias ao poder das multinacionais farmacêuticas. Somos, sim, um setor organizado e não dependemos do poder político (…) Além disso, não dependemos economicamente do poder político e qualquer partido ou Governo não gosta de associações profissionais organizadas”.

Um discurso que  mantém dez anos depois, quando, numa outra entrevista, João Cordeiro, já afastado da ANF, preferiu valorizar a capacidade das farmácias em obter uma “rentabilidade razoável”, apesar das margens mais baixas da Europa, e a aposta na informatização das operações. Condições, que do seu ponto de vista, abriram caminho para o salto de dimensão dado pela ANF para um grupo económico de dimensão nacional.

“Hoje a associação tem ativos superiores a 700 milhões de euros — em imobiliário e participações em empresas como a José de Mello ou a distribuidora de medicamentos Alliance Healthcare — (…) não vejo mais nenhuma estrutura associativa no país com este tipo de capacidade organizativa”.

Cronologia

O universo ANF. De associação a grupo económico

Se o setor está em crise há vários anos, a organização que o representa é uma das associações empresariais mais fortes e bem sucedidas em Portugal. A ANF tornou-se também a cabeça de um grupo económico que fatura mais de 700 milhões de euros e cujo raio de ação vai desde o setor financeiro e imobiliário, passando pelos negócios da saúde e da tecnologia.

As contas e o património da associação representam um contraste com o enfraquecimento económico do setor das farmácias. Ainda assim, a associação sublinha que os rendimentos das quotas dos associados, no que toca à componente variável, estão em queda com a crise no setor. Desde 2011 que a direção tem proposto ao conselho nacional a suspensão da obrigação estatutária de afetar um terço do valor a uma reserva de investimento. Essas receitas têm sido incorporadas nos rendimentos de exploração, permitindo atingir o equilíbrio dos resultados.

A Farminveste é a holding que controla os negócios mais importantes da Associação Nacional de Farmácias. Uma parte destas operações resulta das respostas às necessidades do próprio setor farmacêutico. É o caso da Finanfarma. A sociedade arrancou em 2007 como uma instituição financeira vocacionada para gerir e cobrar os créditos e transações financeiras no setor, permitindo adiantar pagamentos devidos pelos fornecedores do Estado às farmácias.

No universo empresarial podemos ainda encontrar uma parceria internacional na distribuição de produtos farmacêuticos, a Walgreens Boots Alliance, dona da cadeia Boots, uma participação relevante de 30% no Grupo José de Mello Saúde, dono dos hospitais CUF — ainda que uma divergência recente sobre a gestão tenha levado a ANF a sair da administração desta empresa — e o controlo de um dos maiores grupos tecnológicos em Portugal, a Glintt. O grupo inclui ainda empresas em áreas como o diagnóstico médico, a biotecnologia, os suplementos alimentares, a gestão de embalagens e até a veterinária. A ANF opera ainda no mercado imobiliário com um fundo e uma sociedade gestora.

Detida em 87,7% pela ANF, a Farminvest tem 12,3% do seu capital distribuído por sócios particulares. São cerca de 3000 associados e quase todos proprietários ou antigos proprietários de farmácias. As ações são divididas em duas categorias, as A – que não têm limites de direitos de voto e são detidas pela ANF – e as B, que estão limitadas a 125 mil votos.

Apesar de o capital social estar todo nas mãos do “setor”, a Farminveste é uma sociedade que emite dívida e podemos encontrar toda a informação financeira no site. Ainda em outubro, foi anunciada uma emissão de obrigações convertíveis em ações – no valor de 10 milhões de euros, a três anos – que se destina a financiar as atividades do grupo e a reduzir o endividamento bancário.

Pela consulta das contas, a holding que concentra os negócios da ANF não distribuiu dividendos nos últimos seis anos. Fonte oficial da instituição justifica esta opção com a execução nos últimos anos de “um plano de investimentos significativo e um serviço de dívida a cumprir que não lhe tem permitido distribuir resultados”. Acrescenta que existem projeções de que será possível haver distribuição de dividendos dentro de três anos, em 2022, por referência às contas de 2021.

Mas se os acionistas particulares não têm sido remunerados, alguns têm obtido rendimentos com a venda das suas ações na Farminveste à entidade que a controla, a ANF.

Ao longo do ano de 2019 foram comunicadas cerca de 60 operações de aquisição de ações, num valor da ordem dos 145 mil euros, e correspondem quase todas à compra por parte da ANF de ações que estavam na posse de acionistas individuais. A associação explicou ao Observador que estas operações acontecem quando surgem oportunidades de compra a um preço justo.

Como está organizada e quem manda na ANF

A Associação Nacional de Farmácias tem sede em Lisboa e duas delegações, Centro e Norte, localizadas em Coimbra e Porto. Está organizada em órgãos nacionais e regionais. A estrutura inclui um conselho disciplinar, a quem cabe avaliar infrações e aplicar sanções, e um conselho fiscal que acompanha e fiscaliza a atuação da direção. Os órgãos regionais contemplam assembleias nos Açores e Madeira, assembleias distritais, assembleias de círculo e delegados de zona.

Com a exceção do conselho nacional, que integra todos os órgãos nacionais e regionais da ANF, os órgãos dirigentes são eleitos em assembleia geral a cada três anos, que é a duração de um mandato. Não há limite à repetição de mandatos. O conselho nacional é composto pela mesa da assembleia-geral, delegados regionais, delegados de círculo, conselho disciplinar, direção, conselho fiscal e antigos presidentes e ex-vice-presidentes, estes dois últimos sem direito de voto. Compete-lhe fixar joias, quotas, decidir venda ou compra de bens.

A direção é composta por um presidente, três vice-presidentes e cinco vogais eleitos em assembleia geral. O atual elenco é composto por nove administradores efetivos e duas suplentes. Estes cargos não são remunerados, mas por baixo da direção da associação há uma comissão diretiva, executive leadership team, composta por cinco elementos que são pagos.

São cargos executivos, não eleitos, que são remunerados pelas funções que exercem na ANF e que recebem prémios de gestão. Fonte oficial da instituição explica que a remuneração variável é atribuída em função do desempenho face a objetivos pré-definidos.  O pagamento de prémios é supervisionado pela comissão de remunerações do grupo ANF. Quase todos os titulares desempenham cargos remunerados no universo empresarial da ANF que é dirigido a partir da direção da associação. O presidente da ANF, Paulo Cleto, e outros membros da direção da ANF estão representados na administração de várias empresas. Por regra, apenas um dos cargos é remunerado como administrador executivo.

Vários membros dos órgãos sociais são acionistas da Farminveste que, no seu total, controlam mais de 24 mil ações num total de 9,5 milhões de ações. Está disponível ampla informação pública sobre os titulares dos órgãos sociais e respetivas remunerações e a instituição garante que estes interesses cruzados estão devidamente acautelados.

“De modo a assegurar a independência entre a ANF e a Farminveste e a evitar que o controlo da primeira sobre esta última seja exercido de forma abusiva, destaca-se a total transparência nas relações mútuas, o estrito cumprimento das normas legais e regulamentares neste âmbito, em particular, em matéria de conflitos de interesses e de relações com entidades relacionadas.”

A evolução na continuidade é a tendência que marca a sucessão de dirigentes na ANF, escolhidos dentro da casa.  Depois do histórico presidente João Cordeiro ter ficado mais de 20 anos à frente da ANF, Paulo Cleto Duarte ocupa o cargo desde 2013. Antes esteve dez anos na estrutura dirigente da associação, primeiro como secretário-geral e depois como vice-presidente.

Cleto Duarte é também o presidente da Farminveste, o braço empresarial da ANF que controla negócios nos setores da distribuição, financeiro, tecnologia, saúde e participações acionistas na José de Mello Saúde e na José de Mello Residências. E acionista individual da Farminveste. Foi reeleito em fevereiro deste ano para fazer mais um mandato de três anos na presidência da ANF. Obteve cerca de 90% dos votos das mais de 2500 farmácias que votaram.

Cleto Duarte tem um perfil mais low-profile que o seu antecessor.  Dá menos entrevistas, apesar de escrever pontualmente opinião em jornais como o Público, colunas que usa para lançar alertas sobre as dificuldades do setor, sobretudo nos anos da crise. Numa das últimas entrevistas, defendeu a revisão do sistema de comparticipação de medicamentos no sentido de subsidiar os utentes, em função dos seus rendimentos, e não subsidiar os produtos.

Paulo Cleto ao lado de Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde. Foto de Tiago Petinga/Lusa

LUSA

Farmacêutico, empresário e gestor, tem 46 anos e é co-proprietário de duas farmácias na área de Lisboa. Toda a sua vida está ligada ao setor: é licenciado pela Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e tem um MBA em gestão de informação da Universidade Católica Portuguesa. Começou a carreira na multinacional Johnson & Johnson. Assumiu o cargo secretário-geral da ANF em 2002, posição que só deixou para a presidência. Foi também secretário-geral da Ordem dos Farmacêuticos e esteve na Comissão Nacional de luta contra a Sida onde trabalhou com Odette Santos Ferreira.  Atualmente é membro do Conselho Nacional de Saúde, órgão de consulta do Governo.

Avaliação de transparência

Este trabalho termina com uma avaliação sobre o nível de informação pública e aberta a todos facultada pela instituição, mas também da resposta dada pela entidades visadas, quando contactadas por via institucional (gabinetes de comunicação) para responder a um questionário exaustivo, ou, em alternativa, fornecer a documentação que pode conter a informação pedida. São ponderados fatores como a disponibilidade inicial para responder, tempos de resposta, envio de documentos, grau de detalhe nos documentos facultados, disponibilidade para dar esclarecimentos adicionais e necessidade de recorrer à liderança das organizações para desbloquear o processo de envio de informação.

Apesar de ter um site institucional fechado a não membros, a ANF foi uma das primeiras entidades a responder aos pedidos de informação e a dar acesso a documentos necessários, estando também disponíveis muitos dados públicos sobre o seu universo.

O próximo trabalho a publicar será sobre a Deco — Associação Portuguesa da Defesa do Consumidor. 

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