É uma junção de todas as pessoas que já passaram pela sua vida, de todas as experiências que teve, de tudo aquilo que aprendeu e de tudo aquilo que já provou. Não querer estrelas Michelin e não voltar a viver e a trabalhar em Lisboa são duas grandes certezas da sua vida, que seguem de mãos dadas com a convicção de que será sempre reconhecida como a grande vencedora do primeiro Hell’s Kitchen Portugal, apesar de se considerar uma figura “semi pública”. É de Francisca Dias que falamos, a chef de 32 anos que participou, em 2021, no programa televisivo culinário guiado por Ljubomir Stanisic e que quase quatro anos depois abre o seu primeiro restaurante. Chama-se Esteva, fica em Borba, no topo da Herdade da Videira, e está de portas abertas desde dia 23 de outubro, com uma carta feita para os locais.
“Nem sei como é que estou aqui”, revela, em conversa com o Observador. Foi junto de Tânia, a sua mulher, que decidiu dar vida a este projeto. Depois de quase três anos na Casa do Gadanha, onde esteve ao lado do chef Ruben Trindade Santos, a uns quilómetros de distância em Estremoz, a jovem natural de Mação lançou-se à aventura e começou a pensar em abrir o seu primeiro restaurante. Já com um negócio assente na zona — o Cisca à Mesa, no qual preparava jantares de grupo em casa — e com uma base sólida de clientes bastou apenas dar o salto. “Encontrámos este sítio, é muito bonito, achámos que era a nossa cara e pensámos ‘ok é aqui'”. Dito assim parece que foi fácil, mas, antes de entrarem pelos portões da Herdade da Videira, Francisca e Tânia exploraram outras opções, visitaram outros espaços, tendo até mesmo chegado a pensar em abrir uma hamburgueria em Estremoz. “Mas neste espaço não fazia sentido. Foi o espaço que nos empurrou para o tipo de cozinha que apresentamos“.
Esteva, inspirado numa flor nativa da parte ocidental do Mediterrâneo, que cresce de forma espontânea em Portugal, e em especial no Alentejo, tem tanto de afetivo como de local. “Queríamos um nome com o qual nos identificássemos mas que também tivesse a ver com a envolvente”, explica. “Existe muito lá na minha zona e por isso faz-me lembrar casa, que é o como nós queremos que as pessoas se sintam quando cá vêm”, acrescenta Francisca, justificando ainda a escolha do nome pela fácil associação dos locais.
É assim, num antigo palheiro plantado por entre planícies alentejanas cobertas de vinhas, que o Esteva se ergue. Com um ambiente tranquilo e descontraído, homenageia o campo com uma cozinha tradicional, focada nesta região de Portugal, mas sem “fazer o que toda a gente faz”: é feito à maneira de Francisca e Tânia. “É um restaurante feito por pessoas novas. Com os anos de experiência que tenho acaba por ter um resultado diferente do que se fosse uma senhora de 60, 70 ou 80 anos a cozinhar“. São essas pessoas novas que compõem a equipa. Para além de Francisca, na cozinha, e de Tânia, na sala, o Esteva conta ainda com Andreia, que dá uma mão à chef e está estacionada na copa, e com um próximo integrante, que ainda está para chegar. Juntos apresentam uma carta recheada de produtos familiar às gentes vizinhas, tornando a escolha mais fácil para quem a visita — como o caso do cação, mas já lá chegaremos. Antes, é importante destacar que o Esteva é feito de produtos locais, mas não a 100%. “Tentamos usar o mais local possível, dentro do suportável custo, benefício e qualidade para nós e para toda a gente”.
O que se come? Dividido em três momentos, o menu do Esteva convida, primeiramente, a picar. E não fôssemos estar no Alentejo, o pão acompanha qualquer um daqueles três. Escondido dentro de um talego tradicional, é feito por cá, tendo como base a receita da mãe de Francisca — que em tempos teve uma padaria —, mas, em vez de ser apenas de trigo, junta-se também o centeio, acompanhado pelas técnicas mais recentes de produção de pão. Já o conduto é a manteiga de porco batida e finalizada com pimentão de la vera, que lhe dá um toque fumado, e com flor de sal. Antes de os petiscos chegarem, a fome é colmatada com o pão quente e com a azeitona pisada com alho. Em homenagem ao coelho de escabeche da zona, Tânia sugeriu que fosse utilizada aquela mesma proteína para uma das entradas: os croquete de coelho com maionese de escabeche (2€). “Há dois restaurantes aqui à frente que são conhecidos pelo coelho assado no forno e nós somos conhecidos pelos croquetes de coelho. Não deixamos de seguir a tradição aqui dos nossos vizinhos”, afirma Francisca. A partilhar a carta com estes, há também enchidos de porco preto (6€), orelha frita com maionese de coentrada (6€) e tortulhos assados com coentros e alho (6€) — “são cogumelos, na minha zona chamamos tortulhos”.
Antes de irmos buxar, há uma pergunta a fazer: porquê descentralizar e não apostar num projeto em Lisboa? “Há uma certeza que tenho na vida que é não voltar a Lisboa nunca mais“, respondeu Francisca, justificando que, quando chegou à capital há 13 anos, a cidade era diferente, “muito mais divertida, esta é muito chata”. A acrescentar está a já antiga vontade de querer viver no interior aliada à qualidade que oferece a si e à sua família. “Eu aqui tenho muito mais vida. Em Lisboa, quando trabalhava no Feitoria, estava a 12 km do restaurante e demorava 45 minutos a chegar. Agora estou a 17 km e demoro 15 minutos”, explicou, acrescentando que “a nossa filha está bem aqui, é uma zona melhor para o nosso dia-a-dia de família”.
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Podemos seguir para os principais. Chega primeiro à mesa a batata, ovo e bacalhau (13€) — e não é cozido, antes ao estilo ovos rotos — que convidam a rebentar e a migar, seguido do arroz de coentros com cação (13€) — “é como se fosse a sopa mas é um arroz ” — antes da tarte de ensopado de borrego (12€) que, face à indecisão entre um ensopado e uma tarte, junta os dois pratos num só. Nos extras, não faltam ainda as migas de coentros (2,50€), o arroz de manteiga (2,50€) e as típicas batata frita (2,50€) e salada (2€). O que se bebe? Há vinho “porreiro”, não da casa mas de jarro, e uma carta que se divide entre o branco, o tinto, o rosé e o espumante, com sugestões da região.
Para rematar, Francisca reconhece que falta uma sobremesa alentejana — está a trabalhar nisso — mas para já há quatro opções bem típicas para adoçar o final deste almoço. Sempre com um toque de Cisca, há mousse de chocolate com praliné de avelã (5€), leite creme de Esteva (4,50€), molotof com caramelo (3,50€) e molotof com creme inglês e canela (4,50€).
Apesar de ter um menu fixo, a chef tem a liberdade para “brincar com o que quiser”, e é isso que faz com as sugestões, que podem ir mudando todas as semanas. Quando o Observador visitou o Esteva, no início de novembro, os pratos em destaque na entrada do restaurante eram fígados de galinha salteados com marmelos ou cogumelos selvagens. “Na semana passada tive sopa de mogango com feijão”, afirmou. “Se saírem bem posso acrescentar na carta mas as pessoas aqui às vezes gostam de ir àquele sítio comer aquele prato. Não gostam que esteja sempre a trocar“, lembrou.
“O que as pessoas comem aqui sou eu. O Cisca à Mesa era eu, na Casa do Ganhada também era eu. Existem vários eus. Sou muito versátil. Tenho uma carta com alguma coisa tradicional, mas depois posso ir brincando, mas também não deixo de usar coisas que me são muito confortáveis, ou produtos que, se fosse a minha mãe a cozinhar, nunca ia usar, mas eu uso para dar sabor, ou uma textura”, explica Francisca. É essa versatilidade que leva a perguntar: e o mundo do fine dining? “Essa é outra certeza que tenho na vida, não quero estrelas Michelin“, respondeu convicta, explicando que, apesar de durante muito tempo ter sido uma importante parte da sua vida, dispensa retomar esse registo.
“Eu já estava um bocadinho farta. Quando saí do Feitoria disse que nunca mais voltava mas, depois do programa, o Ljubomir fez-me a proposta e eu disse ‘ok vamos dar uma segunda oportunidade’. Quando recebi a proposta para vir para a Casa do Gadanha, a vida ia mudar muito mas achámos que podia ser bom”.
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Agora sem “esse ritmo da vida das estrelas”, Francisca junta no Esteva aquilo que aprendeu com João Rodrigues nos seus tempos no Feitoria — a técnica — e com Ljubomir Stanisic nos seis meses que esteve no 100 Maneiras — a intensidade. “É a junção de uma coisa mais equilibrada. E depois também as minhas raízes, aquilo que aprendi com a minha avó. É o misto. Aquilo que eu gosto. Aquilo que eu sou. Aquilo que eu aprendi. A junção de tudo o que tu aprendeste dá-te a ti”.
Quanto ao Hell’s Kitchen, afirma que será sempre a vencedora do primeiro programa em Portugal mas não vê isso como algo negativo. Na época, sem contrato renovado, decidiu apostar no concurso na esperança que alguém “notasse em mim para depois me contratar para trabalhar”. A proposta do Ljubomir para integrar a equipa do 100 Maneiras chegou, mas Francisca acredita que a sua vida não mudou muito devido ao programa, e ao contexto de então. “Na altura da pandemia estava tudo muito parado. Houve ali gestões que hoje em dia podia ter feito de forma diferente”, no entanto, “hoje dá-me a possibilidade de estar aqui sentada a conversar sobre o restaurante”.
“O engraçado é que as pessoas fixaram muito a minha cara. Passaram três anos e reconhecem-me. E às vezes nem me associam ao programa, dizem assim ‘de onde é que eu conheço a menina?’ Eu nunca digo que me conhecem da televisão“, revela. São essas pessoas que fazem a viagem para virem conhecer o seu trabalho no Esteva, assim como a comunidade que Francisca e Tânia aqui criaram: “Vêm por mim em televisão, por mim no Casa do Ganhada e por mim no Cisca à Mesa”. Tendo uma “vida semi pública” admite ser natural que o negócio “vá mexendo bem” mas rejeita trampolins: “nas redes sociais já comentaram ‘só cunhas’. Ok, pronto. Eu paguei este sítio com o meu dinheiro, as coisas que estão cá foi com o meu dinheiro, não há nenhum investimento de fora sem ser o nosso. Isto é nosso, meu e da Tânia”. O Esteva vale a pena a viagem? “Sinceramente, acho que sim.”