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Reportagem no Vaticano
Há um silêncio cerimonioso na sala de refeições da Casa de Santa Marta, no Vaticano. Os talheres tilintam nos pratos, ouve-se um murmúrio de conversas vindo de cada mesa redonda e notam-se os passos de quem entra e sai. É quase uma da tarde e tanta deferência não é um mero acaso. Ao canto, numa mesa retangular entre a porta e janela, virado para a parede, está sentado o Papa, de batina branca, mas sem o solidéu que usa fora de casa. Quem aqui vive — maioritariamente funcionários da Santa Sé —, já se habituou a vê-lo todos os dias à mesma hora e faz por respeitar a privacidade do Pontífice. Os de fora vêm quase sempre de propósito para o ver e dificilmente resistem a observá-lo pelo canto do olho. Afinal, esta é uma rara oportunidade para estar a dois passos de Francisco, o Papa que quis viver rodeado de gente.
No início, o antigo arcebispo de Buenos Aires fazia as refeições numa mesa a meio da sala. “Depois de girar um bocadinho, passou a ficar sempre naquele canto, mais resguardado de quem ia e vinha. O que o incomodava não era que fossem ter com ele, mas o facto de se levantarem quando ele entrava e saía. Ficava doente com aquelas inclinações todas! Bem dizia: ‘Sentai-vos, sentai-vos!’, mas ninguém fazia isso”, conta monsenhor Ferreira da Costa, que mora em Santa Marta há alguns anos e se cruza quase diariamente com Francisco.
Por norma, o Papa passa a manhã a trabalhar no Palácio Apostólico: é lá que se reúne com colaboradores e recebe convidados em audiência. Às 12h30, volta para casa e almoça na companhia dos secretários e mordomos. Juntos fazem uma pequena oração de pé e só então se sentam à espera da comida, exatamente igual à de todos os outros. Hoje, a ementa é risotto de açafrão, bacalhau com batatas e fruta da época. Na véspera, houve sobremesa melhorada: Torta Mimosa, um típico bolo italiano feito habitualmente no dia da Mulher. Como era dia de festa, serviu-se champanhe para comemorar os quatro anos de um Pontificado que se anunciou revolucionário ainda antes de começar.
No discurso que fez às Congregações Gerais, nas vésperas do Conclave que o elegeu, em 2013, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio falou claramente daquilo que esperava da Igreja e também do novo Papa. Nas notas manuscritas que alinhou antes de discursar — recentemente divulgadas pelo cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana, que lhas pediu — Bergoglio descrevia o que esperava do Pontífice seguinte: “Um homem que, a partir da contemplação de Jesus Cristo e da adoração a Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si própria até às periferias existenciais, que a ajude a ser a mãe fecunda que vive ‘a doce e confortadora alegria do Evangelho’.”
A missão, soube-se quando apareceu à janela da Basílica de São Pedro na noite de 13 de março, acabaria por ser-lhe entregue a ele, com um pedido expresso dos cardeais: urgia reformar a Igreja. “Nos encontros que antecederam o Conclave, os cardeais demonstraram que queriam ver resolvidos os problemas das Finanças — uma fonte de escândalo que distraía a atenção do essencial”, diz Austen Ivereigh, autor da biografia Francisco, o grande reformador e colunista do site católico Crux. “Havia ainda a sensação de que a governação do Vaticano também precisava de mudanças. A burocracia já não cumpria o seu objetivo, o Vaticano era demasiado autocrático e centralizador, e era necessário apostar numa relação melhor entre a Igreja local e a Igreja universal”, acrescenta.
Os anos anteriores haviam sido pesados: em 2012, o primeiro escândalo Vatileaks expusera graves problemas de falta de transparência económica, corrupção e lutas de poder no interior da Santa Sé e criara uma crise de tamanha dimensão que terá contribuído para a resignação de Bento XVI, em fevereiro de 2013.
Por outro lado, continuavam a ser conhecidos casos de abusos sexuais no seio da Igreja. É verdade que o Papa emérito tecera duras críticas a estes crimes, criara legislação para alargar o prazo de prescrição, afastara o padre mexicano Marcial Maciel (acusado de abusar de menores ao longo de décadas) e implementara medidas para facilitar a punição dos clérigos pedófilos. Porém, as associações de vítimas continuavam a acusá-lo de não fazer o suficiente. Bento XVI enfrentara a dura realidade de frente, mas ainda havia um longo caminho a percorrer — um caminho que faria parte da herança que deixou a Francisco.
Um Papa diferente
Não há dois Papas iguais. No entanto, nem todos causam a mesma perplexidade a partir do momento em que saúdam os fiéis pela primeira vez. Com o Pontífice argentino, as mudanças adivinharam-se logo: o novo Papa não quis vestes luxuosas, manteve a sua velha cruz ao peito e, ao escolher chamar-se Francisco, fez prever um terramoto.
Gianni Maria Vian, diretor do L’ Osservatore Romano, estava em cima da Colunata da Praça de São Pedro, nessa noite de março. “Desde 1963 que assisto sempre ao anúncio de todos os Papas. Quando soube que havia fumo branco saí do jornal e fui para a Praça. Estava um frio terrível e ouvia-se mal, mas logo que disseram o nome, percebi que estávamos perante uma grande novidade”, diz o diretor do diário da Santa Sé.
“Ao escolher aquele nome, o Papa fez o seu programa e deu um sinal de que queria ir ao essencial: ter grande atenção aos pobres e procurar que, em todas as decisões, a Igreja olhasse para a realidade da vida das pessoas”, explica o bispo D. Carlos Azevedo, numa sala do Conselho Pontifício para a Cultura, onde trabalha como delegado.
Nos dias que se seguiram à eleição, a imprensa dissecou todos os pequenos gestos daquele homem vindo quase do fim do mundo, como ele próprio afirmou. O tempo faria entender que não se tratava apenas de pormenores. Bergoglio trouxera de Buenos Aires o jeito despojado e simples de sempre, que obrigaria a Igreja a repensar o seu modo de agir.
“O estilo de vida do Papa é uma provocação. Toda a Igreja se sente provocada e isso nota-se na simplicidade da vida. Compram-se carros menos vistosos, por exemplo. Aqui em Roma e em todo o mundo, as pessoas veem que têm de dar o exemplo, se não a palavra não pega, não tem autenticidade”, diz o bispo D. Carlos Azevedo. No Pontifício Conselho da Cultura, o prefeito, o cardeal Ravasi, desloca-se num carro velho e quem faz de motorista é o porteiro do imponente edifício da Via de Conciliazine, a enorme avenida que conduz à Praça de São Pedro.
No Vaticano, ainda há quem use as frotas de luxo herdadas do tempo em que uma certa pompa fazia parte do dia-a-dia do Vaticano, mas ao longo dos quatro anos de Francisco em Roma, a frugalidade tem vindo a impôr-se. O Papa continua a dar o mote, nas mais pequenas coisas. “No Natal passado, ele antecipou a Ceia das 20h00 para as 19h30. Quando terminou, foi para a capela rezar durante uma hora. Chegámos lá e ele estava às escuras. Foi uma surpresa imensa! Ele faz isto para poupar. Para ele, um euro é um euro!”, diz monsenhor Ferreira da Costa.
O vizinho Bergoglio
A notícia de que o Papa iria residir permanentemente no quarto 207 da Casa de Santa Marta foi recebida com surpresa: “Esta opção rompeu com uma psicologia claustrofóbica e uma mentalidade fechada, pelo simples facto de o Papa não estar isolado no terceiro piso de um Palácio com vista para São Pedro. É como se vivesse no meio da cidade porque vai e vem gente”, diz Gianni Maria Vian. “Claro que esta não é a solução para todos os males, também ali se criou uma pequena corte…”, explica.
Quem já lá morava ficou estupefacto. “Nós dizíamos que era impossível! Mas ele veio e mostrou que é possível”, recorda monsenhor Ferreira da Costa, funcionário da Secretaria de Estado e um dos dois responsáveis por ler e catalogar todas as cartas que chegam para o Papa, em língua portuguesa (o outro é um brasileiro).
O trabalho, diz, quintuplicou ou decuplicou desde que Francisco foi eleito. Todas as cartas são arrumadas por assuntos e a maioria vai para a categoria Sofrimento. “Há casos que nós avaliamos e vemos que devem ir ao Papa. Escrevemos uma notazinha, enviamos ao nossos superiores e algumas vão mesmo ao Papa”, revela. Muitas vezes, a resposta chega no dia seguinte, escrita em espanhol, numa caligrafia minúscula — Bento XVI ter-se-á um dia mostrado surpreendido pelo facto de o seu sucessor ter uma letra ainda mais pequena que a sua. Francisco escreve a caneta e o Papa emérito só usava lápis de carvão.
Ferreira da Costa cruza-se frequentemente com Bergoglio em Santa Marta. Sabe que o Papa acaba de jantar pelas 20h00 ou 20h30 e se deita cedo. Às 4h da manhã acorda e passa algum tempo em oração e a preparar a homilia da missa que celebra para 50 ou 60 convidados, às segundas, terças quintas e sextas, na capela da casa.
Às 6h50 já está na Sacristia. Dez minutos depois, dá início à Eucaristia, breve e com uma mensagem certeira. “Quando veio para cá, pediu-nos para ficar com a capela grande para poder celebrar como um pároco e convidou-nos para a primeira missa”, conta o monsenhor. Às 9h30, Bergoglio já está no Palácio Apostólico a trabalhar. Embora não veja televisão, o Papa mantém-se informado sobre tudo o que acontece no mundo, telefona e pede informações a especialistas em cada matéria, da diplomacia à ciência, sem esquecer as finanças e a economia. Quem lhe satisfaz a curiosidade quanto aos resultados das jornadas futebolísticas é um guarda suíço — há um à porta do seu quarto, no 2º andar, e outros à entrada da Residência.
“Às vezes, um de nós vem no elevador, aquilo para, abre-se a porta e lá está ele. A gente fica um bocado assustada. E ele diz logo: ‘Não te aflijas que eu não te como!’” Um dia, Ferreira da Costa estava ocupado no pequeno gabinete que ocupa na Secretaria de Estado e ouviu alguém bater-lhe à porta: “Era o Papa. ‘Como é que isso vai? Tem muito que fazer?’ Olhou para o que eu tinha e depois foi-se embora.”
Dentro do possível, o Papa tenta manter uma vida normal. No início de setembro de 2015, decidiu sair do Vaticano no seu Ford Focus azul, acompanhado apenas por poucos agentes de segurança, em direção à Ottica Spieza, na Via del Babuino, em Roma, para ir comprar óculos novos. O oculista oferecera-se para se deslocar ao Vaticano, mas Francisco recusara. Em menos de meia hora, uma multidão acorreu à porta da loja, de tal maneira que não foi fácil alcançar o carro de novo. Em Buenos Aires, Bergoglio andava de subte (metropolitano) e sabe-se que o serviço de transportes de Roma lhe ofereceu um passe vitalício, mas o mais provável é nunca vir a estreá-lo.
Por todo o mundo, a imprensa vai publicando as pequenas histórias do quotidiano do Papa argentino. No entanto, há quem diga que estes episódios são apenas pormenores, quando comparados com a verdadeira missão do Papa. “Os media dão atenção aos sapatos vermelhos ou pretos, o que, para mim, não são coisas assim tão importantes. Reparam se ele vive em privacidade no Palácio Apostólico ou em Santa Marta. Estas não são questões de relevância teológica”, diz ao Observador o cardeal Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sentado na ponta de uma enorme mesa de reuniões, no Palácio do Santo Ofício.
O responsável máximo pela defesa da ortodoxia da Igreja — visto como um leal servidor do Pontífice, apesar das diferenças de opinião — defende que “o mais significativo é o novo estilo que vem da experiência do Papa na América Latina, mais próxima da realidade dos pobres e atenta às grandes diferenças que existem na sociedade.”
O estilo de Bergoglio pode ter atraído enorme simpatia a nível mundial, mas não é consensual, sobretudo nos setores mais conservadores da Igreja. “Alguns elementos da Cúria têm uma conceção sacral do Papa e consideram que certos gestos de Francisco desfazem essa sacralidade. Só que todas essas pequenas coisas aparentemente sem grande valor são significativas, [são sinais] de uma atitude muito mais próxima do Evangelho”, reconhece o bispo D. Carlos Azevedo.
A sacralidade cristã, prossegue, não está na distância, nem na pompa: está na máxima humanidade. “No Congresso Internacional de Música Sacra que organizei, tínhamos escolhido 40 pessoas para o cumprimentar. O Papa quis cumprimentar as 400 que lá estavam. O responsável da Casa Pontifícia já nos tinha prevenido: ‘Às vezes, ao Santo Padre dá-lhe para cumprimentar toda a gente, se tiver tempo. Não quer que haja uns privilegiados e outros que ficam a ver’”, conta.
Durante uma hora, o Pontífice saudou e trocou breves palavras com cada um dos convidados. “No livro Conversas Finais, o Papa Bento XVI diz: ‘Não sei até quando ele vai aguentar…’”, diz o bispo. Para o tímido Papa emérito, o contacto com as pessoas implicava um esforço. “Já João Paulo II falava com uma pessoa e já estava a olhar para quem vinha a seguir. Não era tanto olhos nos olhos como Francisco.”
Para Austen Ivereigh, o facto de o Papa usar uma linguagem simples, sair da cadeira para abraçar as pessoas, dar a 150 sem abrigo a oportunidade de visitar a Capela Sistina “não são gestos de uma idiossincrasia instantânea, mas que resultam da forma como ele vê o ministério petrino, que se enraíza, acima de tudo, no modelo de Jesus.”
O estilo do Papa não é apenas uma extravagância. “É o desmantelamento de um modelo constantino, monárquico e imperial do Pontificado, que tem vindo a acontecer desde o Concílio Vaticano II. Francisco elevou esta questão para outro nível. O Papado não voltará a ser como era”, garante o biógrafo.
Um estilo que implica reforma
Os críticos do Papa tendem a desvalorizar a atitude despojada de Francisco, há até quem diga que se trata apenas de marketing. De uma forma ou de outra, é inegável que o líder dos católicos procurou pôr em marcha a reforma que os cardeais lhe pediram. Começou pelos dinheiros.
Para ter uma ideia mais concreta do que o esperava, pediu a um grupo de auditores externos, leigos e de várias nacionalidades, que elaborassem um relatório sobre as práticas do Vaticano. A primeiríssima avaliação viria a ser apresentada ao C-15, o grupo de 15 cardeais que tinham a seu cargo a supervisão das Finanças da Santa Sé.
“Ninguém tinha conhecimento de tudo nessa altura. Essa foi uma das coisas de que nos apercebemos. O que se tornou claro para o Conselho dos Quinze foi que, não só não sabíamos de tudo, como não sabíamos o número de coisas que desconhecíamos. Descobrimos que 1,4 mil milhões de euros não estavam registados em lado nenhum. Isso queria dizer alguma coisa”, diz ao Observador o cardeal australiano George Pell, prefeito da Secretaria para a Economia, na sala de estar do seu apartamento da Piazza Città Leonina, junto à Porta de Sant’Anna, uma dos acessos ao Vaticano.
Em Julho de 2013, para dar seguimento ao trabalho iniciado, Francisco criou a COSEA (Comissão de Estudo sobre a Organização das Estruturas Económicas da Santa Sé), um grupo de trabalho composto por sete leigos especialistas em “assuntos legais, económicos, financeiros e organizacionais”, como explicava o documento elaborado pelo Papa. O único clérigo era o secretário, monsenhor Lúcio Vallejo Balda, que haveria de ser preso e condenado a 18 meses de prisão por passar documentos confidenciais do Vaticano à imprensa, num escândalo que ficou conhecido como Vatileaks II.
Da COSEA faziam parte o economista e banqueiro maltês Joseph Zahra, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Singapura, George Yeo, e o francês Jean-Baptiste De Franssu (hoje presidente do Instituto para as Obras Religiosas, mais conhecido como Banco do Vaticano).
Francisco fez um pedido claro à COSEA: queria um modelo para uma nova estrutura financeira da Santa Sé até ao Natal. Como a Comissão se encontrava apenas ocasionalmente, o trabalho de campo foi entregue a gigantes da consultoria mundial, como a Promontory, a McKinsey, a Ernst&Young e a KPMG. “Isto foi realmente radical”, diz Ivereigh. Em dezembro, o relatório estava pronto.
Um superministério para controlar as Finanças
A COSEA recomendou a criação de um um Ministério das Finanças e da Economia que controlasse os dinheiros das instituições da Santa Sé — e que haveria de ser materializado na Secretaria para a Economia — e sugeriu fusões como as que levaram à formação da Secretaria para a Comunicação. “Pela primeira vez, o Vaticano estava sujeito a uma supervisão decente em matéria de finanças, e caminhava-se para uma cultura de transparência e responsabilização”, analisa o biógrafo.
No motu proprio Fidelis dispensator et prudens, publicado no dia 24 de fevereiro de 2014, Francisco estabeleceu a Secretaria para a Economia, um superministério com a competência de “controlar e vigiar” as estruturas financeiras e administrativas dos dicastérios da Cúria Romana, das instituições ligadas à Santa Sé e ao Estado do Vaticano. A APSA (Administração do Património da Santa Sé) passou a desempenhar as funções de banco central e a AIF (Autoridade para a Informação Financeira) continuou a missão atribuída por Bento XVI: promover a transparência nas contas do Vaticano.
Para Prefeito da Secretaria para a Economia, Francisco nomeou o cardeal australiano George Pell, confiando-lhe o terceiro lugar na hierarquia do Vaticano. O Papa deu-lhe plenos poderes para reformar. Pell, um forasteiro, cortou a direito. Conhecido por ser um conservador de pulso firme, o arcebispo emérito da Austrália tratou de materializar o plano definido pela COSEA, mais tarde dissolvida. Ao Conselho para a Economia, constituído por oito cardeais e bispos de todo o mundo e sete especialistas leigos, passou a caber a supervisão.
Numa fase inicial, a Secretaria superintendia a APSA, o IOR, o Governadorado do Vaticano (que detém os museus) e a Propaganda fide (Congregação para a Evangelização dos Povos, proprietária de um vasto património imobiliário, cujos proventos deveriam ser utilizados para financiar as missões da Igreja pelo mundo). Daí em diante, todos deviam prestar contas para que fosse elaborado um balanço anual e aprovado um orçamento para o ano seguinte — só este ano é que esta previsão foi feita, pela primeira vez.
As resistências não se fizeram esperar e Pell tornou-se alvo de críticas e inimizades. A Cúria lidou mal com a cultura de responsabilização imposta pelo cardeal e o australiano ficou debaixo de fogo. Em novembro de 2015, o jornalista italiano Emiliano Fittipaldi acusou a Secretaria para a Economia de gastar 500 mil euros nos primeiros meses de atividade e Pell de esbanjar dinheiro em paramentos de luxo e voos em classe executiva.
Em novembro de 2015, o jornalista italiano Emiliano Fittipaldi acusou a Secretaria para a Economia de gastar 500 mil euros nos primeiros meses de atividade e Pell de esbanjar dinheiro em paramentos de luxo e voos em classe executiva.
A Secretaria recusou as acusações numa nota oficial e esclareceu que as vestes compradas não se destinavam apenas ao cardeal, mas a toda a instituição, criada de raiz. “Claro que voo em executiva! Sem qualquer remorso. Esse é um exemplo de uma distração. É uma estratégia diversiva, porque não há nada significativamente errado na forma como gastamos o dinheiro”, disse Pell ao Observador, no seu estilo direto.
Fittipaldi discorda. “Pell não é o homem certo [para o cargo]. Gastou meio milhão de euros [no início da Secretaria], voa em business class, compra vestes feitas à medida, contratou o amigo Danny Casey, um economista de Melbourne, e paga-lhe 15 mil euros por mês, gastou rios de dinheiro no mobiliário para a casa de Casey, e é um homem que se arrisca a ser incriminado num caso de pedofilia na Austrália”, explica ao Observador. Para o jornalista da revista italiana l’Espresso, há grandes contradições entre o estilo do cardeal e a Igreja “pobre para os pobres” de que fala Francisco.
Pell debaixo de fogo
George Pell está, efetivamente, a ser investigado pela Royal Commission criada na Austrália para determinar a resposta dada pelas instituições religiosas aos casos de abusos sexuais cometidos por clérigos. O cardeal é acusado de ter encoberto atos de pedofilia praticados pelo padre Gerald Ridsdale nos anos 70, na diocese de Melbourne.
Na Austrália, os seus detratores dizem que Pell só foi para o Vaticano para escapar à responsabilização, sobretudo depois de ter alegado razões de saúde para não comparecer a uma das audições da Royal Commission. No entanto, o arcebispo-emérito de Sydney prestou declarações por videoconferência, a partir do hotel Quirinale, em Roma, atraindo dezenas de jornalistas ao local.
O cardeal nega perentoriamente todas as acusações. “Eu não estava bem [de saúde], não pude lá ir, fui ouvido durante três dias inteiros por videoconferência. Sempre cooperei totalmente. Já saíram vários relatórios da Royal Commission. (…) Nos primeiros, eu saio bastante bem”, afirma ao Observador.
“Fui o primeiro na Austrália, se não no mundo inteiro, a instituir um sistema compreensivo, de avaliação independente — e não feita por elementos do clero —, com compensações e acompanhamento psicológico [para as vítimas]. Isso é público. Por isso, é bastante irónico que eu, apesar de ter sido o primeiro a implementar uma abordagem compreensiva, seja visto como o símbolo de um velho mundo que eu fiz mudar”, acrescenta.
Pell nunca se sentiu um embaraço para o Papa. “Se sentisse, parava amanhã”, garantiu ao Observador. E a verdade é que Francisco sempre se manifestou solidário com ele. No voo de regresso da viagem papal à Polónia, disse aos jornalistas: “[O caso] está nas mãos do sistema judicial e não podemos julgar antes do sistema judicial. A justiça tem de seguir o seu curso, e a justiça feita pelos media ou vinda dos rumores não ajuda. Depois de o sistema judicial se pronunciar, eu falarei.”
Quando Pell apresentou a sua resignação ao Papa, como o Direito canónico obriga a fazer aos 75 anos, Francisco manteve-o no cargo. “O Papa foi muito claro em relação a Pell. Não vai ceder à pressão mediática, não vai sacrificar pessoas para salvar a própria reputação, nem do Vaticano. Ele tem um grande compromisso com Pell e vice-versa. Há muitos cardeais que desejam que Pell seja bem sucedido. Sabem que há resistências na velha guarda do Vaticano e consideram-no crucial”, comenta Austen Ivereigh.
De acordo com o balanço de 2015, publicado em março deste ano, as contas da Santa Sé continuam a apresentar um défice de 12 milhões de euros, um valor que o cardeal Pell espera poder reduzir nos próximos anos.
Desde o arranque da Secretaria para a Economia, houve avanços e recuos, e Pell acabou por perder o controlo da APSA, por exemplo. “Pode dizer-se que a Secretaria de Estado persuadiu Francisco de que a Secretaria para a Economia não deveria ter demasiado poder, não deveria concentrar a gestão e supervisão. Se esse era um argumento com interesses próprios ou não, não sei dizer, mas o argumento foi esse”, explica Austen Ivereigh. Certo é que a Secretaria de Estado recuperou a posição que tinha na APSA.
O IOR, por seu lado, anunciou o encerramento de 5.000 contas cujos titulares não reuniam as condições necessárias para serem clientes do Banco do Vaticano. “Até hoje não sabemos o que se passou no interior do IOR. Disseram que fecharam milhares de contas, mas não forneceram o nome dos titulares. São evasores fiscais? Recicladores de dinheiro? Mafiosos?”, questiona Fittipaldi.
“A Igreja ainda é muito rica e gasta o dinheiro que tem sobretudo para se manter em funcionamento, com uma série de desperdícios e luxos dos cardeais, sobretudo em Roma”, acrescenta o jornalista, que acusa a Igreja despender poucos fundos em caridade. Mais uma vez, o cardeal Pell refuta a teoria: “Essa informação é truncada. Não sei se é propositadamente ou se vem de alguém que está à procura da verdade, de forma genuína. A Igreja é rica em bens, mas tem pouco dinheiro. O Vaticano perde dinheiro todos os anos.”
Vender património não é uma opção para o prelado. “O património pertence a toda a Igreja, através dos tempos e também no futuro. Esta geração não tem o direito de o vender, gastando-o agora e impedindo-o de estar disponível no futuro. Aquilo que temos de fazer é conservar o património e desenvolvê-lo de maneira a recebermos receitas a partir daí. (…) Os nossos ativos não são bem geridos”, reconhece.
Os dois parecem ter opiniões opostas em tudo. Para Emiliano Fittipaldi, que lançou recentemente em Itália o livro “Lussuria”, sobre os escândalos sexuais da Igreja, “a reforma financeira começou e acabou em dois meses.” O Secretário para a Economia reconhece que ainda há muito a fazer, mas considera que um longo caminho já foi percorrido.
Pell teria preferido que a colaboração com a PriceWaterhouseCoopers para a auditoria externa ainda não tivesse sido suspensa, como foi. Era uma garantia de credibilidade para as contas do Vaticano. A decisão surpreendeu-o depois de estar tomada. O cardeal Assegura, no entanto, que as mudanças iniciadas são irreversíveis.
“Seguimos padrões de contabilidade modernos, estamos comprometidos com a transparência, com a cooperação internacional. O Papa Bento XVI criou a AIF, um gabinete contra a lavagem de dinheiro, temos um auditor. A informação que divulgamos não é tão detalhada como gostaríamos, mas acredito que é rigorosa”, diz o número três do Vaticano ao Observador.
Numa conferência dada em Oxford a 28 de abril, René Brülhart, o presidente da AIF, mostrou-se de acordo, dizendo que a reforma financeira é um processo. Segundo declarações reproduzidas no jornal online Crux, Brülhart garantiu que o IOR “está agora a regressar às suas raízes, aos seus estatutos, à sua função de servir as obras religiosas da Igreja por todo o mundo.”
“Seguimos padrões de contabilidade modernos, estamos comprometidos com a transparência, com a cooperação internacional”
Apesar de, segundo o Crux, cerca de 40 pessoas já terem sido denunciadas ao Promotor de Justiça do Vaticano por má conduta financeira, e de os contactos com a autoridades italianas se terem estreitado — à exceção dos envolvidos no escândalo Vatileaks — ainda ninguém foi condenado por estas razões dentro dos muros do Vaticano. “Creio que a reforma financeira foi, em geral, bem sucedida, mas para ser convincente, é necessário que haja condenações”, defende Ivereigh.
A criação do C9
“O Papa disse que foi obrigado pelos escândalos a ocupar-se das finanças, embora não quisesse. Ele preferia [ter-se dedicado a] empreender uma reforma mais profunda a outros níveis”, diz Gianni Maria Vian. Logo desde o início, Francisco deu a conhecer um estilo de liderança muito próprio: queria ouvir as vozes que considerasse relevantes para cada matéria, dizer pouco, discernir cuidadosamente como um bom jesuíta, e, por fim, tomar decisões.
No dia 13 de abril de 2013, exatamente um mês depois de ser eleito, a Secretaria de Estado do Vaticano anunciava, em comunicado, uma medida inovadora: “Seguindo uma sugestão que emergiu nas Congregações Gerais que antecederam o Conclave, [o Papa] criou um grupo de cardeais para o aconselharem no governo da Igreja universal e no estudo de um projeto de revisão da Constituição Apostólica Pastor Bonus sobre a Cúria Romana.”
O C8, como ficou conhecido, era composto por elementos dos diferentes continentes e passava a ser o círculo de conselheiros mais próximos do Papa. O coordenador seria o hondurenho Rodriguez Maradiaga, mas o grupo contava também com o australiano George Pell, o norte-americano Sean Patrick O’Malley, arcebispo de Boston, o alemão Reinhard Marx, de Munique, o congolês Laurent Pasinya, de Kinshasa, e o indiano Oswald Gracias, de Mumbai, entre outros. Em julho de 2014, o C8 passou a C9, incluindo também, a partir daí, o Secretário de Estado, Pietro Parolin.
Desde que foi formado, o grupo reúne-se de poucos em poucos meses na Casa de Santa Marta para debater os assuntos da Igreja. O Papa procura estar presente e, segundo o cardeal Pell, ouve mais do que fala. “Temos três dias de reuniões, o cardeal Maradiaga é quem lidera, o arcebispo [Marcello] Semeraro, de Albano, é o secretário. A agenda é pré-preparada, os papéis são-nos entregues antes. O Santo Padre participa em quase todas as reuniões”, conta ao Observador.
Com o tempo, os elementos do C9 aprenderam a ler os sinais e a perceber o que o Papa vai decidir, embora ainda haja situações em que são apanhados de surpresa. Foi numa destas reuniões, em 2014, que o cardeal O’Malley da arquidiocese de Boston, onde ocorreu o famoso caso Spotlight, sugeriu a Francisco a criação de uma comissão que se ocupasse dos abusos sexuais ocorridos no seio da Igreja.
O Papa aceitou de imediato e, um ano depois, assinou o decreto que estabeleceu a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, composta pelo próprio cardeal, clérigos, leigos e vítimas de abusos sexuais praticados por elementos da Igreja.
“A tarefa específica da Comissão é propor-me as iniciativas mais oportunas para proteger menores e adultos vulneráveis, para que possamos fazer tudo o que é possível para nos assegurarmos de que crimes como aqueles que ocorreram não voltem a repetir-se na Igreja”, escreveu Francisco. Prometeu tolerância zero. Em 2015, anunciou a criação de um tribunal específico para estes casos, que nunca veio a materializar-se por impedimentos jurídicos e burocráticos, gerando grande desconforto nas associações de vítimas.
A Comissão reúne-se periodicamente para discutir o assunto e apresentar sugestões ao Papa e à Congregação para a Doutrina da Fé, o departamento do Vaticano a quem cabe esta matéria. Em junho de 2016, Francisco definiu nos cinco pontos do motu proprio Come una madre amorevole como deveria ser o procedimento para afastar não só os clérigos que cometessem abusos, mas também os bispos ou superiores de congregações religiosas que, por negligência, tivessem encoberto ataques deste tipo. Caso ficasse provada a existência de “causas graves”, de acordo com a lei canónica, os prelados seriam afastados das suas funções.
Os processos, segundo o documento, deveriam ser investigados pela Congregação competente da Cúria Romana e assinados pessoalmente pelo Papa. O documento não fazia qualquer menção ao tribunal. As vítimas ficaram desapontadas. Esse foi, de resto, um dos motivos que fez aumentar o desconforto da irlandesa Marie Collins, um dos mais emblemáticos elementos da Comissão, por ter sido vítima de abusos aos 13 anos por parte do capelão de um hospital e por ser uma voz autorizada neste campo.
A desilusão de Collins cresceu à medida que, segundo ela, surgiam entraves à ação do grupo de trabalho a que pertencia, vindos de dentro do Vaticano. Em março deste ano, quando percebeu que a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) não daria seguimento ao pedido para que todas as vítimas que apresentassem queixas recebessem uma carta da Santa Sé, Marie Collins apresentou a demissão. O gesto foi considerado um duro golpe para a Comissão para a Proteção de Menores e colocou a irlandesa em confronto direto com o prefeito da CDF, o alemão Gerhard Müller.
“Esta demissão não teve nada a ver connosco. Fomos acusados e eu não sei porquê”, diz o cardeal ao Observador. Müller garante ter estado disponível para colaborar com a Comissão. “Trabalhámos juntos na Constituição [Pastor Bonus], mas esta Congregação tem uma tarefa especial confiada pelo Papa para liderar os processos canónicos. (…) Se entendem que devemos entrar em contacto com as vítimas ou os perpetradores de uma forma pastoral, essa não é a nossa missão”, explica.
Müller alega ainda que, de acordo com o procedimento estabelecido por João Paullo II e aceite pelos seus sucessores, os casos de abusos sexuais devem ser, sempre que possíveis, resolvidos pelas dioceses ou congregações religiosas, funcionando o Papa — e a CDF em seu nome — como instâncias de apelo. “Não está tudo centralizado em Roma. Não podemos ocupar-nos das terapias, dos discursos pastorais, da investigação nestes locais. Estamos em Roma, não por todo o mundo. Nós temos de nos restringir aos processos canónicos”, acrescenta.
Em sua defesa, a CDF alega ainda que a legislação em vigor já previa normas passíveis de serem aplicadas aos casos de negligência, pelo que não havia necessidade de criar novas estruturas para julgar estas situações.
A saída de Marie Collins não deverá, apesar de tudo, impedir que o trabalho da Comissão continue. Porém, nas questões de abusos, tal como nas financeiras, continua a faltar algo fundamental. “Creio que Marie tem razão quando diz: ‘Onde é que estão os bispos castigados? Julgo que houve bispos afastados depois de Come una madre amorevole, mas essas saídas continuam a ser anunciadas citando o cânone 410 [parágrafo 02], que diz que os bispos foram destituídos por ‘doença ou outros motivos graves’”, analisa Austen Ivereigh. Para que as punições destes crimes específicos se tornem contundentes, é preciso comunicá-las enquanto tal.
Ouvir os outros, decidir sozinho
Neste e noutros assuntos, o Papa fará o que é seu costume: escutará e, no fim, terá a última palavra. Ao contrário dos seus antecessores, que delegavam muito mais tarefas nos seus secretários e mordomos, Francisco ocupa-se pessoalmente de muitos assuntos e é ele que gere a sua agenda. “Já era assim em Buenos Aires e agora diz que está demasiado velho para mudar de hábitos”, conta monsenhor Ferreira da Costa.
Na época em que foi Provincial dos jesuítas da Argentina, Bergoglio foi acusado de autoritarismo e alvo de ataques ferozes: a fação mais à esquerda da Companhia de Jesus apontou-lhe o dedo por ser demasiado conservador e acusou-o de colaborar com a ditadura militar; a fação mais à direita criticava-lhe a visão próxima do socialismo.
Na primeira entrevista que concedeu depois de ser eleito, Francisco falou sobre esses tempos. “A minha forma autoritária e rápida de tomar decisões levou-me a enfrentar problemas sérios e acusações de ser ultraconservador. Vivi um período de grande crise interior quando estive em Córdova [durante dois anos]. Por certo, nunca fui como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi a minha forma autoritária de tomar decisões que criou problemas”, disse o Papa ao padre Antonio Spadaro, que se tornou um dos seus conselheiros.
O tempo e a experiência ensinaram-lhe a importância de escutar. “Enquanto arcebispo de Buenos Aires, encontrava-me com os bispos auxiliares de duas em duas semanas, e estava várias vezes por ano com o conselho dos padres. Eles faziam perguntas e abríamos o espaço ao debate. Isso ajudou-me a tomar as melhores decisões”, revelou. Há quem o aconselhe agora a não consultar demasiadas pessoas e a decidir por ele próprio, mas Francisco está convencido de que este é o melhor modelo.
Assim se explica que, além de ter apostado no C9, o líder católico também tenha dado novo fôlego ao Sínodo dos Bispos. O primeiro, sobre a Família, durou dois anos e deu lugar a uma das mais acesas discussões dos últimos anos na Igreja. Em causa estavam, entre outras questões, a forma como os católicos deveriam lidar com os homossexuais e o acesso dos divorciados recasados à Comunhão — que lhes está barrada, considerando a ortodoxia da Igreja que são adúlteros e cometem um pecado mortal.
O debate foi tão aceso que levou um grupo de 13 cardeais a escrever uma carta ao Papa, em outubro de 2015, na segunda parte do Sínodo, expressando preocupação sobre os procedimentos adotados durante o encontro, “desenhados para facilitar resultados predeterminados sobre matérias importantes e discutíveis.”
O debate foi tão aceso que levou um grupo de 13 cardeais a escrever uma carta ao Papa, em outubro de 2015, na segunda parte do Sínodo, expressando preocupação sobre os procedimentos adotados durante o encontro, “desenhados para facilitar resultados predeterminados sobre matérias importantes e discutíveis”. Entre os signatários estavam George Pell, Gerhard Müller, Timothy Dolan, arcebispo de Nova Iorque, Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a disciplina dos sacramentos, Norberto Rivera Carrera, arcebispo da Cidade do México, e Wilfrid Fox Napier, arcebispo de Durban e presidente delegado do Sínodo em curso.
No final desse ano, Marco Tosatti, um velho vaticanista e uma das vozes mais críticas do Papa na imprensa italiana, revelava na sua coluna do jornal La Stampa aquilo que os seus contactos previam em relação ao texto que o Papa iria escrever no rescaldo do Sínodo. “As fontes falam de um documento ‘magmático’, com o a possibilidade e o conselho para que os bispos decidam caso a caso, tendo em conta situações individuais”, escreveu.
“Esta estratégia foi partilhada por um dos braços direitos do Papa num jantar. Já se esperava que houvesse muita discussão e, no fim, ele fizesse um documento em que cada pessoa encontrasse aquilo que entendesse”, diz Tosatti ao Observador, no café da livraria Feltrinelli, do Largo Torre Argentina, no centro de Roma.
Na perspetiva do vaticanista, o Papa teria, desde o início, a intenção de produzir um documento vago que permitisse várias leituras. “O arcebispo Bruno Forte, que trabalhou com ele durante o Sínodo, contou [em abril de 2016], de forma muito ingénua, que Francisco lhe dissera: ‘Se falarmos explicitamente em dar a comunhão aos divorciados e recasados, nem sei que sarilho isso dará. Então, não falemos de forma direta, faça-se de forma a que lá estejam as premissas e depois eu tiro as conclusões.’”, recorda Tosatti.
O documento que resultou do Sínodo é a tão falada exortação apostólica Amoris Laetitia, cujo capítulo VIII tem dado origem a diferentes interpretações do episcopado e dos fiéis, e sido alvo de críticas acérrimas da ala conservadora e tradicionalista da Igreja Católica. “Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! (…) Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral”, escreveu Francisco.
Para os mais progressistas, o documento dá azo a que, depois de um caminho de penitência, e depois de um discernimento sério, seja considerada a hipótese de readmitir estas pessoas à Comunhão. Foi esta a leitura dos bispos de Malta, da Alemanha e da Argentina, por exemplo.
Para o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pelo contrário, esse cenário está fora de questão. “O sacramento do matrimónio é indissolúvel por vontade de Deus. Ninguém pode mudar isso”, diz ao Observador. Casar de novo, depois de um divórcio, é cometer um pecado mortal, incompatível com a participação nos sacramentos. “Nada disto depende das opiniões pessoais dos membros da Igreja. Não são as opiniões dos bispos que são decisivas, mas a fidelidade à palavra de Deus. (…) O Papa deu uma interpretação na Amoris Laetitia, e não é bom que os bispos façam uma interpretação da interpretação. Critiquei isso”, esclarece.
“Nada disto depende das opiniões pessoais dos membros da Igreja. Não são as opiniões dos bispos que são decisivas, mas a fidelidade à palavra de Deus. (…) O Papa deu uma interpretação na Amoris Laetitia, e não é bom que os bispos façam uma interpretação da interpretação”
Tosatti considera que o documento é, no mínimo, vago. “Quando quatro cardeais pedem uma explicação ao Papa e ele não responde, está a ser ambíguo. Ele devia responder, claro que devia!”, diz, com certeza. O vaticanista refere-se à ‘dubia’, uma carta enviada a Francisco por quatro cardeais, que pediam esclarecimentos quanto ao conteúdo da exortação. Entre eles estava o norte-americano Raymond Burke, um dos rostos da oposição ao Papa. O Pontífice manteve-se em silêncio.
Há, porém, quem não considere o texto problemático. “Amoris Laetitia é o documento papal mais significativo para a teologia moral em várias gerações. É um documento sublime, que permite à Igreja estar na vanguarda da reconstrução do casamento na cultura ocidental”, defende Austen Ivereigh. Não basta à Igreja reconhecer o que conduziu ao colapso do matrimónio: é preciso dar atenção às consequências que daí resultaram.
Ivereigh vai mais longe. “É verdade que a doutrina da Igreja não mudou, mas o que é que diz a lei da Igreja? Que os adúlteros públicos não podem ser admitidos aos sacramentos. A questão é: serão todos os divorciados e recasados adúlteros? A resposta é não! Só se pode discernir caso a caso.”
Para o biógrafo, o Papa “é um governante muito poderoso, com uma extraordinária capacidade de liderança e de tomar decisões. E permite uma pluralidade de opiniões extraordinária, que está a mudar o Papado.” Ivereigh dá os exemplos dos cardeais Müller e Sarah que, não sendo da linha de Bergoglio, se mantêm em cargos de grande destaque. “Há muitas pessoas em Roma que criticam Francisco, mas ele está tranquilo com isso, vê essa questão como uma dinâmica. Acredita que o conflito e a discórdia dão frutos, se puderem ser contidos.”
Os críticos do Papa, por seu lado, acusam-no de ter afastado o cardeal Burke do Tribunal da Assinatura Apostólica apenas porque não concordava com ele. “Porque é que o Papa demitiu Burke e não despediu Sarah, por exemplo? Não foi por discordar dele, mas porque Burke era um obstáculo à reforma: opunha-se a qualquer mudança no sistema de anulação do matrimónio e era o responsável máximo do Tribunal da Assinatura Apostólica [onde estes processos são julgados]”, explica Ivereigh.
É inegável, no entanto, que o Papa se rodeou de órgãos colegiais, cujos pareceres solicita. Depois, nos momentos de oração, faz o seu discernimento. Por vezes, demora muito tempo a chegar a uma conclusão, mas quando a alcança, como disseram a Austen Ivereigh na Argentina, “es como una topadora” (é como uma escavadora). Ninguém o detém.
Política e diplomacia do Vaticano para o mundo
Independentemente das tensões internas, o mundo vê Francisco como uma figura de referência, em parte porque o Papa não abdica de dar o seu contributo para a História mundial. Bergoglio sabe que tem o poder de colocar um assunto na agenda internacional e usa-o sempre que estão em causa dos direitos humanos. Foi assim com a visita a Lampedusa para chamar à atenção para o drama dos refugiados no Mediterrâneo, com os problemas ambientais, aos quais dedicou a encíclica Laudato si, com a dignidade do homem no mercado laboral e também com o problema das novas formas de escravidão.
Foi, aliás, por pressão da Academia Pontifícia das Ciências Sociais e, em particular do seu chanceler, o bispo argentino Marcelo Sanchéz Sorondo, que as Nações Unidas incluíram o ponto 8.7 na lista de metas para o desenvolvimento sustentável.
Esse objetivo consiste em “tomar medidas imediatas e efetivas para erradicar o trabalho forçado, pôr fim à escravatura moderna e ao tráfico humano e assegurar a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo o recrutamento e utilização de crianças soldados, e, até 2024, erradicar todas as formas de trabalho infantil.” Sorondo não tem dúvidas: “Reabrir o debate para acrescentar esta questão foi uma das maiores vitórias da Academia.”
Num encontro com crianças e jovens de escolas jesuítas, Francisco fez eco das palavras de Paulo VI, o Papa que muito o tem inspirado: “A Política é a forma mais elevada de caridade, porque procura o bem comum”, disse em 2013. Os cristãos têm, por isso, obrigação de se envolver na vida política que os rodeia.
O Papa tem feito a sua parte. Desde que foi eleito, já recebeu no Vaticano mais de 200 visitas. Angela Merkel, por exemplo, pediu para se encontrar com o Papa pouco depois de ele ser eleito. No fim da primeira das três audiências privadas que já teve no Palácio Apostólico, segundo uma fonte da Secretaria de Estado, a chanceler alemã comentou: “O Papa é a única voz alternativa no mundo de hoje.”
Os políticos mundiais sabem tão bem o peso de Francisco que as maiores figuras da atualidade internacional procuram visitá-lo. Donald Trump vai ser recebido por Francisco no dia 24 de maio. Putin já esteve duas vezes no Vaticano, Obama uma, Mohamed Abbas outra. A própria rainha de Inglaterra quis ter uma audiência com Francisco.
Dessa vez, cumpridos os 15 passos que antecedem cada audiência, havia uma questão por resolver: a roupa da rainha. O protocolo diz que as senhoras devem vestir-se de negro na presença do Papa. O branco é um privilégio reservado às monarcas católicas. Mas Isabel II não iria vestir preto sem estar de luto. A questão foi colocada ao Papa. Resposta: “A rainha é uma grande senhora. Saberá certamente o que vestir.” A monarca envergou um vestido de flores e um casaco lilás.
O único pedido que Francisco fez a quem trata das audiências e receções foi para serem “respeitosos, dignos e sóbrios”, indo ao encontro do estilo do Pontificado. Na hora de oferecer lembranças, o Papa “gosta de dar coisas que se relacionam com os temas que tem no coração, como a paz e a solidariedade”, diz uma fonte da Secretaria de Estado. Sempre que concede uma audiência a alguém, Francisco recebe um dossiê que lhe é preparado pelos serviços, mas faz sempre a sua própria pesquisa e não esquece as questões pessoais. “No caso dos chefes de Estado, procura sempre saber o nome do marido ou da mulher e, com o corpo diplomático, tenta estar informado sobre eventuais nascimentos ou falecimentos recentes na família”, conta um elemento do mesmo gabinete.
Muito do trabalho do Papa na política e na diplomacia mundial é feito sob a maior reserva. A Secretaria de Estado tem inclusivamente o cuidado de usar linhas telefónicas seguras para este tipo de contactos. Foi num enorme secretismo que Francisco conseguiu concluir com sucesso a reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos. “Dizem que o processo durava há 40 anos. Francisco foi o homem certo, na hora certa, no lugar certo”, diz uma fonte da Secretaria de Estado.
PREC – processo de reforma em curso
Quatro anos depois do início do Pontificado de Francisco, é evidente que o Papa argentino pôs em curso uma revolução na Igreja. Tomou medidas nas Finanças, ocupou-se dos abusos sexuais, pediu à Igreja que se aproximasse do seu povo. Mas ainda há muito trabalho por fazer.
Espera-se que, nos próximos meses, saia uma nova Constituição com novidades sobre a esperada reforma da Cúria Romana. É provável que, à semelhança do que aconteceu nos setores das Finanças e da Comunicação, a tendência seja para a fusão de departamentos redundantes. Assim aconteceu, de resto, com os anteriores serviços que deram origem aos super dicastérios para a Família, os Leigos e a Vida, e para o Desenvolvimento Humano, dirigido pelo cardeal ganês Peter Turkson.
Por enquanto, não há confirmações sobre o que irá acontecer em concreto, embora não restem dúvidas de que reforma veio para ficar. “Francisco não tinha um plano para transformar o Vaticano que, ao fim de cinco anos, se pudesse aferir se tinha sido alcançado ou tinha falhado. Não é assim que ele funciona. O que ele fez foi iniciar um processo de mudança que continuará depois dele”, diz Ivereigh.
Contou para isso com o contributo do C9, da COSEA e do Sínodo dos Bispos. O Papa tem noção de que de pouco vale mudar tudo aqui e agora. “Francisco sabe que, se a reforma depender apenas dele e do Pontificado dele, não perdurará.” O objetivo é outro: reformar o suficiente para que, quando o Papa resignar ou morrer, a revolução seja irreversível.