Era um sonho distante: cantar no Teatro Nacional de São Carlos. “Mas, de repente, estava ali a cantar com a Orquestra.” Teresa Sales Rebordão, 27 anos, é uma das pessoas cuja vida mudou depois da primeira edição do Cascais Ópera, um concurso internacional de canto criado em 2023. “Foi um ponto de viragem na minha vida”, recorda.
Influenciada pela mãe, que pertencia ao coro da Universidade de Lisboa, Teresa começou a cantar palavras antes de as saber escrever. “Foi criado um coro infantil para fazermos outra coisa que não barulhos nos ensaios deles”, recorda a jovem, que ainda cursou Biologia antes de se render à inevitabilidade. “A música tinha de ser a minha vida”, diz a artista, que estava a fazer um mestrado em canto na Alemanha quando, no ano passado, tropeçou nas inscrições para o concurso. Inscreveu-se, passou todas as fases, chegou à final, mas não venceu. Umas semanas depois recebeu um e-mail. “Perguntavam-me se estava interessada em ir a Viena fazer uma audição.” É que no júri das provas estava Robert Körner, diretor de casting da Ópera de Viena, em busca de uma cantora mezzo-soprano lírica aguda.
Rebordão está, desde agosto, a viver na Áustria, onde vai ficar durante pelo menos duas temporadas, até 2026, integrando o estúdio de ópera da Wiener Staatsoper. “Está a ser intenso, mas um prazer enorme estar numa das óperas mais importantes do mundo”, descreve. A jovem não tem dúvidas de que “há cantores portugueses espetaculares”, mas lamenta: “É uma pena que tenham de estar no estrangeiro”.
A primeira edição do concurso internacional Cascais Ópera, que aconteceu em abril, deu a vitória ao coreano Hae Kang, que conquistou o Grand Pix Égide, com um valor pecuniário de 10 mil euros, e um contrato com o Teatro Nacional de São Carlos. A portuguesa Sílvia Sequeira, o coreano ByewongMin Gil, o belga Jan Wouters, a ucraniana Anna Erokhina e a arménia Iana Aivazian também receberam prémios pecuniários. Além destes, foram atribuídos seis contratos com instituições reputadas como o Teatro Nacional de São Carlos, a Ópera Nacional de Novid Sad (Sérvia), o FIMM — Festival Internacional de Música de Marvão, a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, e o Festival de Música de Mafra Filipe de Sousa.
Mas não são apenas os vencedores que beneficiam da participação no concurso internacional destinado a cantores líricos entre os 18 e os 32 anos de todas as tipologias vocais. Depois da competição, muitos são contactados por agências para outros trabalhos. “É um processo normal em qualquer país. É igual na Alemanha, no Reino Unido, nos Estados Unidos”, diz Sergei Leiferkus, barítono russo com uma longa carreira internacional e radicado há mais de uma década em São Pedro do Estoril.
Foi ele que, regressado de uma competição lá fora, ousou fazer algo idêntico por cá. “Quando vim para Portugal comecei a ler e a aprender muito sobre a história e tradição portuguesa e descobri que havia uma tradição musical muito grande que estava um pouco perdida”, explica ao Observador. “As pessoas, sobretudo o Governo português, precisam de tomar atenção à música erudita, não apenas ao jazz, ao rock e ao pop. Nesses géneros há toda uma geração mais jovem envolvida. Mas e as pessoas mais velhas, que gostam de ouvir música clássica?”, lança. “Infelizmente, na última década, a música clássica tem ocupado menos espaço nos palcos portugueses.”
Desafiou Alexandra Maurício, gestora e programadora cultural, e o pianista Adriano Jordão para criar um evento que respondesse à urgência de recolocar Portugal num circuito internacional no que toca à música erudita. “Muitas pessoas jovens adoram cantar música clássica, mas mesmo quando estudam em Portugal depois vão para outros países. Vão para a Alemanha, para Inglaterra, para os Estados Unidos, para França. Porque não criar esse espaço em Portugal, ter os jovens orgulhosos a cantar em palcos portugueses? É esse o principal objetivo desta competição: criar uma nova geração de cantores líricos e dar-lhes uma oportunidade.”
Para o barítono e diretor artístico do Cascais Ópera (cargo que partilha com Jordão), os objetivos estão definidos a longo prazo. “Não é possível fazer [tudo] num ano ou sequer em cinco. Mas esse é o objetivo. Passo a passo, precisamos de criar uma nova geração de cantores líricos em Portugal.”
Sobre a primeira edição, Leiferkus confessa que “não esperava tantos candidatos portugueses”. “Do ponto de vista da formação estão em linha [com os restantes], são fantásticos. Acho que os candidatos portugueses têm muito conhecimento, muita formação. Isso mostra-se em palco, mostram a qualidade da sua escola, da sua voz, da sua inteligência, do seu carisma. Acho que estão no mesmo patamar que artistas internacionais”, nota o responsável.
Nas mais de 200 candidaturas, destacou-se um “surpreendente número de coreanos”. Foi o caso de Haesu Kim, que não venceu, mas que se evidenciou na competição ao ponto de ser convidado para estar em Paris na apresentação da segunda edição do concurso, cujas inscrições decorrem até 15 de dezembro. “Olho para a competição sempre como uma forma de evoluir e melhorar enquanto artista. Nesta competição melhorei a minha técnica vocal e mentalmente também”, diz ao Observador. Com 32 anos, o limite de idade para participar na prova, Haesu Kim foi um dos muitos candidatos da Coreia do Sul que chegou ao grupo de 49 selecionados na primeira edição. “Nós coreanos adoramos cantar, não só ópera, mas música no geral, música tradicional coreana, k-pop, adoramos cantar. não sei bem porquê”, admite. Cantor de ópera profissional, vive em Frankfurt, na Alemanha, e trabalha como freelancer. “Estou a fazer alguns concertos, audições e competições”, descreve. “O concurso ajudou-me muito também por isso. Fiquei com um ótimo vídeo da minha audição final, que agora uso como portfólio para mostrar o meu trabalho.”
Concurso “é uma montra para os cantores”, diz diretora
O júri é um dos elementos mais notados pelos cantores que participaram na primeira edição. Desta vez, é presidido por Sergei Leiferkus e composto por Aleksandar Nikolić, diretor de ópera do Teatro Nacional da Sérvia, a soprano russa Anna Samuil, a mezzo-soprano Catarina Sereno, e Ivan van Kalmthout, ex-diretor artístico do São Carlos.
“É uma grande oportunidade que os cantores têm”, diz Alexandra Maurício. “Há sempre alguém que depois se lembra que ouviu alguém cantar e que pode ser interessante chamá-lo para um determinado papel.” A diretora do Cascais Ópera sublinha a importância do concurso além da competição. “Um concurso tem também esta grande virtude de permitir aos cantores apresentarem-se, melhorarem, serem premiados, terem contratos e receberem o feedback”, nota. Cada vez que um candidato não passa à fase seguinte tem imediatamente o retorno dado pelo júri. “Explicam-lhes porque é que não passaram, o que é que podem melhorar. Foi muito bom, mas ainda podia ter sido melhor se fosse desta forma. Portanto, o feedback que é dado aos concorrentes, aos candidatos, é muito valorizado por eles e é uma forma de aprendizagem e de ensinamento.”
Quando saem da competição, os concorrentes podem frequentar masterclasses com membros que integraram o júri. “São componentes de formação e de aprendizagem muito importantes”, refere Maurício, que destaca a componente de educação e de formação do evento. Aliás, a diretora do Cascais Ópera adianta que está a ser trabalhada uma parceria com o Serviço Educativo da Fundação Dom Luís I para que junto das escolas do concelho de Cascais, seja possível “levar turmas ou grupos de alunos a assistir às provas”, para assim provar que a ópera “é muito mais acessível e muito mais fácil do que se possa pensar”. “É um lugar de imensa emoção se tivermos uma pequenina preparação para aquilo que vamos assistir. A ópera é muito empática. Fala de muitas vivências do dia-a-dia, de dramas, e de traições, e de amores, e de paixões incrivelmente assolapadas.”
Para Alexandra Maurício, “formar novos públicos não se faz a pedir a um miúdo de seis anos para ouvir uma Ópera de Wagner do princípio ao fim, em que há uma grande complexidade harmónica e de conteúdo”. “Mas se calhar se for preparada em sala de aula e se for ouvir uns trechos de uma ópera num concurso, se calhar estamos a despertar aqui futuros músicos, futuros ouvintes ou futuros cantores”, acredita.
O Cascais Ópera é financiado pelo Turismo de Cascais, a Égide — a Associação Portuguesa das Artes, a Fundação Millenium BCP, a Fundação La Caixa, e o banco BPI. Tem como parceiro institucional o Teatro Nacional de São Carlos – Opart, onde decorreu a final este ano. Com o encerramento do teatro para obras, a final da segunda edição do concurso, a 4 para maio de 2025, acontece na Fundação Calouste Gulbenkian.
O Observador viajou até Paris a convite do Cascais Ópera.