Um festival é feito das estrelas do cartaz e daquelas que não se veem, as que fazem o trabalho de formiguinha para que ao público tudo pareça simples e suave, como um barquinho à vela a navegar em águas calmas. Encontrámos uma dessas estrelas no camarim, entre snacks e bebidas muito bem arrumadas e listas de pedidos de bandas afixadas nas paredes.
Janete Carvalho recorda-se de ser miúda e de ir a um pequeno festival à beira rio, levada pelas mãos dos pais. “A família vinha toda”, diz a atual responsável de hospitality do Vodafone Paredes de Coura, que não troca a “tranquilidade e a paz” da sua vila por nenhuma cidade do mundo.
Hoje, a romaria familiar ainda acontece. No ano passado, por exemplo, um runner foi buscar a tia avó de 98 anos a casa, “porque ela queria vir ao festival”. O primo, atento à nossa conversa, acena que sim. Tem 17 anos e começou a ajudar Janete nesta edição. Todos os dias prepara à volta de 300 sanduíches. “Já não posso ver pão à frente”, ri-se. Na cantina, é a mãe que vai dando uma mãozinha na confeção dos almoços e dos jantares para os artistas. “É tudo muito caseirinho”.
Tão caseirinho que, num ano, à falta de húmus no supermercado, Janete pediu à madrinha para fazer uma versão de improviso. E noutro, foi ela mesma que agarrou num tacho às 7h da manhã para preparar uns ovos mexidos na hora, exigência de banda esfomeada com o jet lag. “As pessoas estão aqui por amor à camisola”.
Porém, nem sempre foi assim. No início, recorda, a população não queria o festival na terra. “As pessoas criticavam muito, diziam que ninguém dormia e que quem vinha, só vinha para fazer asneiras.” Mas depois Paredes de Coura começou a aparecer nas notícias nacionais e internacionais, os comerciantes perceberam que podiam fazer mais dinheiro numa semana do que num ano, as gerações foram-se renovando e encontrando anualmente na Praia Fluvial do Taboão e agora ai de quem diga mal do “Rock”, como os mais velhos ainda chamam ao Vodafone Paredes de Coura.
Coordenando uma equipa de 10 elementos, Janete não gosta de deixar nenhum pedido por satisfazer. “Já nos pediram shots de carvão ativado e eu tive que ir à procura daquilo para perceber se realmente existia”. Mas quando lhe falam em vinho francês, ela vê-se obrigada a intervir: “Pergunto sempre se não se importam que lhes dê vinho português”. Afinal, estamos numa zona de bom vinho verde e os artistas, garante, adoram. “A tour manager dos Snail Mail disse que era o seu vinho preferido”.
Nada a deixa mais orgulhosa do que receber um e-mail das bandas a agradecer o carinho recebido em Coura. E de tanto carinho, já ficou amiga de algumas delas. Quando se anda na estrada, é sempre bom encontrar um lugar a que se possa chamar casa, nota com dedicação. Mesmo que essa casa fique num ponto escondido no mapa, numa colina verde minhota que tem um rio a passar-lhe aos pés e para onde os artistas gostam de se ir espraiar antes de subirem a palco.
Sejamos humanos com A Garota Não e Loyle Carner
Foi isso mesmo que fez A Garota Não, com Sérgio Mendes e Diogo Sousa, seus companheiros de banda e de viagem. Não sabemos se tomou banho nas águas frias da Praia Fluvial do Taboão, mas para este concerto vestiu o seu melhor “trapinho”. Ela queria estar bonita e cheia de energia para tornar o arranque do segundo dia do Vodafone Paredes de Coura especial.
Na plateia, cheia até ao fundo, tão cheia que obrigou Cátia Oliveira a levantar o olhar para abarcar o mar de gente à sua frente, viam-se muitas crianças. Não estavam ali ao engano. Elas sabiam que quem ia tocar era “A Garota” e a garota Cátia, na sua voz cândida, contou-lhes histórias de mulheres batidas, dando nome a cada uma das mulheres mortas por violência doméstica em 2022, e de gente rica que gentrifica e sabe-se lá onde é que a gente fica. Falou-lhes de “dignidade coletiva”, da importância de não calar a injustiça e, nesses urgentes 45 minutos de atuação, mostrou-lhes como podiam crescer como homens e mulheres mais justos, mais humanos.
Loyle Carner, parecendo ter escutado Cátia, fez a sua própria divagação sobre tolerância e dignidade, partindo da sua história de vida — ele que foi abandonado pelo pai em criança, reencontrando-o já em adulto para um sempre difícil processo de revolta, perdão e paz. Nesta purga íntima, de rap vestido de jazz e de funk, Carner ofereceu a Paredes de Coura um dos momentos mais bonitos do festival.
O músico de 28 anos começou com “Hate”, faixa poderosíssima do seu último álbum hugo (2022) e rapidamente se desfez em juras de amor a Portugal, dizendo-se “bastante sortudo por aqui estar”. Estando aqui, não se esqueceu de quem para si foi importante no seu percurso, como Tom Misch. O produtor britânico ficou banzado quando esbarrou com os temas de Loyle Carner, no SoundCloud, em 2014. Meteu conversa com ele e daí surgiu uma profícua colaboração. “Angel” é um dos resultados deste encontro de almas e não é à toa que o rapper a dedicou a Misch, a quem ensinou a cozinhar um bom molho de tomate e a beleza de se fazer um amigo em adulto.
Em Coura, Loyle Carner foi apanhado de surpresa pelo encanto de se dar ao desconhecido, ele que confessou que adorava que o seu filho pudesse ver este recinto, “um dos sítios mais bonitos do mundo em que estive”. Ao dizê-lo certamente pensou na tarde passada no rio, onde se misturou com o público, sendo mais um entre tantos. “Este é mesmo um sítio especial”.
O concerto espelhou o estado de graça de Carner, que se entregou com uma vulnerabilidade arrepiante ao público. De peito aberto, deu-nos “Still”, a sua música favorita. “E sabem porque é que é a minha música favorita?” Não, não sabemos. Então aqui vai a explicação: como miúdo negro do sul de Londres, Benjamin Gerard Coyle-Larner passou os dias a ouvir que “não encaixava”, que não pertencia, que a sua música não era a música daquele lugar. “Tive medo”, disse com uma honestidade desarmante, de nos fazer cair todas as máscaras, como caem as folhas das árvores no outono.
O medo deu lugar à revolta e foi então que Loyle Carner disse basta. Basta “da merda da masculinidade tóxica”. Ele não quer que o seu filho, que no outro dia lhe sussurrou, “pai, estou triste”, cresça numa realidade onde não possa expressar as suas emoções. “Quero que ele possa amar, rir, dançar, ser tudo o que ele quiser”. E assim sai “Homerton”, dedicada ao pequeno Carner, nascido em 2020.
Houve tempo ainda para “Ice Water” ou “Ottolenghi”, para uma ovação merecidíssima, para um poema debitado como se Loyle Carner fosse Kae Tempest e para um abraço final, de igual para igual, de emocionar a noite fria de Paredes de Coura. “Foi um dos melhores concertos que demos. Isto é mágico”. Sem dúvida, Loyle.
A magia, na verdade, é a empírica necessidade de sermos tocados por algo e, nesse gesto de amor, de tesão e de dor também, nos sentirmos a tremer. Foi isso que Tim Bernardes nos disse indiretamente ao final da tarde, a solo, à guitarra e ao piano com o seu falsete de ave graciosa a pintar de verde todo o recinto; e foi isso que Fever Ray nos explicou taxativamente em “Shiver” e em cada faixa que trouxe a Paredes de Coura.
Vestida no seu traje Radical Romantics (2023), de fato branco, gravata vermelha e maquilhagem à Joker, Fever Ray cumpriu com tudo aquilo que é: uma artista desconcertante que esventra o rock e a eletrónica até lhes revolver todas as entranhas e criar um ser completamente novo, pérfido e inclassificável.
Na sua voz propositadamente industrializada, no limiar do desconforto, construiu uma atuação sempre em crescendo e girando em torno da estética do seu mais recente álbum, sem esquecer, contudo, temas como “When I Grow Up”, “I’m Not Done” ou a transcendente “If I Had a Heart”, do disco homónimo de estreia. O recinto, hoje um pouco mais lotado do que na véspera – ainda assim, longe da enchente – entregou-se a esta encenação pujante de Fever Ray, uivando à sua despedida. Foi o culminar de um dia feliz, repleto de contrastes.
O regresso ao passado e o regresso ao futuro
Esgravatando os recantos do Vodafone Paredes de Coura, como raposa matreira, encontram-se fenómenos curiosos, autênticos para-festivais dentro do festival, como a rapariga que carrega um bode de peluche desde 2009, qual guia turístico com o seu guarda-chuva, para que os amigos saibam sempre onde ela está. “Se não souberes onde está o pessoal, encontras o bodegas”. Sim, o bode chama-se bodegas e é ele o agregador das tropas.
Há também aglomerações alternativas, como a que acontece à volta da barraca de cachorros, hambúrgueres e kebabs que está estacionada uns metros ao lado do pórtico principal. Ali as bebidas são menos inflacionadas do que as vendidas dentro do recinto, razão para muitos fazerem do Bar Portugal o poiso de eleição para saciar a sede.
Foi isso que os Máquina fizeram, ainda incrédulos com a sorte que lhes calhou na rifa: com o cancelamento das The Last Dinner Party, por motivos de doença, escreveu a organização nas redes sociais, foram eles os escolhidos para as substituir. “Nós até íamos embora amanhã”, diz-nos João Cavaleiro, guitarrista do trio que tocou na vila no dia 12, mas agora a tenda continuará montada por mais uns dias. Há um sonho a cumprir: o de tocar no palco secundário de Paredes de Coura, no dia 18, às 23h15.
A conversa e o panado no pão sobrepuseram-se ao início do concerto dos The Walkmen, mas tudo se recompôs num ápice. No regresso ao recinto, levámos de frente com “The Rat”, uma das canções mais icónicas dos anos 2000 que continua a ser uma grande malha, duas décadas volvidas. Fechámos os olhos por um momento e nada na voz de Hamilton Leithauser denunciava o passar do tempo. Os The Walkmen continuavam os mesmos jovens nova-iorquinos de sempre.
É precisamente esta constatação que nos faz entrar num delicado debate interno: se está tudo exatamente igual, então qual a relevância dos The Walkmen nos dias de hoje? O debate adensa-se se considerarmos que antes de vermos esta banda de “melhores amigos”, tivemos um dos melhores concertos (a par do de Loyle Carner) do festival. O de Sudan Archives.
Guerreira de violino em riste, cruzando estéticas díspares dos anos 90 – das Navegantes da Lua a TLC — Brittney Denise Parks encarna a pulsão de vida e de morte, o R&B e a eletrónica, as melodias do médio oriente e de origem judaica, enfim, um manancial de contradições que se complementam e originam algo novo e desconcertante.
Ela autointitula-se a Natural Brown Prom Queen (2022), nome de disco e tudo e, como rainha do baile que é, é capaz de fazer de um concerto uma tempestade de sensualidade e de empoderamento feminino como poucas. O de hoje foi particularmente especial, como a própria notou: “Andámos em tour há três meses e não apanhámos um público tão animado como este”. “Freakalizer”, “NBPQ (Topless)” ou “Come Meh Way” tiveram eco estrondoso na plateia, composta maioritariamente por miúdos e miúdas dos seus vinte e poucos anos, que aplaudiram Sudan como a heroína Marvel dos tempos modernos.
E é aqui que voltamos aos The Walkmen, porque se Sudan Archives é presente e futuro, música a pensar-se e a reinventar-se a si própria, os nova iorquinos soaram a passado, numa atuação competente e cheia de vontade, mas algo monótona. Não é que haja nada de errado em voltar a temas como “Wake Up”, “Heaven” ou “We’ve Been Had”, na qual Leithauser sacou de uma máquina fotográfica (e não de um telemóvel), para tirar uma chapa ao público. Boas canções serão sempre boas canções, independentemente de modas. Mas depois de um espetáculo como o de Sudan Archives, não nos é possível ficar apenas consolados com boas canções. Há que ter rasgo para fazer algo que nunca foi feito, para pensar a arte e o mundo de outra maneira.
É isso que se espera de Little Simz, para o terceiro dia de festival, como também de Yung Lean, Kokoroko, Black Midi e talvez de Thus Love. A chuva deverá dar o ar da sua graça, mas estaremos preparados para a acolher, como boa canção intemporal que é neste histórico lugar de Paredes de Coura.