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A imagem vai ficar-me na memória por muito tempo. Estávamos em junho de 2014. Passos Coelho no seu gabinete muito minimalista em São Bento, mais para o branco, a despedir-se de mim educadamente – como sempre, creio que nunca o ouvi levantar a voz – a apertar o casaco depois de meia hora de conversa tranquila. Sobre o “Resgatados”, que eu tinha publicado dois anos antes e ele tinha lido (“estive para lhe ligar para lhe contar uns detalhes que você não sabe, mas depois passou-me”), mas também sobre a troika, que ele tinha dispensado em maio, numa “saída limpa” celebrada sem pompa, mas com circunstância pelo Governo. E, claro, sobre o que viria, porque é isso que os jornalistas perguntam (e vinha aí mais uma decisão do TC).
Pensei que encontraria Passos cansado, desgastado. Tinham passado três anos com a casa a arder e só naquela altura a economia dava sinais de recuperação. As eleições vinham longe, mas a popularidade dele estava ainda muito abaixo da linha de água e a do seu PSD também. Visto de fora, não havia uma leve hipótese de lhe correr bem.
As eleições vinham longe, mas a popularidade dele estava ainda muito abaixo da linha de água e a do seu PSD também. Visto de fora, não havia uma leve hipótese de lhe correr bem.
Encontrei-o muito diferente disso: “Tem graça, você parece-me divertido”. A resposta foi instintiva: “Muito! Você sabe lá o que foi estar três anos a negociar com a troika. Agora posso fazer política, é um alívio”. Naqueles dias, Passos – o PM – preparava uma carta ao Presidente, pedindo-lhe que enviasse rapidamente para o TC os últimos cortes que queria fazer, pensava numa reação ousada aos juízes, media o provável novo líder da oposição, António Costa: “Ele vem com a vantagem de ter estado calado três anos. Pode ser mais difícil para nós, mas não é impossível”.
O político que nunca conseguiu estar muito tempo com ninguém
Conheci-o em 1997, quando eu era iniciado no jornalismo e ele vice-presidente da bancada do PSD. Guterres estava em estado de graça, Marcelo era o líder dos sociais democratas, Mendes o chefe da bancada, ele o seu braço direito. Passos vinha da Jota, com a aura de quem tinha desafiado Cavaco e Ferreira Leite, contestando as propinas no Superior. Tinha ganho uma parte poderosa da máquina do partido, ajudando Marcelo a subir à liderança. Ajudava Mendes, era bom no púlpito, na tática do partido e do Parlamento.
Lembro-me de almoçarmos, num pequeno restaurante à frente da Assembleia. E de a conversa (muito política) e de o tom de voz dele (o do barítono que preferiu a retórica) ter arrastado a conversa e dado um sono indisfarçável. Passos era afável, obviamente ambicioso e experiente. Mas saí do almoço com a sensação desagradável de o ter deixado mal impressionado. Honestamente, também não fiquei muito impressionado com ele.
Marcelo caiu em 1999, Passos saiu do Parlamento e pôs-se a fazer pela vida: foi acabar um curso de Economia. Voltou com a liderança de Marques Mendes (2005), mas também saiu rápido, depois de uma desilusão com as escolhas que este faria para as autárquicas. Pedro queria uma renovação, Mendes não a fez como ele desejaria – na versão que o próprio já contou (numa história que, na verdade, poucos conhecem). “Ele nunca conseguiu estar muito tempo com ninguém, talvez porque só nele encontre a verdadeira liderança”, explicou Carlos Coelho no Homem Invulgar, de Sofia Aureliano, a primeira biografia autorizada de PPC, como alguns o tratam no jornalismo.
“Ele nunca conseguiu estar muito tempo com ninguém, talvez porque só nele encontre a verdadeira liderança”, explicou Carlos Coelho no Homem Invulgar, a primeira biografia autorizada de PPC, como alguns o tratam no jornalismo.
Em 2006 desapareceu de novo: ficou-se pela Tecnoforma, uma empresa que vivia de fundos comunitários e usando, para os conseguir, gente habituada aos corredores do poder. Passos tinha isso, uma rede de contactos que lhe vem dos tempos da JSD e do Instituto Português da Juventude (de que a Jota tomou conta). Durou uns anos – que depois lhe deram uma carga de trabalhos. E mais tarde saiu, para ir trabalhar com Ângelo Correia.
Só o reencontrei anos depois, quando ele voltou como candidato à liderança do PSD. Estávamos em 2008 e pedi-lhe uma entrevista. Tinha passado muito tempo e Passos parecia-me outro, quase tirado de uma pós-graduação em liberalismo, político e económico. A conversa demorou-se, num edifício quase abandonado que tinha sido uma loja de móveis, mesmo ao lado do viaduto do Campo Grande. A sala era descomunal, mas despida, apenas com três cadeiras. Era a sede de campanha, mas estava vazia. Desta vez a conversa não dava para adormecer – Passos estava com nova vida e pareceu-me um caso sério. “Gostei de o rever”, disse-me também ele à saída.
Tinha passado muito tempo e Passos parecia-me outro, quase tirado de uma pós-graduação em liberalismo, político e económico. A conversa demorou-se.
Passos perderia a liderança para Manuela Ferreira Leite por muito pouco, como já tinha perdido por muito pouco a distrital de Lisboa (para Duarte Lima, mercê do apoio que este teve em duas secções fundamentais). Mas estava ali para marcar terreno.
No verão de 2009, um pouco antes das eleições de 2009, liga-me. Ferreira Leite tinha-o excluído das listas (“só posso ter a leitura de que tinha medo de mim”, diria muito tempo depois), mas estava à espreita da oportunidade, sabendo que as hipóteses de o PSD vencer eram escassas.
Ligou-me, dizia eu, depois de uma crónica em que defendi que PS e PSD deviam negociar um Bloco Central, tendo em conta os problemas do país e os desafios. “Não me parece que faça sentido, David Dinis. Se os partidos se juntam no poder, depois não sobra alternativa. Mas não se preocupe. As coisas resolvem-se sempre”. Não me convenci, ele acabou líder do PSD, as coisas não se resolveram. Passos foi PM, agora corre para revalidar o título – mas aparentemente sem hipótese de ter uma maioria. Eu nunca me esqueci da frase. E ainda não me convenci que ele tenha mudado de opinião, vendo que as coisas podem não se resolver.
O que prevalece? O liberal ou o político?
Passos tornou-se um liberal, porque não era assim no início. Mas acentuou essa opção quando a crise se acentua e era preciso marcar uma diferença para José Sócrates. Mas é antes de mais um político experiente. Em 2011, a caminho do resgate e com uma campanha pela frente, foi dando mensagens diametralmente opostas. Numa entrevista ao DN, dizia que o país precisava de 10 anos para se recompor do que tinha acontecido; à equipa que organizava o programa eleitoral, dava indicações para limpar tudo o que Eduardo Catroga tinha escrito e que podia tirar votos (foi uma noite em branco, com o próprio Passos a tirar parágrafos inteiros à última hora). Nas ruas, uma senhora (não de cor de rosa, como a que agora o confrontou) perguntava-lhe na campanha pela austeridade que viria e ele respondeu que nem pensasse que faria cortes nos salários. “É um disparate!”
Nada disto era muito novo neste PSD de Passos: este era o partido que dizia que o país estava à beira da catástrofe e que, à mesa do Orçamento com Teixeira dos Santos, pedia que fossem feitos cortes nas ditas gorduras do Estado, ao mesmo tempo que exigia a manutenção dos benefícios fiscais para a saúde e educação que os socialistas tinham na proposta inicial. Era o líder que acusava Sócrates de atirar o país para um TGV milionário e que exclamava contra a austeridade do PEC IV, que “não servia e não respondia a nenhum dos problemas importantes que Portugal tem à sua frente”. A solução, dizia então, era “mais austeridade para o Estado”, começando nos “carros e motoristas dos ministros” – e não mais cortes: “Nós calculámos e estimámos e eu posso garantir-vos: Não será necessário em Portugal cortar mais salários nem despedir gente para poder cumprir um programa de saneamento financeiro”. E explicava assim:
A solução, dizia então, era “mais austeridade para o Estado”, começando nos “carros e motoristas dos ministros” – e não mais cortes.
“E os que estão abaixo desses, nos institutos públicos, nas fundações públicas, nos serviços do Estado perceberão que se o que está em cima na hierarquia é mais frugal, percebe que não pode andar a gastar o dinheiro do sacrifício dos cidadãos sem ter um assomo de consciência, nesse dia esses também vão gastar menos, vão poupar mais e vão fazer melhor com menos. E é isso que vale na nossa sociedade. Esse é o poder do exemplo”.
Quando ouvia Passos a dizer isto ficava sempre na dúvida se ele acreditava mesmo que aquilo bastava ou se só estava a fazer política, como os outros faziam sempre. O exemplo daria, de todo o modo, dois resultados: uma vitória e uma herança de promessas que pesariam até tarde.
Chegar a São Bento e começar do zero
Passos não tinha qualquer experiência governativa quando chegou a São Bento, em junho de 2011. A sua experiência a gerir equipas era também recente – e tinha até atrapalhado a construção do programa eleitoral: construiu vários grupos separados, que nunca se cruzavam; dava-lhes total autonomia, falando com eles volta e meia para trocar ideias; no final era só ele e um pequeno grupo de amigos que juntavam as peças, como se montassem um daqueles puzzle gigantescos com que António Costa, seu adversário, se entretinha para passar o tempo. Ou como Frank Underwood, o personagem mítico de House of Cards, que pinta bonecos de guerra nos momentos de maior tensão.
Para São Bento, Passos levou uma ideia: fazer o Governo mais pequeno da história. “Não por capricho, nem para parecer contido, mas para poder dirigi-lo efetivamente, com despacho regular com os responsáveis por todas as pastas”, justifica a sua biógrafa mais recente, uma assessora do partido. Em tempos normais, para uma pessoa experiente, o desafio seria difícil. Em tempos de troika – e de coligação – imaginem o que foi.
Em tempos normais, para uma pessoa experiente, o desafio seria difícil. Em tempos de troika – e de coligação – imaginem o que foi.
Se não, tentem imaginar assim: Paulo Portas e os “seus” ministros do CDS, que reuniram sempre às segundas-feiras para afinar agulhas, que já tinham estado num Governo (com Barroso e Santana), que queriam à à viva força ter autonomia e vincar uma mensagem própria. Para eles, o método Passos tornou-se um inferno: ali não havia reuniões de coordenação política, qualquer medida tinha que passar meticulosamente pelo chefe de Governo — e de passar ainda pela troika, o que não era de somenos.
A tudo isto juntava-se outra característica de Passos Coelho: a capacidade única de ouvir alguém sem que, no final, esse alguém ficasse com uma leve impressão do que Passos achava (“Não tenho a mania de que decido tudo bem, nem de que há só uma maneira de resolver o problema. Esta é a minha”, diz ele agora, seguro de si como sempre mostrou estar).
Mas, sim, havia mais, nesse junho de 2011: um memorando tenebroso. Três anos de austeridade pela frente, com uma Europa em turbulência. E uma coligação com Paulo Portas, com quem Passos pouco tinha falado antes das legislativas.
“O caos é uma oportunidade para a mudança”
Passos sempre pensou nestes quatro anos como uma oportunidade. Liberal por opção, dos poucos no seu próprio Governo, queria abrir a economia, tirar-lhe o peso dos grandes grupos económicos que sempre se ligaram ao regime – mas com quem ele tinha tido pouquíssimo contacto. Para ele era preciso usar o memorando para virar os empresários para outros mercados, sobretudo diminuindo o peso da Administração Pública (reduzindo-a, limitando-a).
Consciente da situação do país, Passos chegou a mostrar a Felícia Cabrita, a jornalista que lhe traçou um primeiro perfil em livro, que sabia os riscos que se corriam, mesmo do ponto de vista social. Estávamos ainda no ano de 2010 e ele era líder da oposição: “Vamos ter uma quantidade apreciável de pessoas que vai deixar de receber o subsídio de desemprego – e para as quais o Estado não tem outra forma de apoio. Para a economia vai ser mau, porque essas pessoas vão deixar de gastar. Vamos passar dificuldades muito sérias e o Estado já devia estar a cumprir o seu papel: baixar as despesas, permitir o emprego, trabalhar com as misericórdias e com as IPSS que podem aliviar a vida destas pessoas. Mas os responsáveis olham para isto como se não fosse com eles. Haverá soluções? Não, as pessoas emigrarão”.
Vamos passar dificuldades muito sérias e o Estado já devia estar a cumprir o seu papel. Mas os responsáveis olham para isto como se não fosse com eles. Haverá soluções? Não, as pessoas emigrarão”.
Recorde-se: nesta altura Sócrates negociava com a Comissão e com a Alemanha um novo plano de cortes que salvasse in extremis o país de um resgate. Era já então como foi depois, durante os três anos em que a troika estava cá.
Nesse documento que ficou registado em livro, Passos explicava também os seus planos, as suas ideias: contrariar a dívida parando investimentos; uma reforma ampla das empresas públicas e organismos do Estado para diminuir necessidades de financiamento; vender mesmo algumas empresas – “porque os bancos vão ter pouco dinheiro e, quando emprestarem, devem fazê-lo aos privados e não ao Estado”; mudar o SNS, não financiando os hospitais, mas sim os que estivessem doentes (um “seguro de saúde público”).
Sem o citar, a sua biógrafa mais recente assume o desígnio em Somos o que escolhermos ser: “O caos também é o melhor cenário para a mudança”. Outros, se economistas, falariam numa destruição criadora, citando Schumpeter, um dos autores mais citados no seu gabinete (e odiado pelos socialistas e keynesianos).
Sem o citar, a sua biógrafa oficial assume o desígnio em Somos o que escolhermos ser: “O caos também é o melhor cenário para a mudança”
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Foi por isso que Passos se disponibilizou a abraçar o memorando da troika – e de dizer, numa entrevista, que queria ir “além da troika” nas reformas que ali estavam previstas (e não nas metas, que aliás seriam várias vezes renegociadas). Passos, como António Borges, como Vítor Gaspar, como Maria Luís Albuquerque, olham para a economia como uma coisa livre. Regulada, mas livre. E olhavam para a portuguesa como uma economia que precisava de uma libertação – de reformas para se libertar.
Mas, com as metas traçadas, com as contas como as tinha deixado Sócrates, o memorando exigia que os dois primeiros anos da legislatura fossem duríssimos: um choque no consumo, para equilibrar a balança externa; forçar as empresas a olhar para as exportações como o único caminho da salvação – e tirar o peso de setores “insuflados” como a construção; um aperto nas contas do Estado, para travar o seu endividamento e recuperar a confiança dos investidores e o acesso aos mercados de financiamento.
No início, esta era a sua mais forte obstinação: era preciso fazer tudo, mesmo tudo, para convencer a troika que tinha ali um Governo plenamente confiável. Que nunca hesitaria em fazer o que fosse preciso para cumprir o objetivo. Na altura não havia uma imagem para as consequências de não cumprir – mas agora há e Passos usa-a na campanha como ilustração: a crise na Grécia este ano, que fechou os bancos e atirou Tsipras para um terceiro resgate.
Foi para evitar isso que aceitou a sugestão de António Borges e que levou Vitor Gaspar de Bruxelas para o Governo. “Era importante ter ao lado alguém em quem eles confiassem”, admitiu Passos. Eles eram a troika. E aquele era o caminho.
Esse caminho teve, porém, mais obstáculos do que o previsto. Começou com o “murro no estômago” da descida dos ratings logo ao começo (a expressão é um desabafo de Passos para um convidado em São Bento, apanhado pelas câmaras de tv); continuou com um problema imprevisto nas contas do Estado assim que entrou no Governo (lembra-se do “desvio colossal”? lembra-se da Madeira?), que levaram à criação de um imposto extra sobre os salários; acentuaram-se com uma economia europeia em forte queda, que tornou ainda mais difíceis as exportações, que era suposto aguentarem o PIB nos mínimos. A juntar a tudo isto, havia descontentamento generalizado: greves, protestos de mês a mês, críticas dos comentadores (quase todos), primeiras páginas arrasadoras – muitas com os números que afundavam.
No início, esta era a sua mais forte obstinação: era preciso fazer tudo, mesmo tudo, para convencer a troika que tinha ali um Governo plenamente confiável.
O resultado? Foi este: o Estado de graça do Governo quase não existiu; o PS de Seguro quis ganhar espaço de manobra; o próprio Presidente da República começou a perder a paciência com Passos, e sobretudo com Vítor Gaspar, que era corpo e alma do plano de Passos naqueles anos iniciais. Com tudo isto, a temperatura no Conselho de Ministros começou a aquecer – sobretudo desde meio de 2012, quando o TC fez o primeiro chumbo a cortes de salários e pensões, levando a noites intermináveis com Gaspar, Moedas e Passos a negociar com a troika (quase sem Portas no filme) as medidas alternativas para cumprir o objetivo.
O seu aliado maior nesses primeiros meses era Gaspar. A ele cabia a missão de travar diplomas no Conselho de Ministros que envolvessem despesa, de empurrar outros que cortassem gastos. Gaspar tinha um certo modo de estar: determinado, obcecado com o cumprimento das metas, carregado com as negociações com a troika, não tinha o menor pudor em dizer o que pensava – e o que ele pensava não era em política.
Um exemplo? Ainda em 2012, no dia em que Assunção Cristas levou um plano para financiar a Casa do Douro, Gaspar interrompeu e deixou claro o que pensava do assunto: “Na situação em que está, a única opção racional é acabar com ela”. Os ministros só não ficaram em choque porque já se tinham habituado ao registo. Aquele era o ministro das Finanças que se “esquecia” de distribuir as medidas do Orçamento a dias da sua aprovação final; e que explicava detalhadamente porque é que cortar só nos salários e pensões mais altas não ia chegar para resolver o problema – “vamos fazer as contas”, dizia ele. “Infelizmente os nossos salários e pensões são muito baixos, em média, para que isso chegue”. Passos assentia sempre, quase sempre.
“É de um realismo atroz”, disse Marco António Costa, agora número dois do partido.
A todos os seus mais próximos, Passos dizia com a frieza de sempre (ou racionalidade, na versão de Moreira da Silva, por exemplo): “Temos de fazer o que for preciso”. Em quatro anos, mesmo com críticas que lhe fiz, Passos nunca me fez um telefonema a protestar. Nunca perdeu o controlo da voz. Mas também nunca esquecia o que achava injusto – e guardava a crítica para quando voltávamos a falar, mesmo que meses mais tarde. E lá vinha a frase de sempre: “Temos de fazer o que for preciso”. Sem limites? Nem por isso: quando as metas se mostravam inatingíveis, muito tempo depois de a oposição começar a clamar contra a obstinação em cumprir, contra o “frontloading” das medidas (um palavrão que quer dizer carregar no início, para obter mais rápidos efeitos), Passos e Gaspar pediam uma revisão das metas, única forma de as tornar possíveis. Mas faziam-no a contragosto, essa é a verdade, porque ficavam com a impressão de estar a esgotar um trunfo e, também, a paciência da troika.
Mais político do que liberal, Passos sabia que o caminho tinha custos, mas também proveitos – chegar ao fim do programa era mais do que uma missão histórica, era o melhor dos trunfos eleitorais. Passos desde cedo se convenceu, uma vez no Governo, que havia mais uma coisa a mudar em Portugal: os portugueses tinham perdido a paciência para a política como ela era. Desta vez, bastaria cumprir. Mesmo com más notícias pelo caminho, o país haveria de reter de quem tinha sido a culpa e valorizar quem tudo fazia para acabar com ela. Por isso, quem ia dar as más notícias era ele.
O que fazer quando tudo arde?
Se há momento que Passos não esquecerá (e que o define) é o daquelas semanas da TSU, em setembro de 2012. Passos queria uma solução, Gaspar e Maria Luís cozinharam-lhe uma num avião. Passos comunicou-a a Portas, que estava do outro lado do mundo, viajando como MNE (o seu escape preferido para aparecer bem e evitar o caos de São Bento). A 7 de setembro, no dia em que era preciso dar uma solução à troika, Passos assumiu o ónus. Pediu a um assessor (o agora secretário de Estado Bruno Maçães) que lhe fizesse o discurso e marcou-o para as oito da noite. A solução era “dois em um”: resolvia o buraco no Orçamento que o TC impôs; e baixava os custos do trabalho, dando maior competitividade à economia.
Naquele início de noite de verão, Passos disse tudo como se aquela fosse a solução natural. Seguiu caminho para um concerto de Paulo de Carvalho, um amigo seu de outras vidas, que celebrava 50 anos de carreira. Para Portas tocaram sinais de alarme às primeiras reações; para muitos dos seus amigos, alguns no gabinete, também – com estes a recomendar uma reavaliação. Outros, lá dentro, argumentavam pela sua racionalidade – e diziam-lhe que a sua credibilidade acabaria no momento em que recuasse com uma medida polémica.
“Não acreditem nas pequenas soluções, nas soluções indolores, para os nossos problemas mais graves”, dizia Passos, no mais duro de todos os seus discursos políticos.
Passos resistiu e resistiu. Portas acabou por traçar uma linha vermelha e Cavaco pôs-se ao telefone. Dias depois, com um milhão nas ruas (assim se escreveu na altura), Passos ainda resistia. Defendia a medida entre muros, mantinha-a aberta aos jornalistas. Foram dias nisto. Até abdicar da medida quando, na prática, já ninguém a defendia, nem os patrões. “Obstinado”, diziam no CDS. “Teimoso”, diziam no próprio PSD.
A sua popularidade, que já caía, afundou a pique a partir daí.
Passos larga a causa em que acredita, mas demora a abdicar. Passos cede, mas quando cede, ao contrário de outros, vira a página – como se nada fosse. Talvez a melhor definição para o que parece indefinível seja a de Eduardo Catroga: “Fixa um objetivo e não tem pejo em seguir até ao fim. Quando eu tentava fazer um desvio, ele contra-argumentava com razões de peso. Mas quando era necessário cedia. Tem uma característica que eu não tenho: não é emotivo”. Passos, aliás, diz nem se lembrar da última vez em que se zangou: “Não, teria de pensar, mas não me lembro”, disse em maio deste ano de 2015, numa entrevista que lhe fiz para o Observador. “Devemos sempre controlar a maneira como reagimos às coisas, para evitar que elas possam escalar para aquilo que não desejaríamos. Tenho sempre muita dificuldade em viver com a irreflexão”.
E será que se arrepende? “Não sou de ficar a meditar, de ficar a ver o meu passado para ver como teria feito de outra maneira”.
Aí, a 19 de maio de 2015, fiz-lhe a entrevista como a todos os outros líderes. Muito política no início, reservei 15 minutos no fim para (como a todos os outros também) algumas perguntas mais pessoais. Não é fácil um político sentir-se à-vontade nesse espaço. Mas chega a ser estranho como Passos, um político profissional, é um peixe fora de água nestes momentos. Enrola-se nas suas mãos, prolonga o discurso, pensando numa resposta à medida que fala; raramente olha nos olhos; termina muitas vezes com um ‘não sei’ ou ‘não me lembro’.
Como lidar com o número dois (ou não)
A substituir a TSU viria outra medida que era um terramoto. Nesse dia, aquele em que Gaspar fechou a medida nova com a troika, o Governo montou uma pequena operação de comunicação – das raríssimas vistas nestes quatro anos. Passos recebia alguns jornalistas e cronistas em São Bento (só os raros que acreditavam mais no Governo, talvez procurando evitar que também eles desistissem); Gaspar chamava outros às Finanças.
Estávamos a 3 de outubro de 2012 e, no Terreiro do Paço, onde eu estava, a sala gelou quando o ministro disse que iria fazer um “enorme aumento de impostos”. Gaspar nunca falou de Paulo Portas, mas foi de uma frieza absoluta quando alguém lhe perguntou se o CDS concordava: “Não há alternativa”. Subentendido: sem a TSU, que Portas tinha reprovado. Era evidente que a medida, como a expressão, tinha o seu quê de vingança.
Nesse dia, aquele em que Gaspar fechou a medida nova com a troika, o Governo montou uma pequena operação de comunicação – das raríssimas vistas nestes quatro anos.
A partir desse difícil verão de 2012, a relação de Passos com Portas, que era já tensa, passou a insuportável. Passos via em Portas o tipo político que ele menos suportava: tático, sempre a medir popularidade, com pouca ou nenhuma lealdade ao grupo (leia-se, ao Governo). Culpava-o por sucessivas fugas de informação do Governo, daquelas que abriam mais feridas do que as que já existiam. Do outro lado do espelho, Portas via Passos como um obcecado que queria mudar o país de alto a baixo, contra todos ao mesmo tempo. E invariavelmente repetia uma frase sobre como fazer política: “É a arte do possível, não do impossível”.
Abriu-se uma guerra, que foi conhecida de todos. E durou meses, até àquele conselho de ministros, em março de 2013, quando Portugal quase foi entregue a um segundo resgate.
Nesse fim de semana, Gaspar tinha fechado a sétima revisão da troika. Nesse domingo, Portas traçou outra linha vermelha. “Comunicou-me que não podia aceitar certas conclusões”, disse de modo seco Passos Coelho, quando a sua última biógrafa lhe perguntou sobre aqueles dias. Traduzindo: o líder do CDS não queria a TSU dos reformados, um nome que ele próprio escolheu para uma medida que era, na verdade, uma taxa sobre as pensões. Passos chamou os ministros a São Bento de uma hora para a outra. Alguns assessores saíram da praia à pressa. A reunião durou, Passos cedeu um pouco e Portas outro tanto. Mas pela primeira vez a fuga de informação foi contra o líder do CDS (deixando-o irritadíssimo).
As negociações com a troika foram salvas no limite – muito porque Gaspar, o então odiado ministro das Finanças, tinha posto toda a sua credibilidade acumulada em cima da mesa, como garantia de que os objetivos seriam cumpridos – mesmo sem essa segunda TSU.
A conta, quando chegou, veio alta. Passos sabia o que viria e falou com Portas: “Ele”, Vítor Gaspar, “não vai aceitar ficar e eu, no lugar dele, também não aceitaria”. E não aceitou. A 1 de julho, depois de conseguir o regresso aos mercados de financiamento, Gaspar diz a Passos que é desta e, pouco depois, faz questão de enviar para os jornais a sua carta de demissão. Nela, Gaspar afirmava que o que tinha acontecido na 7ª revisão não lhe permitia “continuar a liderar as negociações”; dizia-se em perda de “credibilidade” pelos “incumprimento dos objetivos iniciais” do programa”; explicava que era tempo de lançar “uma nova fase” do ajustamento; e acabava com uma espécie de praga sobre Passos, falando-lhe dos “fardos de liderança”, que exigiam “coesão interna do Governo”.
“É minha firme convicção de que a minha saída contribuirá para reforçar a sua liderança e a coesão interna do Governo”, escreveu Gaspar. A carta de demissão foi lida de várias maneiras, consoante os protagonistas. Passos nem tremeu – dois anos passados chegou a apontar Gaspar como uma “das pessoas mais impressionantes” que já conheceu.
Foi depois disso que Portas se despediu de Passos com um SMS “a dizer que tinha refletido muito e que se ia demitir” (Passos dixit, há escassos meses, já à beira de eleições). A questão, à época, não era bem Maria Luís – era que Passos continuaria a ser o ministro das Finanças, como se dizia no CDS. A política não ia mudar, a maneira de tomar decisões também não (“A forma como, reiteradamente, as decisões são tomadas no Governo torna, efectivamente, dispensável o meu contributo”, dizia o comunicado). Não é preciso repetir a palavra de Portas que ficou para a história. Todos a conhecem.
O dia D. Voltar o feitiço contra o feiticeiro
No dia 2 de julho, não havia ninguém, mesmo no PSD, que achasse possível o Governo salvar-se. Naquelas horas, os juros da dívida voltavam a subir, os deputados mostravam-se em choque, os ministros tentavam falar com Portas, desesperadamente, sem que ele atendesse o telefone. Mas logo nessa tarde o chefe de Governo explicou direitinho à sua Comissão Política o que ia fazer. Com a televisão ligada a ver o caos em direto, com todos de mãos na cabeça e a dizer o que nem o diabo diz de Paulo Portas, Passos citou o seu pai: “Quando a casa está a arder é que é preciso que alguém mantenha a calma, para pensar como se apaga o fogo”.
Era altura de não perder a cabeça. E não perder a cabeça é, provavelmente, a qualidade de Passos mais fácil de definir. Capaz de olhar cada etapa, uma a uma; capaz de resistir aos muitos que (desde o verão de 2012) achavam que o país ia cair num segundo resgate; capaz pelo menos disso, Passos aguentou.
E às 20h00, à frente das câmaras (já depois de uma cerimónia de posse de Maria Luís em que não havia CDS na sala e mal havia Governo), fez mais um daqueles discursos imperturbáveis. Desta vez com o vento a seu favor – com a opinião pública a atirar mais sobre Portas do que sobre ele. Passos disse que não aceitava a demissão – e que não se demitia.
https://www.youtube.com/watch?v=0Tj0Bnhi3R4
E de um momento para o outro, Portas é chamado pelo CDS, empurrado para o aeroporto no dia seguinte, esperando o regresso de Passos, que fora como previsto a Berlim, ter com a chanceler Merkel (tão odiada por cá) e com outros chefes de Governo da UE. Os dois líderes acabam por negociar um novo Governo, remodelado, com Pires de Lima a selar o acordo – um dos poucos a quem Passos reconhecia, simultaneamente, qualidades políticas e uma decisiva influência “calmante” sobre Portas.
O que se passou naqueles dias não foi, na verdade, contado. Passos mal conseguia olhar de frente o seu ‘aliado’ de coligação. Mas pediu, exigiu, o mais rigoroso silêncio a todos quantos acompanharam a história. “Fazer o que for preciso”.
Dessa vez, Passos saiu por cima: a sua frieza mostrou-se decisiva para evitar uma queda abrupta do Governo e até um novo resgate. Por sorte, foi também aí que a maré virou. A economia europeia estabilizou, a portuguesa com ela. Portas estava sem espaço de manobra, pelo que o Orçamento seguinte não teve linhas vermelhas. E até no PSD muitos dos que já se diziam fartos de Passos, cansados de carregar o partido com tantas medidas austeras, acabaram por se render à perícia de uma noite. Depois de dois anos com a casa a arder, Passos tinha, aí, apagado um fogo a minutos de a casa ruir.
Anote: foi só aí que muitos tiveram, mesmo nos media, a ideia de que o Governo podia mesmo viver até ao fim. Foi uma espécie de segunda tomada de posse, ele já reconhecido (para alguns, pelo menos), como chefe de Governo. Até, porventura, por Paulo Portas.
A queda do BES: selar um tombo com um sorriso
Com a recuperação da economia veio mais uma bomba chamada BES. O grupo começou a tremer, Ricardo Salgado tentou chegar a Passos de todas as formas. Como não conseguia, deu a volta: de março a junho de 2013 falou com Maria Luís, com Carlos Moedas, com Paulo Portas. E nada.
Passos, o PM, viu ali uma oportunidade imperdível: sentiu que os grandes poderes do país (que Salgado simbolizava) não podiam continuar ajudados pelo Estado – e deviam seguir o caminho que o mercado lhes traça; o político sabia que a fama da banca estava por baixo, que ninguém aceitaria mais ajudas públicas a banqueiros que tinham deixado as suas contas de rasto. 1+1=2. E Passos nem pensou em ajudar Salgado. Maria Luís Albuquerque mostrava regozijo com a resistência: tentaram de tudo, connosco não vão ter sorte.
O relacionamento de Passos com Salgado foi sempre frio. Quando em 2010 Passos e Sócrates negociavam o Orçamento do ano seguinte, Salgado e os outros banqueiros pediram-lhe um encontro. O líder do PSD aceitou, mas os presentes ficaram espantados (e desagradados) com a reação que teve aos seus pedidos para que aprovasse o documento. Meses depois, ainda antes da pré-campanha das legislativas de 2011, Salgado terá sugerido a um amigo comum que organizasse um jantar, com Passos e Sócrates à mesa. Passos mandou dizer que não. E já no Governo, preferia recebem em São Bento José Maria Ricciardi (ele que, no BESI, estaria em vários processos de privatização), precisamente no momento em que este abria uma guerra pela liderança no BES – contra o todo poderoso Salgado.
O BES tremeu, mas (ainda) não cairia naquele mês de junho de 2014. Vítor Bento e Paulo Mota Pinto, deputado do PSD, foram nomeados por Salgado para o substituírem. Passos, quando soube, desaconselhou o social-democrata – o BES talvez não fosse a melhor oçpão. E este, coincidência ou não, acabou por ser posto em stand by pelo governador do Banco de Portugal e nem chegou a entrar. A queda do banco veio pouco depois, no fim de julho de 2014. Mas foi em agosto que o que aconteceu obrigou a uma maratona. Maria Luís Albuquerque não teve descanso, Portas foi convocado e negociou-se uma resolução – maneira que a coligação via como mais eficaz de evitar um colapso na economia (de que todos falavam, mas que não chegou a acontecer).
Com Passos não haveria mais BPN, dizia-se. “Ainda lhe vão fazer uma estátua”, dizia um assessor do Governo na época. Não foi bem assim, mas a verdade é que o processo deu, naquele momento, outro fôlego a Passos e ao seu Governo. De Portas, nem palavra se ouviu em contrário (embora no CDS o entusiasmo com a queda do grande grupo fosse visto com notório desconforto).
Para a história ficou uma ideia – o Governo tinha feito frente ao maior dos banqueiros. Talvez pela primeira vez em muitos anos. (A história do Novo Banco, essa, só mais tarde será avaliada).
Uma experiência com Costa: a câmara e a Carris
Faltava pouco mais de um ano para as legislativas. A troika estava de saída e Passos, o PM, respirava fundo por poder fazer política – o que também quer dizer, em boa gíria do setor, ter o cinto menos apertado.
As europeias, em maio de 2014, tinham posto o PS em crise e António Costa tinha saído da toca para desafiar Seguro. Há uns meses que Costa andava a ‘namorar’ o Governo com um objetivo muito concreto: ficar com a concessão da Carris e Metro de Lisboa, que a autarquia há anos reclama como empresa sua – e que Passos queria entregar a privados. As negociações foram longas, mas foram andando com o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, encarregue de fazer a ponte enquanto media a disponibilidade dos privados para entrar no negócio. Até que Monteiro disse a Costa que tinha de passar a bola a Passos, porque o primeiro-ministro tinha dúvidas que a Câmara pudesse gerir o caso.
Há uns meses que Costa andava a ‘namorar’ o Governo com um objetivo muito concreto: ficar com a concessão da Carris e Metro de Lisboa, que a autarquia há anos reclama como empresa sua – e que Passos queria entregar a privados.
Costa foi, no final de abril de 2014, a São Bento – em sigilo. Ouviu as reservas de Passos, que tinham a ver com a capacidade de a Câmara gerir as empresas sem prejudicar o Estado. E levou respostas: uma a uma, o primeiro-ministro ia concordando. Passaram semanas e Costa não via resposta final. E perguntou a Passos por ela numa reunião com autarcas, onde ambos estavam presentes (mas discretamente). Passos acabou por lhe responder não. “Mas porquê?” – perguntou Costa. “Porque eu acho que as empresas são mais bem geridas pelos privados do que por entidades públicas”. Costa arrumou a pasta e foi embora, achando Passos um obstinado que lhe tinha feito perder tempo. Pelo meio, ouvia-se no Governo que a Câmara de Lisboa tinha ligado aos potenciais ‘compradores’ dizendo que ia pôr o processo em tribunal.
Foi neste processo que Passos conheceu melhor António Costa – e que lhe foi tirando as medidas. Era hora da política e Passos sabia que entregar a Carris e o Metro ao seu potencial adversário não era trunfo que se apresentasse.
O último Orçamento (antes das eleições)
Em setembro de 2014, o Orçamento, o último antes das legislativas, estava também à porta – e não era só para ele. Portas queria, desta vez, uma redução da sobretaxa do IRS. E o que fez Passos? Nada. Durante semanas, foi falando com ele sem nada lhe dizer do que tencionava fazer. Sob reserva, preparou com Maria Luís Albuquerque uma solução engenhosa: o IRS baixaria, sim, mas só se as contas estivessem controladas. Com isto, obrigava o CDS – e todos os ministros, por arrasto – a manter tudo nos mínimos. Para Passos era claro que a única hipótese que tinha de disputar as eleições era manter intacta a aura de “fazer o que tem de ser feito”. Mas, lá está, nada disse até ao Conselho de Ministros de 13 de outubro.
Durou 12 horas. Passos fez como habitualmente: os ministros correram as centenas de páginas do OE uma a uma, ponto a ponto, deixando para a madrugada a questão chave. Nessa altura, Portas reclama a sua bandeira. Passos toma a palavra e dá a sua solução. Portas ainda sai, com os ministros do CDS, para ver o que fazia (irritado pelo método, também por ter sido encurralado). Rapidamente voltariam à sala e o assunto ficava fechado assim.
Passos fez como habitualmente: os ministros correram as centenas de páginas do OE uma a uma, ponto a ponto, deixando para a madrugada a questão chave.
Pires de Lima, o homem em quem Cavaco confiou a missão de domesticar o Portas político, de pôr fim à permanente tensão entre os dois líderes da coligação, foi dos que mais se convenceram com o método Passos. Um amigo ouviu-lhe o desabafo ainda este ano: nunca tinha visto ninguém, em dezenas de anos de política, dobrar Portas como Passos fez. O ainda ministro da Economia, que não tinha especial simpatia por Passos antes de entrar no Governo, conheceu-o melhor e ganhou-lhe respeito.
Quem é, afinal, Passos Coelho?
Passos não é mesmo um político a preto e branco. Ao contrário de António Costa, ele não é fácil de perceber. Dá-se pouco com jornalistas, a boa educação e a distância que mantém não deixam transparecer reacções, muito menos as suas zangas. Passos parece ter um escudo à frente – como o que o mantém a viver em Massamá, a fazer férias na casa de sempre no Algarve, a guardar tempo para a família (mas já lá vamos a isso).
Mesmo para quem se habituou a ouvi-lo, a falar com ele, a procurar uma visão imparcial e distanciada, é difícil perceber se o que o domina é a política ou o “fazer o que tem de ser feito”; se ele é o frio e imperturbável que parece ou se isso é uma capa; se é corajoso ou um tático; se é persistente ou teimoso, obstinado.
Volto a junho de 2011, quando ele tinha acabado de entrar no Governo. Com o memorando em cima da mesa, tinha noção de que a tempestade ia ser difícil de atravessar. Nesses tempos, era Miguel Relvas quem combinava com ele os passos políticos a dar – e Relvas tinha sempre muitas ideias, tantas quanto as obstinações de Passos. Uma delas era a de mitigar o ‘mal’ que seria feito com medidas ditas “populares”, quando não populistas, para “dar o exemplo”. Pôs várias em marcha: um Governo muito mais pequeno (que acabaria por ser ampliado mais tarde); a publicação dos salários de todos os membros dos gabinetes do Governo (o que deu irritações várias, incluindo com os motoristas que levam os ministros); outra ainda com as viagens de avião. Aqui, a ordem era para viajar em classe económica, para “dar o exemplo”.
Relvas era rápido a passar a mensagem: uma curta notícia no Expresso, logo no início do mandato, dava conta aos portugueses dessa decisão. Passos deu a ordem no seu próprio gabinete: sempre que o Falcon era evitável, era em económica que ia viajar. A decisão ia valer-lhe várias viagens incómodas, como a da sua deslocação à Turquia, em dezembro de 2012. Foi uma confusão em São Bento. O chefe de gabinete, o diplomata Ribeiro de Menezes, sugeriu-lhe que fosse de Falcon, Passos recusava. A equipa de segurança pedia-lhe cuidado, os assessores que evitasse uma viagem que levaria três dias (ida e volta), para uma cimeira que nem 5 horas levava. Passos insistiu: foi no banco apertado, a ler dossiês, com a segurança aflita, fazendo uma escala interminável em Frankfurt. O mesmo no regresso.
Passos insistiu: foi no banco apertado, a ler dossiês, com a segurança aflita, fazendo uma escala interminável em Frankfurt. O mesmo no regresso.
O caso não é muito diferente do que Passos começou a fazer aos fins de semana. Ao contrário de outros antecessores, Passos fazia questão de deixar tempo livre para a família. Fintava a segurança para ir ao supermercado, arrancava no seu carro pessoal para Vila Real, onde ia visitar o pai volta e meia. Foram, aliás, muitas as vezes em que tinha cerimónias naquele distrito – e a razão era só essa: volta e meia, Passos queria ir a casa.
E também foi assim com as férias: a Manta Rota, no Algarve, era local de descanso antes e ficou no durante. Nos primeiros dois anos, muitos foram os que lhe disseram que não podia ficar exposto, que haveria muita gente zangada com ele – e também câmaras de tv à porta. Passos respondeu sempre que daria má imagem ir para outro lado. E acrescentaria que precisa de “normalidade”, pelo que lá ficaria. “Teimoso” deve ter sido, nessa altura, a palavra mais repetida pelos seus colegas de Governo nesses tempos. Passos não quis saber.
Há, nesta escolha de Passos, uma linha ténue que separa a simplicidade da tática. E nem sempre era fácil cair no lado certo da linha. Vejam esta passagem da biografia oficial, onde a autora contesta quem criticou Passos por morar em Massamá: “Um apartamento espaçoso onde Pedro e Laura conseguem acolher todos os que amam (…); uma casa decorada sem a tirania da estética (…). Ali nada é pretensioso nem preparado. Ali vivem pessoas de carne e osso, pessoas como nós. Foi fácil sentir-se entre amigos”. Tudo isto seria perfeitamente normal, não fosse o caso de Passos ter deixado uma assessora do partido escrevê-lo em livro. Melhor dizendo, deixado uma assessora escrever-lhe uma biografia pessoal e íntima, expondo o seu espaço, a meses de uma campanha. Nesse livro há passagens que até amigos envergonharam – pela exposição e também pela maneira desabrida como falava do parceiro de coligação, a meses das eleições. “Mas alguém lhe perguntou por que é que fez isto?”, perguntava uma amiga no dia em que o livro foi lançado.
Quando os obstáculos são pessoais
Os anos foram duros com ele – basta ver as imagens dele para o perceber. Passos atravessou muitos obstáculos, muitas críticas, muitas polémicas. O homem que cultiva a imagem do estadista austero sem medida chegou a ser descrito por Marques Mendes, um dos seus permanentes conselheiros políticos, como alguém que “não está no poder por qualquer tipo de poder ou de conveniência, muito menos por dinheiro. Nunca ligou a isso”. Mas também isso lhe trouxe dores de cabeça: com a Tecnoforma (2013), a empresa onde trabalhou quando saiu da política; com as dívidas à Segurança Social (outubro de 2014) – que, como na TSU, deixou outra vez arrastar até ao limite. Até o barulho ser ruidoso demais e o ter levado (garantem os amigos) a vasculhar a sua garagem, procurando papéis velhos que lhe dessem a memória do tinha pago, ou não.
Tudo isto foi já em plena pré-campanha e podia ter acabado com a energia de Pedro, o PM. Mas o mais duro dos obstáculos pessoais veio depois, já este ano de 2015, quando Laura, a sua mulher, soube que tinha um cancro. Desde aí que Passos foi visto ‘n’ vezes no IPO de Lisboa, local difícil para um governante que teve de fazer controlo de custos em tudo, também na Saúde. O carro ficava à porta, Pedro entrava só com um segurança e pedia depois privacidade, para acompanhar a mulher. Fez isto ainda antes de se saber publicamente da doença da mulher. A vida privada ficou mais difícil, sobretudo a conciliação do tempo em que queria estar em casa. Mas Pedro, o PM, sabia que o caso não tardaria a conhecer-se.
Passos foi visto ‘n’ vezes no IPO de Lisboa, local difícil para um governante que teve de fazer controlo de custos em tudo, também na Saúde. O carro ficava à porta, Pedro entrava só com um segurança e pedia depois privacidade, para acompanhar a mulher.
Não havia perguntas ainda dos media, nem da imprensa cor-de-rosa, quando ele avisou o seu gabinete. A ordem era para não comentar, mesmo que aparecessem perguntas. O medo era o Correio da Manhã, sobretudo a TV, com as câmaras paradas no IPO. Imprevisto foi só o modo como se soube: na TVI, final da manhã de 7 de janeiro de 2015, largas semanas depois de tudo começar, um apresentador socialite disse que tinha sabido pela própria Laura, em direto. Passos correu a responder e fez um comunicado seco. Dizia simplesmente “é verdade”, “não falem disto sff”. Para proteger a família.
Laura foi operada, como estava previsto. E decidiu que tinha de aparecer, para contrariar a própria doença e sobreviver, de cabeça levantada. Apareceu sem cabelo, ao lado de Passos, numa viagem governamental a Cabo Verde, já em junho. Houve (muita) polémica nas redes sociais, fotos às dezenas e conversa na zona cor de rosa dos media. Até Passos já falou disso, da doença da mulher. No Governo houve quem achasse demais, mas nessa altura ninguém lhe disse. E nestes meses, desde aí, que meio mundo político se espanta com a resistência do político que não mostra a fraqueza e se empenha de sorriso aberto na corrida eleitoral.
A campanha: a senhora de cor de rosa e o aliado improvável
Passos responde a SMS, volta e meia liga. Antes de ir de férias, em finais de julho deste ano, consegui perguntar-lhe se achava que tinha hipóteses. As sondagens davam uma aproximação entre a coligação e o PS, mas era impossível em julho que alguém dissesse, preto no branco, que a PàF poderia vencer. “Estamos à frente, mas ainda falta muito tempo e não podemos cometer erros”. Desconfiei, como sempre se desconfia dos políticos (mais ainda à beira de eleições).
Não tardou muito até ter percebido o que queria dizer “não cometer erros”. O programa eleitoral anunciado nessas dias era seco, como ele avisou que seria (“não contem com surpresas”). A estratégia foi traçada apenas para colocar o PS na defensiva. Passos via em Costa um zig-zag constante, achou ótimo que o PS apresentasse um programa cheio de contas, muitas das quais não percebia. E, divertido a fazer política de novo, sem a casa a arder, deu ordem (explícita) para a coligação falar o menos possível. Não cometer erros era isso: entrar em modo “quem se mexe sai tremido na fotografia”. Mas a ouvi-lo percebe-se que há uma boa parte dele que não pode ser só política.
A mulher de cor de rosa apareceu-lhe na campanha assim que Passos foi para a estrada, no último 14 de setembro. Estava à porta de casa e Passos cumprimentou-a. Ela respondeu, azeda, dizendo-lhe que a pensão dela tinha sido cortada. E Passos, igual a si próprio, debateu com ela como se estivesse no Parlamento. “Com a mesma convicção, como se não estivesse a falar dela”, anotou naqueles dias um dos assessores que acompanhou esse dia de campanha. “Como se pudesse dizer à senhora que a missão dele não é cuidar dela, é cuidar do país”. Ele é assim: debate os argumentos em vez de dar a mão. Seja quem for o interlocutor, ele pergunta, desafia, com a mesma convicção de quem procura uma resposta que o convença.
O Passos que disse à senhora de cor de rosa um “não pode ser, a senhora já não pode ter a pensão cortada” é o homem que, mesmo tendo a política na pele, não evita um confronto de opiniões, uma discussão longa, uma explicação palavrosa, como quem se esquece de quantos votos aquela curta conversa lhe pode tirar (tendo as câmaras atrás dele).
As imagens captadas valeriam aliás ao líder da coligação, mais do que minutos repetidos nos noticiários, uma crítica ácida (e bem humorada) no programa de Ricardo Araújo Pereira, na TVI.
https://www.youtube.com/watch?v=yKMWCYRjhlU
A campanha doce não é com ele. Um dia, a poucos meses das eleições, um empresário tentou convencê-lo de que teria de adaptar o discurso se quisesse ganhar. Passos nem perdeu um segundo a responder: “Para isso está lá o Portas”. Sim, ao fim de longos anos, Passos encontrou na campanha o local certo para conseguir equilibrar o seu pragmatismo com o faro político do seu parceiro de coligação. Passos puxa pelo realismo, Portas pela argúcia. “Não sou de ficar a remoer o que aconteceu”, disse-me naquela entrevista de maio passado.
Passos e Portas. Os dois estão presos pelo mesmo destino: depois destes quatro anos, ou ganham juntos ou perdem juntos. No último sábado, Portas explicava numa entrevista ao Expresso como os dois chegaram à campanha sem problemas a dividir espaço, com sorrisos abertos e total sintonia: “Acho que nesta matéria todos crescemos. Por isso se tornou natural esta complementaridade de discursos, de atitudes, sem esforço nenhum.”
Ninguém dirá até que ponto os dois já se entendem na perfeição, mas a verdade é que há casamentos por conveniência que duram menos. E nunca até hoje tinha havido uma coligação que durasse até ao fim.
E se Passos perder, fica?
Há dias, no último debate com António Costa, o líder do PSD deixou cair uma frase preparada: “Se ganhar, mas também se perder, quero sentar-me consigo a discutir a reforma da Segurança Social”. Sim, se perder também – e todos perceberam.
No longínquo 2014 em que muito poucos no PSD realmente acreditavam que era possível ganhar eleições, Passos fez o mesmo numa reunião interna: deixou cair que não dessem por líquido que se iria embora. Essa era a altura em que muitos se mexiam no partido, à procura do famoso “sr. que se segue”. Com uma frase, Passos marcou as cartas e travou movimentações. Ao Observador, meses depois, Maria Luís Albuquerque reforçaria a mensagem, deixando muito boa gente de boca aberta: “Será um excelente primeiro-ministro, assim como será um excelente líder da oposição.”
No último debate com António Costa, o líder do PSD deixou cair uma frase preparada: “Se ganhar, mas também se perder, quero sentar-me consigo a discutir a reforma da Segurança Social”. Sim, se perder também – e todos perceberam.
Pelo sim, pelo não, Passos Coelho deixou já gente da sua confiança, que pensa como ele, em lugares centrais. Deixa uma bancada do PSD que não tem um deputado desalinhado. Deixa também Carlos Moedas em Bruxelas, como comissário europeu. E deixa Carlos Costa no Banco de Portugal, contra a opinião de Paulo Portas (que nunca, tal como António Costa, nunca se convenceu com o governador), contra até os maiores banqueiros, que já trocavam galhardetes nos jornais sobre a sucessão até Passos disparar numa reunião em São Bento: “Tenho o maior apreço pelo governador. Já imaginam o que pode acontecer”.
Assim foi, até aqui. Passos fez como Sinatra, à sua maneira, até ao fim. E aguentou – até agora.