Sai do palco impecavelmente vestido, tal qual o galã dos papéis que habitualmente desempenha em séries ou novelas. Só que antes do estrelato alcançado num país em que a televisão continua a ter um papel proeminente, Paulo Pires já pisava as tábuas do teatro. Mesmo com o grande reconhecimento a chegar via pequeno ecrã, há três décadas que o ator não sai de cena.
Agora, a peça que o tem como protagonista chama-se “O Filho”, texto do dramaturgo e realizador francês Florian Zeller, numa versão de Vera San Payo de Lemos, que também assina a dramaturgia. A encenação é de João Lourenço e a estreia está marcada para este sábado, 15 de abril, no Teatro Aberto, em Lisboa.
Em entrevista ao Observador, Paulo Pires reflete sobre o espetáculo, que conta a história de um jovem em profunda depressão e um pai angustiado incapaz de o salvar. “O amor não chega” quando se fala de saúde mental, ouve-se dizer. Como se vive com a impotência de não poder ajudar um filho? A questão impõe-se perante o ator, que também acumula, fora de cena, o papel de pai, “o mais difícil na vida de fazer”, jura.
Paulo Pires nasceu em Lisboa a 26 de fevereiro de 1967, numa família sem nenhuma ligação ao meio artístico. Não há que explique porque é que os filmes eram o seu fascínio maior. Em miúdo, passava a vida na Cinemateca, mais tarde no Quarteto e, por fim, no King, “Nem sabia o que ia ver, sabia que chegava ao King e havia um filme bom”, lembra. Perdia-se nas ficções, sem ideia do que seria a sua própria história. Estudou ciências, cumpriu o serviço militar obrigatório. E depois? “Podemos escavar esse caminho e apontar numa direção, mas a vida prega-nos grandes surpresas”.
A primeira aconteceu aos 21 anos, quando entrou pela mão de uma namorada na loja de Eduarda Abbondanza e Mário Matos Ribeiro, no Bairro Alto, em Lisboa, e foi interpelado para fazer um desfile. “Não é uma falsa modéstia minha, mas nem gostava de tirar fotografias, achava que ficava super mal”, confessa. “Não tinha nenhum interesse nem nenhuma crença de que fosse funcionar”. Mas funcionou. Desfilou para grandes designers nacionais, posou para a lente de fotógrafos-referência, como Pedro Cláudio. Depois, foi correr o mundo. Tóquio, Milão, Viena, Barcelona, Munique, Hamburgo, Paris. “As coisas foram todas muito rápidas. Pensei sempre que estudaria mais tarde, que aquilo era uma coisa passageira, nunca achei que fosse uma coisa definitiva”. A escola de cinema ficou sempre qual nuvem, a pairar sobre o seu pensamento. “Se calhar não tive a coragem na altura, porque entretanto a moda aconteceu”, reflete hoje. “É a vida, abre-se uma janela, a pessoa espreita, vai por ali fora e depois não tem coragem de voltar para trás”.
Paulo Pires andou sempre em frente, sem nunca se deixar deslumbrar. Sem pudor, enterrou a fulgurante carreira de modelo, e, se pertencesse à geração Z, dir-se-ia que “manifestou” ser ator. É que, de uma forma ou de outra, tudo se encaminhou para tal, ainda que, pelo meio, algumas sobrancelhas se erguessem ao ver um modelo chegar ao palco do Teatro Nacional. “Se me disserem ‘o modelo não sei quantos fez um filme’, também fico de pé atrás, também sou humano”, reconhece. “Também levanto as sobrancelhas como eles. Agora é preciso que as pessoas provem.”
Há precisamente 30 anos estreou-se como ator, em “Zéfiro” (1993), longa-metragem de José Álvaro Morais. Como é que surgiu essa oportunidade?
Foi muito simples. O José Álvaro Morais procurou alguém que pudesse fazer de Corto Maltese, que no filme passava por Lisboa. Indicaram-lhe o meu nome, ele não me conhecia. Puseram-me umas patilhas e fiz de Corto Maltese. Foi uma honra, é uma personagem incrível, adoro os livros do Hugo Pratt. Foi uma coisa bonita, mas não foi propriamente um trabalho de ator, não o considero assim. Não falava, estava muito verde para sequer conseguir representar alguma coisa. Foi uma espécie de transição de modelo para ator, embora eu não goste muito da designação de modelo porque também não era modelo, não nasci modelo. As pessoas não nascem e “pronto, este rapaz nasceu para ser modelo”. Não, ser modelo é uma forma de ganhar a vida. Nenhum desprezo pela profissão, foi onde conheci gente muito interessante, a minha mulher inclusive, gente que escreve, músicos, de tudo um pouco, que viram ali uma forma de ganhar dinheiro, conhecer o mundo e ganhar vivências.
Mas as pessoas são mais do que uma dimensão e uma profissão.
Absolutamente.
Perguntava-lhe sobre o filme de José Álvaro Morais, que nos deixou com muito pouca filmografia, porque os registos que há sobre o realizador o descrevem como um autor que envolvia muito os atores nas narrativas dos filmes. Mas então não terá tido essa experiência nesta rodagem.
Não, estava muito verde para tal. Gostei imenso de fazer o filme, até porque interessava-me mesmo por cinema. O “Zéfiro” é um filme especial com um elenco especial, com o Luís Miguel Cintra, com o Marcello Urghege, com a Paula Guedes, com atores fantásticos, com a Inês de Medeiros. Mas eu cruzei-me com pouca gente, não tive contracena. Lá está, o Corto Maltese deambulava pela cidade, acompanhava a história, aparecia em três ou quatro pontos, mas era na perspectiva dele a observar, não houve propriamente um trabalho de contracena. Depois, no “Cinco Dias, Cinco Noites”, em 1996, do José Fonseca e Costa, que foi alguém muito, muito importante na minha vida, esse sim mostrou-me… Foi ele que me abriu a janela. Foi ele que me mostrou algo que depois vim a descobrir como algo que me preenche muito que é a representação.
Foi o momento-revelação em que pensou “é isto que quero fazer”?
Percebi que queria fazer aquilo, não sabia se ia conseguir fazer aquilo. Lembro-me de estar a fazer o filme e o Vítor Norte, que era a pessoa com quem contracenava, me dizer assim: “Vais ver que depois a seguir ao filme vais fazer umas peças”. E eu dizia-lhe: “Ó, Vítor, não acredito”. Pensei que se o filme corresse bem era capaz de fazer mais um filme ou outro.
De repente estava num elenco ao lado de atores como o Vítor Norte, a Ana Padrão. Como é que foi ali parar?
Foi o José Fonseca e Costa que me contactou. Viu-me num programa de televisão. Eu estava a trabalhar como modelo em Paris, vim cá a Portugal e fiz uma entrevista num programa chamado “Frou-Frou” (RTP, 1994-1995), que era com a Alexandra Lencastre e com a Margarida Pinto Correia. O que o José Fonseca e Costa me disse foi que na altura me viu e disse: este tipo é capaz de fazer bem o André que eu procuro. Chamaram-me para o casting e eu fui. Depois queria ir embora para Paris, andava sempre fora, e disse-lhes que precisava de saber se ficava ou não. E eles disseram-me: “Tu já não estás a fazer casting nenhum, já estás a ensaiar para o filme”. Foi muitíssimo bom. Aquilo que estava a sentir, ainda não como ator, mas como pessoa a fazer aquele filme, aquela tensão que aquilo me podia dar podia também usá-la na personagem, o José Fonseca sabia disso. A personagem não era propriamente um tipo descontraído, era alguém que sai da prisão de onde estava por razões políticas e quer ir para Espanha. Era um personagem tenso. E a minha tensão podia ser canalizada e aproveitada aí.
Sentiu que tinha as ferramentas para fazer essa personagem, o André.
Senti que as ferramentas que tinha na altura serviram o propósito que o Zé queria.
Alguma vez reviu o filme?
Sim, sim. De uma forma geral não gosto muito de rever as coisas que faço. Agora começo a gostar mais, mas durante muito tempo não queria. Era muito crítico. Agora já começo a aceitar mais as coisas. Também acho que já consigo fazer aquilo que idealizo. Antes idealizava fazer alguma coisa, mas era só intuitivo, não tinha aprendido praticamente nada, assentava tudo na intuição. Acho que é uma ferramenta ótima, fundamental para toda a gente, mas nem sempre conseguia tirar o melhor partido. Agora olhando para alguns desses trabalhos, se forem mais recuados, vejo uma forma de estar mais naif, mais desconfortável.
Nesse ano, 1996, ganhou um Globo de Ouro como Melhor Ator Revelação.
Em teatro. Apareci muito rapidamente e depois fiz uma peça no Teatro Aberto antigo, que foi onde me estreei. Uma peça chamada “A Minha Noite com o Gil” (1996). A crítica foi muito boa à peça e não foi de todo má para mim, foi bastante simpática até. Eu que nunca tinha feito teatro vi-me como um dos protagonistas dessa peça. Éramos seis homens. Ainda estava em cena e já estava a ensaiar na sala estúdio do Teatro Nacional com a Maria Emília Correia. Foi tudo muito rápido.
Como é que foi estar em palco pela primeira vez?
Não foi desconfortável. Foi assustador quando abriu a cortina e eu vi aquelas pessoas todas. Mas acho que muito mais cedo o palco foi confortável para mim do que a câmara.
É mais humano?
O teatro é mais ensaiado. Quando vamos estrear uma peça ela tem de ser toda memorizada de uma ponta à outra, requer ensaios, muitos ensaios, ou alguns. É a repetição. Isso faz com que alguém que esteja mais acabado de nascer para este meio, que esteja mais verde, que ganhe segurança e tenha mais tempo para procurar, para encontrar. A televisão é o registo mais difícil de fazer, porque é uma máquina de triturar pessoas, é tão imediato, é tão rápido que ou estamos bem ou não resistimos. O cinema tem a sua característica especial que é o facto de haver mais tempo para cada cena, mas também não tem tantos ensaios como o teatro. O teatro para mim teve sempre essa mais valia. Há pessoas que até dizem “ah, quando começo a repetir muito perco a espontaneidade”. Para mim desde sempre comecei a tentar encontrar coisas na repetição. Perde-se a espontaneidade, ganha-se outras coisas.
O seu melhor trabalho está no palco?
O meu melhor trabalho será onde conseguir encontrar de forma mais concreta a personagem. Às vezes a personagem não se encontra.
Como é que se lida quando assim é?
Anda-se sempre à procura. Antes não tinha tanta noção disso, mas agora nos últimos anos, às vezes estamos a ensaiar alguma coisa e tenho a sensação de que já sei quem é aquela pessoa, já a conheço. É um caminho para a personagem, faço exercício de pensar: “Então e se ele tiver uma tendência política, quem é ele, o que é que ele faz”. Quando sabemos isso, encontramos a personagem. Depois temos de a pôr cá fora. Estar a sentir pouco interessa se as pessoas não estiverem a ver. Alguém dizer: “Olha, isto não está a passar”, e dizermos “mas eu estou a sentir”, não interessa. Isto não é para ti. Com o trabalho, com a técnica, conseguimos pôr cá fora aquilo que sentimos.
A técnica de que fala, não tendo uma formação formal, aprendeu-a como?
Com os professores que aqui andam, que não estão no conservatório nem nas outras escolas, há muitos bons por aí. Já trabalhei com muitos.
Quem é que o ensinou verdadeiramente?
Todas as pessoas com quem trabalhei, seguramente. Mas o João Lourenço é uma pessoa com quem já fiz muitos espetáculos de teatro, já estive centenas de dias em palco com ele. Conhece-me muito bem, deu-me muito, é alguém que dirige muito bem, gosto muito de trabalhar com ele. Fiz aqui uma peça com a Carmen Dolores, o último trabalho que ela fez. Mas todas as pessoas me terão ensinado, às vezes até pessoas jovens, porque fazem despertar em nós coisas diferentes e aprendemos todos uns com os outros todos os dias. Tenho trabalhado felizmente com belíssimos atores e é aí que tenho tentado beber ao máximo.
Em 1996, um modelo no palco do teatro nacional fez levantar sobrancelhas?
Sim, sim. Sabia que quando o pano abria havia muita gente [a fazê-lo]. Sabia que o facto de eu ser conhecido da moda não me ia facilitar o trabalho. Ia-me pôr um foco em cima, as pessoas iam ter mais atenção logo porque era alguém que já vinha de algum sítio e de quem tinha uma ideia e a ideia era “se é modelo, não pode ser ator”. Era como aquela coisa que se foi perdendo com o tempo, mas que também existia, que era: “Se é bonito ou bonita, não pode ser ator ou atriz”. Felizmente, foi-se perdendo.
Não caminhamos para o oposto, para uma migração cada vez mais frequente de quem começa na moda? Dentro das próprias agências de modelos são criados cada vez mais departamentos de atores…
Sim, embora não ache nada que seja o caminho natural. Não acho, sinceramente. Se me disserem que “o modelo não sei quantos fez um filme”, também fico de pé atrás. Também sou humano. Também levanto as sobrancelhas como eles. Agora, é preciso que as pessoas provem. Têm lá o foco. Agora, isso ajuda? Não. Dificulta, mas é assim.
A base de dados do Centro de Estudos do Teatro atribui-lhe cerca de 20 peças.
A mim? Ah, não sabia que tinha feito tantas!
Houve alguma que o marcou em particular?
Houve: “Copenhaga” [2003, encenado por João Lourenço no Teatro Aberto], que começa num texto absolutamente arrebatador, é um dos melhores textos de teatro que já trabalhei, do Michael Frayn; “A Real Caçada ao Sol” [2000, TNDMII], porque foi um grandioso espetáculo de 50 pessoas, no Teatro Nacional, naquela sala maravilhosa, um espetáculo do Carlos Avillez; o meu primeiro espetáculo, “A Minha Noite com Gil”; dois espetáculos que fizemos aqui [no Teatro Aberto] em simultâneo, deste mesmo autor, Florian Zeller, que é “A Verdade” e “A Mentira” [2018], que foi um exercício muito interessante porque eram peças parecidas, mas não iguais e nenhuma era a continuação de outra; “O Avião de Tróia” [1996, TNDMII], que fiz com a Maria Emília Correia e um grupo de pessoas com quem fiz vários espetáculos e de quem tenho muitas saudades. A Maria Emília Correia não tem feito espetáculos, mas continua a ser uma pessoa encantadora e criativa e talentosa. Aprendi muito com ela, foi uma pessoa muito importante na minha vida mesmo. E com o José Fonseca e Costa. O primeiro filme que fiz foi com o José Fonseca e Costa e a primeira peça que ele dirigiu foi comigo.
“Pequenos Crimes Conjugais” [2007], ao lado da atriz Margarida Marinho.
Sim, a Marinho é uma atriz muitíssimo interessante, aprendi muito com ela também.
Atinge o grande reconhecimento na televisão, sobretudo a partir de 1999 ao interpretar um dos principais papéis da série “Jornalistas”, exibida na SIC. Mas o seu primeiro segundo televisivo é na Globo.
Foi.
Isso aconteceu como?
Acho que na altura a Felipa Garnel esteve metida nisso, tinha ligações ao Brasil.
Com quem co-apresentou o programa “Mundo Vip” [SIC, 1996-2001].
Sim. Mas isto foi antes do “Mundo VIP”.
Já agora, essa experiência deixou-lhe vontade de querer apresentar?
Não. Não fecho as portas a um projeto que pudesse interessar, mas não acho que um bom apresentador seja um bom ator necessariamente e vice-versa. Pode ser, alguém pode fazer as duas coisas bem, mas conheço pessoas que apresentam muito bem e que não representariam. E o contrário também. Não é uma crítica a ninguém, é um facto. São registos diferentes.
Mas, portanto, suspeita que a Felipa Garnel esteja envolvida na sua chegada à Globo.
Não [supeito], sei. Antes do “Mundo VIP” ela tinha um programa com a Margarida Pinto Correia, veio fazer um programa ao Teatro Aberto, entrevistou-me, e gostou do espectáculo. Na altura alguém estava à procura de um ator português e ela disse-me se eu lhe conseguia arranjar umas imagens para mandar para a Globo. Acabei por ir para o Brasil. Nunca tinha feito um segundo na televisão. Tinha uma vez feito um casting e fui escolhido para uma coisa, não sei se era os “Telhados de Vidro” (a primeira novela da TVI, em 1993). Sei que era pouco. Mas não sabia se era pouco e depois se ia entrando de vez em quando. Na altura queria viajar e não quis fazer dessa forma. Portanto foi na Globo que me estreei. Cheguei lá e vi aquelas pessoas que tinha conhecido no sofá, a ver na televisão. A minha vida foi assim, fui sempre atirado assim.
Os atores falam muitas vezes da imprevisibilidade da carreira, que perpetua muita precariedade, mas também muita angústia em não saber o que lhes reserva o futuro. Já o seu trajeto parece ter beneficiado muito dessas situações do acaso.
Sim, razão pela qual eu odeio fazer planos… Bom, a longo prazo não faço, mas a médio também não gosto.
Lida bem com o imprevisto?
Mal ou bem é o que há, é o que tenho na minha vida. Muitas vezes faço um plano e sai ao lado. Tento-me organizar, mas dentro do que é o curto e médio prazo.
Que espaço ocupa a televisão ocupa na sua carreira? É um meio que gosta de explorar criativamente, é uma segurança financeira?
A televisão é uma outra forma de trabalhar neste meio e de as pessoas se manterem ativas. Obviamente que é um meio financeiro também, toda a gente sabe que o teatro paga menos do que a televisão, mas a televisão é necessária.
Nem inclui aí o cinema.
O cinema pode pagar até melhor, mas é um projeto que dura menos tempo. Uma novela ocupa nove meses, normalmente, e um filme ocupa dois meses, ou umas sessões. Não é comparável. Nunca tentei fazer televisão em detrimento de teatro ou de cinema. Neste meio há uma coisa muito determinante que é: a nossa carreira é feita de timings. Estou a fazer uma novela agora e tive de dizer que não a uma série na Bulgária, noutro dia, que era uma coprodução internacional, com Espanha, etc. O timing fez com que dissesse “não posso”.
O que é que mais lhe custou perder por um mau timing?
Já me custaram algumas coisas. Já me custaram filmes, um filme português de que gostei bastante. Normalmente quando não posso fazer ou quando escolho não fazer não vou ver para não ter pena.
Neste caso foi?
Fui. Não fui ao cinema, mas ele acabou por passar na televisão e não resisti e vi. Tinha gostado imenso de fazer o filme.
Presumo que não me vá dizer qual é.
Não [risos]. Tenho todo o respeito pelo trabalho que foi feito e pelo ator da forma como o fez. E nem sei se ele sabe que foi uma segunda escolha, portanto para quê dizer isto? Se é que eu era a primeira.
E já teve o contrário, projetos que se arrependeu de fazer?
Já. Não é que me arrependi de fazer, mas acreditei que iam ser melhor do que foram. Vou ser sempre assim. Às vezes digo que não faço porque não posso e é porque não quero. Outras vezes não faço mesmo porque não posso. Outras vezes vou continuar a acreditar que vai ser bom e não vai ser.
Nesses casos fica frustrado ou vai-se aprendendo a escolher melhor?
Não, nós nunca aprendemos a lição. As pessoas na vida dizem “aprendemos com os erros”… Na minha vida, quando penso que já aprendi, depois engano-me. Porque afinal agora é bom e eu achava que era mau. É muito difícil. Não há uma fórmula certa para fazer uma coisa boa. Em Portugal há um bocadinho isto que é: esta pessoa é boa, então tudo o que faz vai ser bom, mesmo que não seja. Mas a gente vai dizer que é bom porque toda a gente diz que é bom. Não concordo muito com isso. Acho que as pessoas que são boas às vezes falham. E que as pessoas que são más às vezes fazem coisas boas.
Aplica isso a si próprio? Perdoa-se quando faz uma coisa menos boa?
Nem por isso. Sou muito autocrítico. Fico danado comigo, mas também já não sou o idealista que fui. Já tive 20 anos e quando se tem 20 anos é-se um idealista. Se começasse tudo agora dizia que só queria fazer cinema e teatro, mas para isso é preciso depois pensar: e eu posso fazer só isto? Vou depender de quem? Vou dizer “só quero fazer cinema, pai, vai lá depositar-me dinheiro na conta”? Nunca quis ser essa pessoa. E como nunca quis ser essa pessoa, e hoje tenho uma família, tenho também essa preocupação. Esta é a minha profissão, não é só uma fonte de prazer. Não sou o Carlos Paredes que toca guitarra portuguesa daquela forma incrível e que não quer que aquilo seja a profissão dele. Acho isso lindo, mas não consigo fazer isso com a minha profissão. Porque não tenho outra. E como não tenho outra, esta tem de servir para me encher a alma, mas também… Não tenho grandes ambições. Não me preocupa se sou muito rico. Há aquelas pessoas que dizem que não pensam no dinheiro. Penso no dinheiro. Se me despreocupar, vou ter de pensar no dinheiro e não quero chegar a esse tipo de preocupação. Tenho a minha organização de forma a não dar o passo maior do que a perna, que é uma coisa que vem da minha família. Passaram-me essa disciplina, essa regra. Se não trabalho só por causa do dinheiro, também não ando por aí a esbanjar à maluca. Tento fazer uma gestão em que faço cinema, teatro e televisão. Tento ter sempre as contas equilibradas, mas não deixo de escolher aquilo que faço.
Se retirássemos aqui a questão financeira, aos 56 anos, em que imagino que se faça algum balanço, o que é que lhe apetece mesmo fazer?
A mesma coisa que me apetecia antes, porque tenho escolhido bastante. Há propostas que não fiz porque não pude, outras porque não quis, algumas até fiz mal em não querer. Espero que essas propostas venham. Agora até acho que terei alguma maior bagagem para poder refletir sobre as escolhas. Quero fazer projetos que me desafiem. Gosto do jogo de cintura que a televisão requer, dá uma grande escola, mas quero fazer mais clássicos de teatro, quero fazer Shakespeare, que nunca fiz. Quero que haja desafio.
Falámos genericamente de televisão associando muito o meio às novelas, mas o mercado das séries explodiu nos últimos anos. O que significou “White Lines” [Netflix, 2020] na sua carreira?
Aquilo até começou por ser uma coisa ainda menor do que acabou por ser. Na altura quando me perguntaram foi uma diretora de casting que estava em Portugal através do [programa] Passaporte, da Patrícia Vasconcelos. “Há uma personagem que tem uma cena, até pode ser que eles escrevam mais, mas gostava que tu fizesses.” Estava no meio de uma novela, mas fui fazer. Pensei que não ia voltar a entrar na série, mas eles voltaram a chamar-me. Para mim até foi uma preocupação imensa, porque não tinha datas para ir e aquilo era fora. Foi um quebra-cabeças. Foi com uma grande tensão que fui fazer aquilo. Não é um projeto que eu adore, mas foi um projeto que fiz e todo aquele universo que está aqui para ficar, seja de todas estas plataformas, Netflix, Amazon, HBO, tudo o que for, é algo fabuloso porque torna os atores muito mais globais.
Está agora de novo no palco com “O Filho”, de Florian Zeller, encenado por João Lourenço, no Teatro Aberto. É a história de um pai que tenta salvar o seu filho. Diria que é sobre isto?
Não sei se tenho essa valia de resumir tão bem o que é esta peça, mas se há algo que o Pedro (nome da personagem do pai, que o ator interpreta) tenta fazer ao longo dessas cenas, é isso. Aliás, é uma frase dele: “Para mim o importante agora é salvar o Nicolau [filho]”. É um pai pragmático, da alta finança, um tipo que a sua própria profissão o absorve muito. É alguém que num segundo casamento se apercebe que o filho do primeiro casamento está ali a sair um bocadinho da zona que para ele, e para qualquer pai, é absolutamente impossível de admitir. Um filho que de repente começa a faltar à escola e que não é uma vez, nem outra, são muitos dias. É alguém com todo o pragmatismo na forma de ver o mundo, muito diferente do filho, que tem outra sensibilidade. Este pai tem condições financeiras para chamar um psicólogo ou, se necessário, um psiquiatra para o filho. Mas para ele este rapaz é alguém que precisa de disciplina. E “com disciplina e com atenção a coisa vai entrar nos eixos”. Isto são palavras dele. É alguém que tem amor pelo seu filho, só que, às vezes, “o amor não chega”.
A peça fala de depressão e saúde mental, temas que têm estado na ordem do dia, ainda mais pós-pandemia. Este pai perpetua os argumentos que desvalorizam o assunto. “Anda correr lá para fora”, diz ao filho. “Não penses nisso”.
Claro. As pessoas têm uma certa recusa em admitir que é uma doença, uma fragilidade. Há muitas pessoas que têm esse problema com tudo aquilo que é visto como uma fragilidade. Este pai teve essa relação retrógrada, de um pai mais autoritário. A geração dos meus pais e dos meus avós era uma geração muito diferente, muito mais autoritária, muito mais longe dos filhos. Todas essas coisas são discutidas porque de facto eram tempos diferentes. Este pai herdou um bocadinho mesmo sem querer, mesmo sendo aquilo que foi a educação do pai e que ele sempre condenou. Agora é a vez dele. É a vez de ser pai. Quer pôr em prática algo diferente daquilo que o pai fez, mas ou porque a educação do seu pai foi muito forte ou porque ele de facto não sabe como lidar [com estes temas], não consegue.
Fazer esta personagem obrigou-o a confrontar-se com a forma de olhar para a paternidade?
Completamente. Desde a primeira leitura do guião. No dia seguinte fui levar a minha filha à escola e senti-me diferente, nem que fosse só nesse dia. Todos refletimos sobre isto. Mesmo quem não é pai é filho e já foi adolescente. Isto é uma coisa muito transversal a todos, todos estamos a pensar sobre isto. Sou pai de duas filhas, sou pai de uma adolescente de 18 anos e de uma menina de dez. Obviamente que com estas questões uma pessoa fica com efervescência cá por dentro. Não se vai tranquilo daqui. É um tema que se leva para casa. Agora já começa a haver uma separação. Mas no início, quando estamos a remexer nestas coisas, a pessoa pensa em tudo. Pensa nas suas próprias experiências, pensa “onde é que será que falho?”. Já me interrogava muito enquanto pai. Já disse à minha filha mais velha: “Nunca fui pai de uma adolescente, estou a traçar este caminho contigo, estou a errar e estou-me a enganar”. Por vezes perco a cabeça, tento fazer de uma maneira e depois não consigo. Isto é a luta de um pai todos os dias. É óbvio que esta peça vai comigo para casa e é perturbadora por isso, mas ainda bem que o é.
A peça lida com a culpa, imposta muito sobre a sua personagem. Ser pai é sentir sempre culpa de alguma coisa?
Pois. É o mais difícil na vida de fazer, ser pai. É muito difícil. E depois há pais que não tinham nem grandes referências, nem grande informação, nem grande talento, e deram uns pais incríveis! Depende de uma série de fatores, é uma conjugação de estrelas, não sei.
Quando se chega à estreia, ainda se está muito envolvido nestas questões ou já se está mais apaziguado?
As questões já estão mais absorvidas, já está tudo mais dentro de nós. O trabalho está feito, na estreia vai começar a ser mostrado. O trabalho está construído. Caminhamos muito para chegar aqui e fizemos um trabalho bastante sério. Nunca estivemos só com o texto, fomos sempre discutindo ideias, viajando nestas questões, tivemos uma psiquiatra a falar sobre o espetáculo, a falar sobre as personagens. As personagens já vivem por si só. Agora a nossa preocupação é dar corpo àquilo que construímos.
Quando falamos de saúde mental a dos atores parece propensa a ser frágil, porque há determinadas emoções a que se têm de aceder com mais frequência do que um cidadão comum.
Os atores têm vantagens e desvantagens. Acho que são só vantagens, na verdade. Esta questão de explorarmos muito a personalidade do ser humano, de tentarmos compreender esta e aquela pessoa, torna-nos pessoas mais ricas. É essa a natureza do ator: estar desperto para o que o rodeia. O seu próprio trabalho requer que pesquise, que investigue, sobre comportamentos humanos. Se fizermos um psicopata vamos estudar o comportamento desse psicopata. Acho que isso é até terapêutico. Ajuda-nos a uma compreensão do ser humano que nos pode tornar melhores pessoas. Enriquece-nos.
Conhece-se melhor desde que é ator?
Acho que sim. Também sou mais velho, são dois fatores. A forma como abordamos a vida depende se nos escondemos ou não de quem somos. Podemos estar sempre a olhar para os outros e nunca nos vermos.