Duas capitais de distrito em risco, onze presidentes de câmara de saída e uma tendência de perda que é preciso contrariar. Os perigos que podem trazer as eleições autárquicas que se avizinham estão bem presentes para o PCP, cujo poderio a nível autárquico, um dos pilares que sempre foram essenciais para manter a sua influência, tem caído de forma consistente. A um ano do próximo desafio, o partido está consciente de que desta vez pode perder pelo menos duas autarquias cruciais. Ao mesmo tempo, prepara-se para o embate confiando que o principal adversário — o PS — também não está nas melhores condições.
Évora e Setúbal. Estes são os dois casos mais complicados que o PCP parece ter em mãos, pelo menos a julgar pela avaliação que os próprios comunistas, mas também fontes de partidos ‘concorrentes’ nos mesmos distritos, fazem da situação das duas capitais de distrito e da evolução das votações em ambos os municípios nos últimos anos. Além disso, fontes do partido identificam a grande quantidade de presidentes de câmara em fim de mandato como outra ameaça à continuidade da governação comunista em várias autarquias.
Depois, há o problema Chega: embora não falte quem no PCP elenque argumentos para contrariar a tese de que o partido de André Ventura anda a ‘roubar’ eleitorado comunista, essa ideia é alimentada entre antigos autarcas do próprio partido. E existe a consciência clara de que desta vez, quatro anos depois de o Chega ter entrado com estrondo em terreno autárquico (conseguiu eleger 19 vereadores, embora rapidamente tenha perdido metade), o partido se apresentará nesta frente de combate de forma mais consolidada e menos amadora — e portanto mais ameaçadora.
Os autarcas de saída e a ameaça Meira
Oficialmente, e em resposta às perguntas do Observador sobre este processo autárquico, os comunistas dizem estar a preparar estas eleições com “confiança”, graças ao “valor distintivo” que acreditam que o seu projeto acrescenta e ao “reconhecido percurso” que vão fazendo em muitas autarquias do país — 19 continuam a ser governadas pelo PCP, que perdeu a governação de 15 nos dois últimos ciclos eleitorais, chegando ao número mais baixo de autarquias que liderou em democracia.
Ainda assim, o partido admite “não ignorar” que existem “conjunturas e circunstâncias que em algumas situações desvirtuam o sentido essencial do que em eleições locais está em decisão”, assim como fatores mais específicos que “abrem ou fecham perspetivas eleitorais”. Por outras palavras: o PCP “não ignora” que existe o risco de o contexto político, que não tem sido favorável aos comunistas, afetar os seus resultados — uma vez que confia em que, caso a decisão dos eleitores tivesse puramente a ver com o julgamento do seu trabalho autárquico, as perspetivas seriam mais auspiciosas.
De forma não oficial, dentro do partido as preocupações avolumam-se. Por um lado, há quem identifique a mudança de presidentes de câmara, uma vez que dos 19 que são do PCP há 11 que estão em fim de ciclo, como “o principal problema” para o partido. Isto porque, como se recorda no PCP, há locais em que até há sucessões “naturais” ou outras que são preparadas há mais tempo, mas noutros “nem tanto” — e isso tem “um peso importante”.
O partido já começou, de resto, a tentar prevenir-se: basta olhar para o caso do Seixal, onde o PCP governa sem maioria e começou a preparar o novo ciclo mais cedo. Assim, deu-se a troca do antigo presidente Joaquim Santos, que já estava no terceiro e último mandato, pelo sucessor Paulo Silva, em 2022 — o que permite a Paulo Silva tentar manter a câmara na esfera do PCP sendo já um rosto mais conhecido pelos eleitores do Seixal.
Noutros casos, o verdadeiro problema são não os atuais, mas os antigos presidentes de câmara. É o que acontece com Maria das Dores Meira, histórica autarca comunista que rompeu com o partido e vai concorrer à câmara de Setúbal, uma das jóias da coroa do PCP — ou não fosse capital de distrito — como independente. Até 2021, Meira cumpriu três mandatos como presidente de câmara de Setúbal pelo PCP, onde esteve filiada durante 48 anos.
Bateu com a porta este verão e anunciou que se recandidataria, mas como independente. Em entrevista ao Expresso, arrasou depois as posições do PCP em relação ao regime político da Venezuela ou à guerra na Ucrânia, garantindo que “alguém minimamente inteligente” tem de se questionar sobre a direção em que o partido está a ir e que “pessoas minimamente livres e inteligentes” não podem “compactuar” com este tipo de posições.
A guerra entre a ex-autarca e o antigo partido tomou proporções ainda maiores este fim de semana, quando Meira disse, ao inaugurar a sua sede de campanha, que está a ser vítima de uma “perseguição política” promovida pelo PS e com “o apoio inequívoco da CDU”, graças a uma auditoria aprovada por CDU, PS e PSD a uma alegada utilização abusiva dos cartões de crédito do município e recebimento indevido de ajudas de custo quando era era presidente da câmara de Setúbal.
Ironicamente, dentro do PCP a acusação é a contrária, apontando-se que o PS usa “táticas” para “tirar câmaras” aos comunistas que também passam pelo incentivo a independentes que são ex-candidatos comunistas. Em Palmela, recorda-se, o antigo dinossauro comunista Carlos Sousa também chegou a candidatar-se como independente contra o partido; o também ex-PCP Luís Mourinha conquistou ao partido, como independente, a autarquia de Estremoz.
No PCP, temem-se os efeitos da rutura com Maria das Dores Meira. “É um problema evidente”, comenta com o Observador fonte do partido. “O trabalho em Setúbal tem sido positivo, mas isto vai dividir mais do nosso lado do que do lado do PS”. Ou seja, o eleitorado comunista poderá dividir-se entre a antiga presidente e a candidatura (oficial) comunista, o que seria um perigo considerável para o PCP, que nas últimas eleições conseguiu assegurar a governação de Setúbal mas perdendo a maioria dos vereadores no executivo municipal — assim como quinze pontos percentuais na votação.
Capitais são tentação, PCP acredita que PS está mais fraco
A outra capital de distrito que o PCP ainda tem nas mãos e que gera preocupação é Évora, conjugando-se neste caso vários fatores de risco: não só os comunistas governam a câmara sem maioria, tendo tido apenas mais 300 votos do que o PS e com o mesmo número de vereadores (dois) que os socialistas, como o atual presidente, Carlos Pinto de Sá, está a terminar o seu terceiro e último mandato. Junta-se a isto um fator que vale tanto para Évora como para Setúbal: ambas são conquistas muito apetecíveis para o PS, que se ressente com a falta de capitais de distrito que conquistou em 2021 e vê nestes casos duas oportunidades para recuperar terreno.
Ainda assim, nos corredores do PCP ouve-se um foco de otimismo. “Não é pior do que há três anos. O PS estava com grande força há três anos e não estará nas mesmas condições“, frisa fonte comunista. O PCP tem bem definido o seu inimigo principal — os socialistas — e também se lembra bem de como o PS foi o responsável por conquistar quase todas as câmaras que perdeu em 2017, em plena geringonça, e em 2021 (dez no primeiro ano, cinco no segundo).
A luta faz-se, nos principais distritos em que o PCP mantém uma influência significativa, no sul do país, à esquerda. E se fontes socialistas em Setúbal garantem que a indicação que existe é de falar “pela positiva” e não atacar violentamente o PCP no distrito, essa ideia provoca, literalmente, risos dentro do Partido Comunista. A convicção no PCP é que o PS de Pedro Nuno Santos, derrotado pelo PSD e à procura do seu caminho depois de ter viabilizado o seu Orçamento do Estado, não goza das mesmas condições de que António Costa gozava em 2021, quando estava prestes a rumar à maioria absoluta.
De resto, quanto a possíveis coligações com o PS, a que tanto Bloco de Esquerda como Livre abriram a porta em Lisboa, no PCP a resposta é clara: “O PS tem um enorme cadastro em Lisboa. Eles que vão com o Bloco”. Na resposta oficial ao Observador, a linha é a mesma: o PCP apresenta-se a eleições “no quadro da CDU”, lembra o partido, quando questionado sobre a abertura a outras coligações mais alargadas. A distinção entre os dois projetos é, para os comunistas, clara. E em autárquicas a rivalidade é mais que muita.
O risco da “consolidação” do Chega: “É um problema para todos”
Como se comenta no partido, no Alentejo há sempre pequenas autarquias que vão virando entre PS e PCP (em 2021, os comunistas perderam sete câmaras mas também ganharam duas), com pequenas diferenças de votação, e a luta autárquica nesses casos é muito condicionada por conjunturas locais. Mas as análises mais macro também se fazem — e uma delas tem a ver com o Chega.
“São as primeiras eleições em que o Chega já tem uma base eleitoral mais consolidada”, além de uma estrutura mais profissionalizada, comenta-se no partido, prevendo-se que isso seja um fator de peso em várias autarquias e que condicione a formação de maiorias para votar ou chumbar propostas, mesmo que o partido não consiga dar já o salto mais significativo para a conquista de câmaras.
Além disso, há o risco da divisão de eleitorado. E neste ponto fontes tanto do PCP como dos outros partidos à esquerda, cujas votações também podem sofrer com o efeito Chega, admitem que o perigo está à espreita. “É um problema para todos”, admite-se à esquerda, ouvindo-se exemplos como Loures ou alguns locais no Alentejo onde há, por exemplo, uma maior presença de pessoas de etnia cigana, o que pode levar a maiores reações de apoio ao Chega.
As análises que se fazem no PCP sobre o ciclo que o partido atravessa, também a nível autárquico, tocam ainda o nível sociológico. Não falta quem lembre as mudanças na composição de eleitorado de várias zonas em que o PCP tinha ou tem influência, com “habitação de classe média e alta em locais onde não existia”. “É uma infelicidade para o distrito de Setúbal ser tornado em mais um bairro de Lisboa”, comenta uma fonte comunista, admitindo que “se houver vinte condomínios de luxo numa freguesia da CDU, isso entra nas contas”, mesmo que não funcione como uma explicação única para as perdas do PCP.
Dentro do PS, no distrito de Setúbal, também se aponta para os núcleos urbanos que passaram a ter acesso ao passe social — o que “massificou o acesso” a estes pontos — e que tinham, até há pouco tempo, o metro quadrado mais barato dentro da Área Metropolitana de Lisboa. “As pessoas foram sendo empurradas para aqui”, o que alterou a composição social destes pontos. E o que resulta também num quadro de freguesias “ultrapopulosas”, em locais como Palmela ou Sesimbra, que contam com uma abstenção relativamente alta cruzada com um número baixo de população mais velha.
Esses dois fatores — mais abstencionistas, que já saíram de casa em legislativas para votar Chega, e menos idosos, fatia importante da votação no PCP — levam a que quem está encarregue de fazer a análise das oportunidades e riscos para a esquerda em Setúbal se preocupe com os benefícios que o Chega pode colher (“ganharam em juntas de Sesimbra e Palmela, onde a abstenção era colossal” nas últimas legislativas, nota-se no PS — que costumava liderar nessas freguesias).
A “maratona” do PCP. “Tratam-nos como lunáticos”
No PCP, fazem-se contas à evolução do partido nas últimas provas autárquicas. Em 2017, já se registava o pior ano de sempre (em 2001 e 2009, anos em que tinha perdido autarquias, o partido, que chegou a governar mais de 50 municípios nos anos 1980, tinha conquistado 28 câmaras; depois de uma recuperação em 2013, em 2017 ficou-se pelas 24). Em 2021, o então líder Jerónimo de Sousa dizia que o partido teria “muito para avaliar”.
Neste momento, o quadro é de governação de 19 autarquias em seis distritos, com dez sem maioria (Évora, Setúbal, Seixal, Benavente, Alcácer do Sal, Grândola, Palmela, Santiago do Cacém, Sesimbra e Barrancos) e nove com maioria e votações menores ou quase iguais relativamente a 2017 (Sobral de Monte Agraço, Viana do Alentejo, Arraiolos, Cuba, Vidigueira, Serpa, Silves, Avis e Monforte).
Dentro e fora do partido, olha-se com pouca esperança para a tentativa de recuperar bastiões como Almada (perdeu por 413 votos em 2017, em 2021 a distância já era de 7200 votos), Barreiro ou Loures, todos perdidos para o PS. Mas no PCP promete-se resiliência. “Os comunistas sabem que a vida não é um fôlego, é uma maratona“, dispara uma fonte comunista.
Dentro do partido ouve-se, nas eleições autárquicas como em legislativas, muitas reclamações sobre o “terrível” contexto político que afeta os comunistas. “Desde a pandemia e a guerra na Ucrânia que o PCP é considerado pelos partidos e pela comunicação social um inimigo interno, de traidores, de putinistas”, queixa-se a mesma fonte, frisando que o partido acaba por ser “apagado” das contas mediáticas: “Tratam-nos como fora do sistema, como lunáticos. E isso no plano local pode não ter tanto peso como no plano nacional, mas também tem algum”.
A “avassaladora ofensiva” que alguns no PCP dizem ser “mais agressiva do que no PREC” resulta, para os comunistas, num efeito negativo que têm dificuldades em contrariar para chegar aos eleitores. Resta saber se em 2025 será preciso arranjar explicações para uma tendência de perda continuada ou se os comunistas conseguirão invertê-la.