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Baixista, letrista e produtor dos Heróis do Mar, Pedro Ayres Magalhães tinha 21 anos quando a banda começou
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Baixista, letrista e produtor dos Heróis do Mar, Pedro Ayres Magalhães tinha 21 anos quando a banda começou

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Baixista, letrista e produtor dos Heróis do Mar, Pedro Ayres Magalhães tinha 21 anos quando a banda começou

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Pedro Ayres Magalhães: "Pior do que dizerem que os Heróis do Mar eram fascistas, foi encararmos os limites do show business nacional"

Nasceu em 1981 a banda vanguardista e polémica que Pedro Ayres Magalhães ajudou a fundar. Em entrevista, o músico reavalia a história e a estética do grupo. Fala das saudades. E de política, claro.

O estouro deu-se logo com o álbum de estreia e com o maxi-single Amor, que é das mais vigorosas canções que a música ligeira portuguesa alguma vez concebeu. Escancararam-se as portas do êxito aos Heróis do Mar e aos poucos se inscreveram na história cinco rapazes de Lisboa que quiseram mudar o mundo através das canções. Eram eles António José de Almeida (bateria), Carlos Maria Trindade (sintetizadores), Paulo Pedro Gonçalves (guitarra), Pedro Ayres Magalhães (baixo) e Rui Pregal da Cunha (voz).

O disco Heróis do Mar foi editado em outubro de 1981 pela Polygram Portugal, com Tozé Brito como vice-presidente e diretor de artistas e reportório. Foi ele quem assinou o contrato com a banda. No catálogo da editora constavam nome que se tornariam históricos, como Carlos do Carmo, Tony de Matos, Linda de Suza, Doce, Paulo de Carvalho, Salada de Frutas, Mário Mata e tantos outros. O produtor do álbum foi António Avelar Pinho, que em 1973 tinha ajudado a fundar a Banda do Casaco.

Acontece que em agosto de 1981 já tinha saído o primeiro single dos Heróis do Mar, Saudade/Brava Dança dos Heróis, com o objetivo de chamar a atenção das rádios para o novo projeto. Esta data redonda, estes precisos 40 anos que agora se assinalam, serviram de mote para a entrevista que Pedro Ayres Magalhães deu ao Observador.

No jardim em frente ao Liceu Camões, em Lisboa, o baixista, letrista, produtor e ideólogo dos Heróis do Mar, hoje com 62 anos, reavivou memórias. Disse que a banda fazia canções como se fossem panfletos, que era funk e não new wave e tinha um “reportório simbólico” com “mensagem hermética”. “Éramos jovens, reconhecíamos o país numa situação dificílima e queríamos participar no renascimento do Portugal cozido por uma ditadura e por uma revolução feita à pressa”, resumiu.

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Depois do álbum homónimo de estreia seguiram-se mais três: Mãe (1983), Macau (1986) e Heróis do Mar IV (1988), além do mini-LP O Rapto (1984). Em 1983 foram eleitos pela revista britânica The Face como a melhor banda pop da Europa continental. Ainda hoje soam como pérolas os temas “Paixão”, “Só Gosto de Ti”, “Alegria”, “O Inventor”, “Fado” e “Amor” (maxi-single de 1982, não constava do primeiro álbum). A extinção deu-se em 1989, cada membro seguiu o seu caminho e a hipótese de um regresso foi sempre adiada.

Acontece que os Heróis do Mar não foram apenas um dos conjuntos pop mais vanguardistas que o país conheceu depois do 25 de Abril de 1974. Foram também o mais polémico. Poucas semanas depois do primeiro longa-duração, tiveram direito a primeira página no famoso semanário Se7e. Mas a manchete era assassina: “Heróis do Mar: uma banda fascista?”. Foi a 11 de novembro de 1981.

Escreveu o jornalista António Duarte no Se7e: “A dúvida surge, pela primeira vez, com o canto e a estética dos Heróis do Mar, um grupo novo de gente conhecida que parece ter saído dos livros de feitos da Legião Portuguesa, ou das cartilhas de bem fazer da Mocidade Portuguesa”.

O visual militar da banda, os estandartes e as bandeiras, as letras sobre a saudade e outras alusões à portugalidade pareciam insuportáveis a algum pensamento de esquerda num país que vivera sob uma ditadura de direita por quase 50 anos, segundo Ayres Magalhães. O músico está retirado, não toca ao vivo desde há seis anos. Mas tem saudades.

O grupo durou oito anos e publicou quatro álbuns

ARQUIVO PESSOAL DE RUI PREGAL DA CUNHA

Ficaria desiludido se os Heróis do Mar não tivessem hoje tanto destaque na história da música portuguesa?
Porque é que diz que têm destaque?

Discorda?
Já viu alguma história com os Heróis do Mar lá dentro? Nunca vi. Nunca vi um trabalho sobre os Heróis do Mar, exceto os que eu fiz.

É uma banda reconhecida pelo público, há músicos atuais que a têm como referência.
O que quero dizer é que a História não pode ser escrita por mim. Fiz os discos dos Heróis do Mar a contar uma história e depois fiz a antologia, chamámos-lhe a caixa. Nos 30 anos da banda, a editora publicou uma caixa com todos os discos e ajudei a fazer aquilo, o Jorge Pires também fez um texto. Ficou porreiro. Mas é a história contada por nós. Já não há esse disco, esgotou-se, eram poucos. Essa questão de ficar na História… Acho que ainda estamos na história da rua, dos vivos, das pessoas que falam, é a história oral. É nessa que estamos e essa não é bem a História, é apenas o mundo em que vivemos. O mundo em que vivemos é o mundo oral, não é o escrito. E nesse sentido está certo que os Heróis do Mar ainda sejam lembrados, que as músicas passem nas rádios.

Teme que possam não ficar na História escrita?
Morro daqui a uns tempos, não me interessa nada o que vem a seguir.

[Paixão em 1983 na RTP:]

Que relação tem com os Heróis do Mar?
Adorei, tive muita sorte em conhecer os outros músicos, principalmente os mais velhos, o Tozé, o Paulo e o Carlos Maria. Foram coincidências da vida. Não eram pessoas que tivessem andado comigo no liceu, conheci-os na música.

Na noite?
Não. Através da música. Eles eram mais avançados do que eu, sabiam umas coisas, eu sabia outras. O Carlos Maria era um músico contemporâneo, bolseiro da Gulbenkian, tinha estado em Inglaterra, era um desertor. O Paulo Gonçalves  tinha nascido no Canadá, portanto tinha uma forte cultura americana pop, que conhecia pela televisão desde criança e dos concertos, do Elvis aos Beatles, do Bill Haley ao James Brown. Era uma mesa muito forte, muito cheia de cultura pop, de preocupações políticas e de experiências relacionadas ainda com o movimento hippie, tudo isso. Era um prazer falar com eles e gerir o reportório dos Heróis do Mar como se fosse um panfleto. É o que aquilo era: um panfleto.

Mesmo nos últimos anos da banda?
Não tanto, mas a “Africana” [1989, com participação de Waldemar Bastos], do último álbum, também é um panfleto. Mas o quarto álbum já não tem essa dimensão.

Panfleto em que sentido?
Não existia, nós é que víamos a música como panfletos iguais aos dos partidos políticos ou dos movimentos religiosos. Andavam todos a distribuir panfletos, era uma coisa fortíssima na época.

"Tentámos sempre que o som fosse original, um som de grupo. Essa era uma prerrogativa da nossa mentalidade: as bandas terem de fazer um som que pertence a todos e àquele momento. A música não era escrita por um arranjador externo, éramos nós que combinávamos."

O nacional-cançonetismo também tinha sido um panfleto à sua maneira ou não?
Não, não. O nosso reportório é simbólico e encerra uma mensagem hermética. É um reportório que é preciso abrir, para as pessoas depois interpretarem como entenderem. Há ali relações entre canções e períodos, pequenas frases que escrevíamos nos discos. É preciso lembrar que naquela época, e até ao início dos anos 90, só havia dois canais de televisão em Portugal. Não havia apoio nenhum à música, com que hoje os músicos crescem, e já não é muito. Naquela altura não havia apoio nenhum, a música era completamente independente, sem patrocínios, sem produtores, sem nada. A iniciativa era de uns miúdos que moravam ali naquela casa. Por isso é que digo panfleto. Com muito esforço lá se conseguia chegar à editora, dizíamos que tínhamos a fita pronta, davam-nos três dias de estúdio para acharmos um álbum. Já naquela altura era impensável, mas estávamos em Lisboa e em Lisboa só aconteciam coisas impensáveis e continuam a acontecer. Encontrávamo-nos com os músicos ligeiros nos corredores da editora que então tínhamos. Mas isso não fazia de nós músicos ligeiros. É esse o problema em Lisboa. Lá por estarmos no corredor a cumprimentar o Paulo de Carvalho ou o Clemente ou as Doce, não significa que fizéssemos parte do movimento da Polygram ou da família Polygram ou coisa nenhuma. Numa altura em que o país era muito politizado e ainda mais fraturado do que hoje, queríamos furar, mas sem ser um grupo a imitar os ingleses, como havia muitos. Não queríamos um grupo de blues.

O movimento era a new wave?
Não. A nossa primeira relação com o público era de 1978, com Os Faíscas.

Aí era o punk.
Não era bem o punk. O punk é a filosofia “faz tu mesmo” e grita e provoca. Mas não tínhamos cristas no cabelo, não andávamos todos cheios de cola e tinta. O nosso mundo era fazer outra coisa, mas inspirados pelo movimento punk, sim, porque gostávamos dos Stranglers, dos Clash, dos Pistols, que tinham discos giros. O punk estava associado ao reggae. Era também aquela descoberta do Bob Marley, da alegria do reggae. Com os Heróis tentámos sempre que o som fosse original, um som de grupo. Essa era uma prerrogativa da nossa mentalidade: as bandas terem de fazer um som que pertence a todos e àquele momento. A música não era escrita por um arranjador externo, éramos nós que combinávamos: “Tu vais fazer assim e se fizeres assim eu faço isto, porque ele quer fazer aquilo.” Discutíamos as partes como se fosse num banquete. Muita paciência, muitas horas de ensaio. Para o primeiro álbum estivemos quase um ano a ensaiar e são oito músicas. Mas muito conceptuais.

Nesse processo criativo alguém aparecia com uma ideia…
Um de nós vinha com uma melodia ou com uma malha de baixo ou de guitarra, com um beat. E a partir daí fazíamos uma canção.

Foi sempre assim?
Não foi sempre assim. O “Amor” foi assim, o “Mãe” foi assim, o “Paixão” foi assim. O “Rapto” foi assim. A certa altura apareceu uma coisa muito chata, que é a caixa de ritmos, uma espécie de metrónomo, falso metrónomo. Os músicos ensaiam com metrónomo, que não se ouve quando estão todos a tocar. Não havia metrónomos eletrónicos. A certa altura apareceram no mercado português as caixas de ritmos, por volta de 82. Em vez de o baterista estar a ensaiar e a fazer a barulheira toda, punha-se a caixa de ritmos. Pessoalmente era um bocado contra isso, achava que a música, mesmo nos ensaios, devia ser um prazer. O tempo, para os músicos, defende-se. Com a caixa de ritmos não se está a tentar defender o tempo. É preciso estarem todos a defender o tempo para não o perderem. Chama-se pulso.

Ensaiavam onde?
No estúdio dos Tantra, um barracão com teto de amianto na Buraca, ao pé do Calhariz de Benfica. Já os Faíscas tinham ensaiado lá. Emprestavam-nos o equipamento porque éramos conhecidos deles, foram grandes amigos. O Américo Luís, o Manuel Cardoso e o Tozé. Eles tinham um sintetizador, que ninguém tinha, aquilo tudo custava uma fortuna.

[“Só Gosto de Ti”, na RTP:]

Disse em 1984 numa entrevista ao Se7e: “Estamos empenhados na moda, na roupa, para descomplexar a miséria de costumes deste país. Se saíres à rua com uma camisola amarela cheia de buracos, gozam contigo e dizem-te coisas feias. A nossa luta é também pela liberdade de sermos o que quisermos”. Ainda faz sentido ou está datado?
Ainda faz muito sentido em Portugal. Naquela época não havia tribos em Portugal, não tinha chegado aos jovens a ideia de que as pessoas se comunicam pela roupa, pelo corte de cabelo, pelas botas, pelas Doc Martens, pelas correntes ou pela camisola amarela assim ou assado. Essa cultura não existia cá. Códigos, padrões sociais tribais. Quem vir com atenção a história editorial dos Heróis, que foi o que ficou, vai descobrir que cada disco era como uma peça de teatro, mudando de época. Não só a parte literária do disco mudava, como também a imagem do grupo, que apontava para a peça de teatro em que a gente se encontrava. Éramos cavaleiros, marinheiros, pescadores. Era tudo uma representação.

Que não foi bem vista.
Quase ninguém aceitou a teatralização do grupo porque era bem feita e julgavam que éramos nós. Confundiam as personagens que criávamos connosco próprios. Viam-nos com fardas futuristas, julgavam que éramos militaristas. Isso foi muito chato. Mas queríamos fazer esse combate no palco. Fora do palco, não éramos obrigados a estar na peça dos Heróis do Mar. Há muitos artistas que, quando criam uma personagem para o palco, depois não conseguem mudar, andam na rua com a mesma roupa e não conseguem separar as coisas. Irrita-me a própria palavra “artista”, já na altura irritava. O que nós éramos era ativistas. Uns ativistas de nível superior, ou seja, não íamos convencer pessoa a pessoa, com três horas de discurso para lhes fazer uma lavagem ao cérebro e as convencer das nossas ideias, como ainda hoje muita gente faz. Achávamos que os comícios não funcionavam. Não se lia muito, não se lia antropologia, sociologia, era esse o mundo que nos interessava. Éramos jovens, reconhecíamos o país numa situação dificílima e queríamos participar no renascimento do Portugal cozido por uma ditadura e por uma revolução feita à pressa, com nacionalizações e uma fratura social total. Estão sempre a dizer que só morreram quatro pessoas [quando agentes da PIDE dispararam sobre a população que se concentrava na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, a 25 de abril de 1974]. Ainda agora disseram isso quando foi da morte do Otelo. Quer dizer, morreram quatro pessoas, mas o tecido social do país também rebentou. Não venham dizer que era tudo uma miséria, muita gente viva à sua maneira e de repente ficou sem nada, só tinham os políticos na televisão a dizer que a coisa ia melhorar. Éramos ativistas. “Nem música há, nem discos há, nem estúdios, nem instrumentos. Nem que mortos, vamos acabar com isto. Vai haver bandas, concertos, os rapazes e as raparigas vão-se encontrar.”

Isso era também um “faça você mesmo” à moda punk?
Era o “faça você mesmo” para fugir aos partidos, para não participar nos erros dos outros, antimilitarista, pacifista e intelectual.

"Irrita-me a própria palavra artista, já na altura irritava. O que nós éramos, era ativistas. Uns ativistas de nível superior, ou seja, não íamos convencer pessoa a pessoa, com três horas de discurso para lhes fazer uma lavagem ao cérebro e as convencer das nossas ideias, como ainda hoje muita gente faz."

São valores que mantém?
Na altura era isso, já não sei se mantive tudo. Alguns desses valores continuaram a nortear a minha vida. Estamos a falar de 78 a 88, mas só deixei de fazer discos em 2015. Portanto, o panfleto era imaterial, era o disco ou a canção a tocar na rádio, o que também era difícil.

Não houve uma altura em que a popularidade era tanta que as rádios adotaram os Heróis?
Isso foi com o “Amor”, mas depois não continuou porque não havia indústria musical. Aliás, o “Amor” passava mais nas discotecas do que na rádio e se calhar hoje os Heróis do Mar passam mais vezes na rádio do que naquela altura.

Mas isso não é a prova de que a banda está inscrita na história da música portuguesa?
Está bem, mas a minha história… Fui eu que fiz aquilo, que produzi os discos, mas depois a minha história continuou. Não sei se alguém se vai interessar pela minha história, porque não apostei no culto da personalidade. Desapareci nos bastidores sempre, embora estivesse no palco. Criei grupos, apoiei grupos, diligenciei para que grupos não se autodestruíssem perante tantas ameaças. É muito difícil ter um grupo e gravar um disco todos os anos.

Quais são as principais ameaças?
A principal é não haver indústria. Não há. Por isso é que não podemos exigir às rádios, que trabalham à sua maneira, que passem os discos. Não há programas onde se faça a divulgação de obras novas, não há programas de televisão em que filmem concertos ou falem com os artistas. A minha vida, como autor, compositor, performer, fi-la mais através da minha palavra, junto dos jornalistas, aqui e no resto do mundo. Fiz muita imprensa, dei muitas entrevistas.

A relação dos Heróis com a imprensa foi difícil no início?
Foi chato termos apanhado o Se7e a deitar-nos abaixo.

Em 1984, três anos depois da primeira pagina do Se7e que sugeria que os Heróis do Mar eram fascistas, o Pedro disse que o jornal afetou o início da carreira da banda porque “colaborou na alienação das pessoas em relação ao trabalho” do grupo.
Foi esse jornal e três ou quatro tipos da rádio, que não leram as nossas explicações. Insistiram em criar… Hoje o nosso país é popularmente de esquerda e já nessa altura era. De maneira que alguns quiseram empurrar-nos para lá do povo, para lá da malta, e disseram que não éramos uns dos deles. Foi ostracismo e desqualificação. Mas, enfim, o poder é o poder.

Como é que interpreta essa tentativa de ostracizar a banda?
Porque as pessoas em Portugal não têm direito ao bom nome, a um julgamento justo, a uma burocracia rápida. Acho que até nos safámos heroicamente, se não me leva a mal. A nossa reação não foi ir para casa chorar, foi ir para a imprensa explicar a toda a gente que nos quisesse ouvir, de norte a sul, o que eram os Heróis do Mar e porque é que não éramos fascistas. Pelo contrário, éramos progressistas, libertários, ativistas. Depois dessa primeira página [novembro de 1981] apresentámo-nos no Rock Rendez-Vous [antiga sala de concertos no Bairro de Santos, em Lisboa] e em março de 82 estávamos a tocar em Leiria num concurso de rock, como banda convidada, e aparecem lá uns repórteres franceses da revista Actuel que andavam a fazer um survey sobre o fenómeno rock na Europa, por oposição ao rock anglo-saxónico. Foi isso que nos levou a tocar em Paris, no Rex Club. Quando voltámos, recebemos uma placa da Casa da Imprensa. Fiquei de boca aberta. Era o “obrigado” dos jornalistas portugueses por termos saído na Actuel e não sei quê. Ou seja, com esta palmadinha nas costas, pensei que o assunto dos fascistas estava arrumado. Só que isso não é a vida. Subterraneamente, o assunto continuou, como maledicência. Continuou até hoje. Comigo, foi até eu arrumar as botas. Também se dizia que os Madredeus eram de direita. Toda a minha vida tive esse fantasma a pairar.

"O Governo é muito fraco, muito fraco. Não gosto do que dizem, de como se apresentam, da soberba com que se dirigem aos portugueses. São pessoas de má índole, que não se responsabilizam por nada. Por isso que somos o país mais pobre da Europa ou um dos mais pobres. Se acham que isto é ser de esquerda ou de direita ou do centro, é isso que sou."

É de direita?
Não sou de direita, sou um patriota. Não sou de partidos. Não tenho um pensamento que não seja o da nobreza de carácter, as boas qualidades, a procura da bondade. Sou católico, mas não sei sabe que em Lisboa ser católico já é ser de direita. É um atraso de vida. A história da minha vida está toda explicada, dei milhares de entrevistas, está tudo explicado nas canções e nos discos. Ninguém leu, muito menos os detratores.

Prefere valores a ideologias políticas?
Sou um ativista dos direitos humanos, se quisermos dizer assim. Estou a favor de tudo o que é civilizado, mas não sou nem do PCP, nem do PSD, nem dos CDS. Não sou, nunca fui. Fui do PPM, do ponto de vista poético-patriótico, num tempo em que o PPM tinha o professor Barrilaro Ruas e o arquiteto Ribeiro Teles. Sentávamo-nos à mesa a jantar com eles e aprendíamos imenso. Também estive na lista do PPM porque apoiei o Miguel Esteves Cardoso numa campanha eleitoral, quando ele se candidatou ao Parlamento Europeu [1989]. Foi a minha única ligação a partidos.

Vota?
Voto, claro, só que o voto é secreto. E voto contra, se quer saber. Normalmente voto contra o PPD e o PS.

Contra os que têm sido Governo.
Porque o Governo é muito fraco, muito fraco. Não gosto do que dizem, de como se apresentam, da soberba com que se dirigem aos portugueses. São pessoas de má índole, que não se responsabilizam por nada. Por isso é que somos o país mais pobre da Europa ou um dos mais pobres. É isto que penso. Se acham que isto é ser de esquerda ou de direita ou do centro, é isso que sou. Nesse sentido, os Heróis do Mar são um exemplo do grupo, do debate interno, da unidade, de que o todo que é maior que a soma das partes, de que vale a pena a união entre as pessoas, o serem honestas, viajarem, darem, não pensarem em dinheiro. Estão ali muitas virtudes nos Heróis do Mar. Não fomos um produto comercial de seis meses.

O mentor era o Pedro?
Este era o meu programa e os Heróis foram o sítio onde me deixaram pensar assim. Mas não era o programa dos outros, nunca foi, de ninguém. O meu programa nunca foi o programa de mais ninguém.

Isso também levou a que a banda acabasse?
Sim. Mas houve outras razões. Primeiro, saiu o Tozé, baterista, grande baterista. Ele era o mais velho, chamávamos-lhe chefe.

Mas o chefe era o Pedro.
Eu não era chefe, era o serviço em pessoa. Aliás, toda a vida fui.

“Serviço” no sentido aristocrático do termo?
No sentido inicial da palavra. Queria servir o grupo, a cidade e o país. Servir o mundo. Mas os outros ora queriam, ora não queriam. Eu tinha isto como profissão de vida.

Quis ter uma banda desde criança

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Pedro Ayres Ferreira de Almeida Gonçalves Magalhães nasceu a 31 de julho de 1959 numa família da classe média de Lisboa. “Ayres” terá origem no Brasil, o músico herdou a versão já com “i”, mas até tarde julgou que seria com “y” e sempre assim escreveu. Estudou no Colégio Militar e logo após a Revolução passou para o Liceu D. Leonor, onde pela primeira vez havia turmas mistas, de rapazes e raparigas. Aprendeu música até 1979 na Academia dos Amadores de Música e fez alguns anos de psicologia na Universidade de Lisboa, mas não chegou a terminar.

Foi o primeiro filho de um oficial do exército e de uma enfermeira, que tiveram mais duas filhas. O pai tocava guitarra, a mãe tocava piano e ele sonhava desde criança com uma banda. Vivia fascinado com as orquestras e conjuntos que ouvia ao vivo em Luanda e Nova Lisboa (atual Huambo), quando visitava o pai, que prestava serviço em Angola.

No fim da adolescência juntou-se a Paulo Gonçalves para formar Os Faíscas, banda pioneira do punk português. Depois com Carlos Maria Trindade fez em 1979 o Corpo Diplomático, grupo já próximo da new wave. A seguir aos Heróis do Mar fundou os Madredeus, em 1985, e deu continuidade ao projeto até 2015, envolvendo-se também na criação dos Resistência, grupo com elementos de diversas bandas cujo álbum Palavras ao Vento marcou a primeira metade da década de 90.

Nos Madredeus manteve essas intenções?
Sim, sim. Aí então… As pessoas que estavam comigo nos grupos sabiam, pelas muitas conversas que tínhamos, o que é que eu pensava e esperava. Muitas vezes, estivemos em desacordo, mas o subtexto da minha ação na vida foi sempre servir Portugal.

Resultou?
Acho que resultou a 100%. Resultou, aliás, como nunca ninguém conseguiu. Sem apoios, fiz uma campanha mundial durante 15 anos a favor de Portugal. Não andei com canhões, fui convidado.

Está a falar das digressões mundiais dos Madredeus?
Das digressões, das edições, das traduções. Esse modo independente do proceder, que começou nos anos 70, prosseguiu nos Heróis e nos Madredeus, que começaram em 1985, tudo sem recursos. O meu trabalho não foram as minhas intenções, fui capaz de tocar o meu baixo com o Tozé Almeida e o Paulo Gonçalves. Com os Madredues, passei para a guitarra, lá fui aprendendo e evoluindo, tocando cada vez melhor, os discos cada vez melhores, as salas cada vez maiores, os cachets cada vez mais altos. Foi uma maravilha.

O que o movia era arte ou o ativismo?
A mensagem e o prazer que tenho a tocar.

Porque é que se retirou em 2015?
E os Madredeus, aqueles Madredeus, acabaram em 2006.

Depois fez outros Madredeus.
Fiz outros, até 2015. Desde então não atuo. O último disco foi o Capricho Sentimental, que saiu pela Sony no Natal de 2015. Não houve promoção, não houve discos, nada. Tive de pagar do meu bolso. Acabei com os Madredeus porque me estava a sair muito caro.

"Os Heróis do Mar, para quem não sabe, eram uma banda funk", confessa Pedro Ayres Magalhães

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Porque é que deixou de tocar ao vivo?
Agora toco em casa. Guitarra. Toco como quem faz ginástica todos os dias. Isso de explicar porque é que parei ou porque alguém parou não tem interesse, o que tem interesse é o que conseguimos fazer desde a juventude até à idade adulta. O que fica é a forma bondosa como vivemos, a fazer uma coisa boa e a distribuir novidade no mundo. Foi essa a minha sorte e depois tive de acabar porque se acabaram as minhas forças. E está bem assim.

Há mágoa?
Zero mágoa, só tenho é alegria. Tenho saudades de tocar, isso é diferente. Saudades do lado balsâmico e energético de tocar um espetáculo como o Espírito da Paz [álbum de 1994 dos Madredeus]. Fizemos mil concertos destes, com um silêncio solene nas salas, as notas ouviam-se todas.

Acha que há mais liberdade criativa e de expressão do que quando os Heróis do Mar apareceram?
Há. Quer dizer, não há mais liberdade, há menos coisas em jogo. A liberdade pode ser exercida do ponto de vista artístico porque, como já toda a gente disse, houve uma democratização dos meios de produção, deixou de haver dependência de terceiros. Hoje juntam-se dois putos a um canto, um canta e o outro toca, fazem uma gravação que vai diretamente para a net, as pessoas gostam e aparecem patrocínios. Em 1981, queríamos palco e público, não havia nada. Quem nos via não percebia “puto” do que estava a ver, andavam à frente do palco com umas imperiais na mão. Havia era muito mais juventude do que agora, não há comparação, mas era rapazes para um lado e raparigas para o outro, tudo com blusões de napa, muita heroína, muita gente a “drunfar”, coisas do arco da velha. Aquilo era aflitivo. É igual a hoje, só que o país era mais pobre. Mas também hoje o dinheiro não é dos portugueses, é emprestado. Saíamos de Lisboa para dar concertos ao fim de semana e eu ia com uma enorme vontade de conhecer Portugal. Gostava de passear pelas aldeias e pelas feiras. Isto no início. O grupo foi crescendo, tornou-se muito popular, mas depois a situação foi sempre igual e igual. Pelávamo-nos para conseguir um concerto em França ou Espanha, para ver se tínhamos bom som, para as pessoas perceberem o que era um grupo elétrico. Pior do que dizerem que os Heróis do Mar eram fascistas e de isso nunca mais nos ter abandonado, como se vê por esta conversa, foi encararmos os limites do show business nacional. Depois estávamos comprometidos com o grupo, já não tínhamos outro emprego, queríamos continuar. Mas os sítios não tinham condições nenhumas, o que era frustrante.

Faziam playback?
Em algumas discotecas, sim. Mas noutras até conseguíamos tocar a sério, porque eram sítios pequenos, com equipamento razoável e aquilo soava a funk, como nós queríamos. Os Heróis do Mar, para quem não sabe, eram uma banda funk.

Então não eram new wave?
Não. Somos do tempo da new wave. O que queríamos fazer era uma espécie de rock afro-funk, até progressismo há ali, um bocado de rock sinfónico.

A história que conta parece idêntica à do António Variações: hoje é consagrado, mas a curta carreira que teve foi muito sofrida, com dificuldades para gravar o primeiro disco e depois com a incompreensão de algum público.
Não, não. O Variações teve uma carreira muito pior porque nunca teve uma banda. Chegámos a pensar tocar com ele ao vivo o último álbum, quando ele desapareceu do estúdio com tosse e morreu uns dias depois.

O Dar & Receber [1984] tem um texto seu na contracapa.
Porque fui eu que produzi o disco, fui eu que tive a ideia de fazer aquele disco, com aquelas pessoas, com o Paulino Vieira, etc. Nós éramos uma superbanda. Fica-me mal dizer isto, mas é verdade. O Variações não, teve umas bandolas horríveis.

Ele gostou de gravar convosco?
Ele estava louco com o estúdio, com as condições, com os arranjos, com a fantasia, com a plasticidade. As músicas dele eram como se vê no filme [“Variações”, de João Maia, 2019]: ele cantava lá no quarto e gravava em cassetes, à capela. E eu depois no estúdio a tentar enquadrar aquilo, a fazer o acompanhamento. O Variações teve muito mais azar do que nós, só que era muito mais popular. Há pessoas assim. A morte dele foi um grande desgosto, fui-lhe levar o disco ao leito de morte, à cama do hospital. Horrível.

[teledisco de “Amor”:]

É verdade que no fim dos anos 70 Os Faíscas fizeram uma audição para encontrar um vocalista para a banda seguinte, Corpo Diplomático, e um dos rejeitados foi o António Variações?
É verdade. Ele não sabia música nem tempo, impossível. Encontrar um cantor com um mínimo de cultura musical na Lisboa de 1979 era quase impossível. Se ficássemos aqui a falar mais uns dias, ficava de boca aberta com o mundo em que apareceu a ilha chamada Heróis do Mar.

Numa entrevista recente ao Blitz perguntaram o Rui Pregal da Cunha se houve muito sexo, drogas e rock’n’roll nos Heróis do Mar. Ele respondeu: “Quanto ao sexo, não sei.” Subscreve?
Não sei, mas a minha vida amorosa foi fantástica.

Havia drogas e rock’n’roll?
Não vou responder. Quer dizer, posso dizer assim: sempre fui apologista do banquete e acontecem coisas nos banquetes. Sempre mandei marcar jantares para depois dos concertos. Quem queria, ia, com mesa posta para cear e descontrair. Músicos, técnicos, tudo ao molho. Havia sobretudo álcool, mas isso é escusado dizer porque não era uma vida devassa.

Tem saudades?
Muitas. Escrevi muitas canções sobre a saudade e até criei um grupo sobre a saudade, que são os Madredeus, porque acho que a saudade é um grande contributo português para a saúde mental no mundo. A maneira como vivemos a saudade deixa-nos ter presente tudo o que é ausente. Na poesia portuguesa é possível viver a vida toda com a vida que já se viveu, com as alegrias e os desgostos. Recordo a minha vida com uma alegria fantástica.

Artigo corrigido a 15 de Agosto com a indicação de que o tema Amor não faz parte do álbum de estreia dos Heróis do Mar.

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