Com uma reunião sobre o Orçamento marcada para logo depois do debate quinzenal, Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos fizeram um aquecimento ainda dentro do hemiciclo. Antes da porta da sala do encontro a dois se fechar e quando ainda estavam sob os olhares públicos, aproveitaram para tentar colar as respetivas narrativas: negar qualquer culpa numa eventual crise política, antecipar que a outra parte deseja eleições e evitar a imagem do radical na sala das negociações. E, claro, para pressionar o outro lado, o que acabou numa inusitada troca de papéis, com Pedro Nuno Santos a autoproclamar-se centrista e Montenegro a chamar-lhe troikista.
Sacudir culpas por uma eventual crise
É ponto assente entre todos que ficar com a responsabilidade de provocar mais uma crise política nas mãos pode deixar marcas profundas no terreno eleitoral, por isso neste debate essa foi uma carta que todos quiseram passar ao próximo. A começar pelo primeiro-ministro, que entrou a garantir que o seu Governo está a fazer “uma mudança estrutural no país” que quer continuar, atirando para o PS a responsabilidade de encurtar esse caminho. Garantiu que o “Governo nunca quis nem quer eleições antecipadas” e que se elas “vierem a acontecer, os portugueses perceberão quem se escondeu” com o “fito de provocar eleições”.
Mas do lado do PS Pedro Nuno Santos sacode essa responsabilidade de cima dos seus ombros, e não só tentou afastar-se da imagem de “radical” (ver mais abaixo neste texto), como sugeriu que os “taticismos” têm estado do lado do Governo nesta negociação. Garantiu que está “disponível para viabilizar” o Orçamento, mas sem deixar cair as suas duas condições, e voltou a dizer que há uma alternativa ao PS, que passa pelo Chega.
Já André Ventura assegurou que “o Chega não pretende eleições, nem o país as quer”. Mas se isso acontecer, para Ventura, há dois responsáveis: Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro. Do seu lado, garante que “desde o dia 10 de março” teve a “preocupação com o consenso” ao desafiar Montenegro para “uma maioria política” que “o primeiro-ministro recusou”: “Preferiu negociar com o PS do que ter um orçamento de transformação”.
Com o debate a avançar, entre os dois players principais nesta altura do campeonato – Montenegro e Pedro Nuno – o clima acabou mesmo por aquecer. Apesar das muitas promessas de que iria ao encontro do PS com a “proposta irrecusável” que vem prometendo nos últimos dias, e fazendo sempre questão de lembrar que genericamente está de acordo com o os socialistas na necessidade de descer impostos, o primeiro-ministro foi antecipando repetidamente que os indícios para a reunião desta tarde são “maus” e que o PS “já sabe” a decisão que vai tomar.
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Para isso, prosseguiu Montenegro, mais valia que os socialistas tivessem alinhado imediatamente com as moções de rejeição ao programa de Governo que a restante esquerda apresentou – o primeiro-ministro chegou, na reta final do debate, a garantir que Pedro Nuno terá dito, de microfone desligado, que foi efetivamente “um erro” não o fazer; o líder do PS não desmentiu, mas frisou que nunca “deu OK” ao programa dos sociais democratas. Mais: o PSD acabou a referir, pelas vozes de Hugo Soares e Luís Montenegro, que se o país for a votos é previsível que os sociais democratas ainda saiam beneficiados com isso.
Ora Pedro Nuno Santos não gostou da pressão e saiu do plenário disparado e a deixar, como diria Montenegro, um mau indício para a reunião: aos jornalistas, acusou o primeiro-ministro de exibir uma “arrogância e sobranceria inaceitáveis”, de ter tido uma postura também “inaceitável” ao longo de todo o debate e de ter falado num tom próprio de quem não quer acordo. O ambiente ficava, a minutos do arranque do encontro entre os dois, ainda mais pesado.
Evitar imagem do radical na sala
É o outro papel que ninguém quer ter colado a si, até porque qualquer ideia de intransigência negocial leva à culpa pela crise. O debate mostrou que este é um ponto mais sensível para Pedro Nuno Santos que fez tudo para desfazer essa ideia chegando mesmo a declarar-se o “centrista” na sala. E isto para explicar a sua oposição ao IRS Jovem proposto pelo Governo, que se apoiou no FMI depois de a instituição ter considerado a medida “eficaz” para os objetivos pretendidos de reter e atrair jovens. Prometeu fazer “tudo ao seu alcance” para evitar a medida e disse mesmo que ser “radical” é insistir nela: “O centrista aqui sou eu, senhor primeiro-ministro.”
O apoio no FMI não foi desaproveitado por Montenegro, que lhe chamou “troikista”, sugerindo um saudosismo socialista desse tempo em que a troika, que incluía o FMI, esteve no país.
“Respeitamos o FMI, lemos os relatórios, mas não estamos aqui para cumprir as ideias ao FMI”, atirou Montenegro, e com esta afirmação tentou sacudir também o peso que essa memória ainda traz sobre o PSD, que governou com a troika no país. “Para cumprir programas do FMI já bastam os socialistas, porque são sempre eles que o chamam”, atirou ainda.
Ainda que o tom fosse provocador, Montenegro ia tentado amenizar o ambiente por outro lado, garantindo que era importante, “pelo interesse nacional”, ter um Orçamento aprovado. “O contexto internacional assim o impõe. O sentido de Estado assim o determina. Os portugueses não compreenderão cenário diferente”, afirmou numa tentativa de pressão.
As críticas do Chega e a provocação de Montenegro
André Ventura arrancou ao ataque contra o Governo, mas Luís Montenegro foi variando o tom nas respostas, enquanto encontrava pontos de aproximação e de divergência com o partido de André Ventura e respetivas bandeiras. Foi assim quando o líder do Chega disparou contra a comunidade cigana, falando do caso do triplo homicídio em Lisboa, prevendo que as ruas do país se podem transformar num “faroeste”: Montenegro admitiu que a criminalidade violenta está a aumentar e que os aumentos para as forças de segurança também visam resolver esse problema, mas recusou falar dos criminosos com base na sua etnia ou origem. Quanto aos incêndios, Ventura falou dos “terroristas” que provocam incêndios e que o Governo tem de “defender esta terra” e Montenegro concordou que este crime provoca “terror”, disse estar de acordo com a necessidade de ter um “dispositivo grande para combater incêndios” e garantiu querer “esgotar até ao fim as possibilidades de alguma associação criminosa.
Na imigração, se Ventura falou de uma “vaga de imigração” e de portas supostamente “escancaradas”, o primeiro-ministro corrigiu-o garantindo que houve “uma diminuição de 80% dos pedidos de residência” desde que este Governo acabou com a figura da manifestação de interesse – e aproveitou para deixar uma farpa contra o líder do Chega, acusando-o de “gostar de exacerbar preocupações”.
Ainda assim, o maior ponto de fricção terá acontecido quando a discussão foi parar ao Orçamento: Montenegro fez questão de ir buscar o historial das posições públicas que Ventura já ameaçou tomar para concluir: “De manhã não havia disponibilidade, à tarde havia meia disponibilidade e à noite havia disponibilidade total. Foram tantas que a única coisa que sei é que não sei o que o Chega pensa sobre o OE. Algum dia se irá perceber qual é a verdadeira intenção do Chega”. Num dia em que a conversa orçamental se fará entre Pedro Nuno e Montenegro, Ventura já não teve tempo para responder.