Discurso de Pedro Nuno Santos
Esse capítulo está prestes a ser encerrado. Agora, é a nossa vez de iniciar uma nova etapa. E é sobre nós que recai a enorme responsabilidade de escrever um novo capítulo no livro da governação do PS e do desenvolvimento do nosso país”
Com a defesa do legado de António Costa feito já na intervenção de sábado, Pedro Nuno Santos avançou quase diretamente para a sua nova era e não teve meias palavras em declarar — já o tinha feito naquele mesmo palco — que agora é a sua vez. A Costa concede o título de ter escrito “um capítulo inteiro, recheado de avanços” na “história da democracia”. Mas isso agora é passado.
Talvez por não termos vivido num tempo passado em que nada disto existia, possamos esquecer que a democracia e o Estado Social são as maiores construções coletivas que fomos capazes de erguer, e que as vejamos como conquistas irreversíveis. Mas não são. Nada o é. Os exemplos de movimentos antidemocráticos são visíveis em todo o mundo e já chegaram à Europa”
Pedro Nuno Santos é o primeiro líder do PS que nasceu depois do 25 de Abril e isso não é irrelevante para a mudança geracional que se coloca no PS. António Costa fez, aliás, questão de frisar isso mesmo no seu discurso de despedida, elencando datas históricas e a idade de Pedro Nuno, 46 anos, quando aconteceram (nasceu no ano em que Mário Soares e Medeiros Ferreira pediram a adesão à CEE e tornou-se maior de idade quando António Guterres formou o seu primeiro Governo). A ideia é frisar que Pedro Nuno tem presente todo o legado que essa história, assim como a memória de Abril, lhe trazem e que chega para lhes dar “continuidade”, ainda que prometa trazer consigo um “novo impulso”. O projeto de Pedro Nuno sempre foi, aliás, um projeto geracional, de uma camada socialista que cresceu consigo nas hostes da JS e que aderiu à visão (mais à esquerda) que atravessa o pedronunismo. O novo líder aproveita ainda para agitar mais uma vez o papão dos “movimentos antidemocráticos”, que em Portugal o PS assegura serem representados pelo Chega e até contaminarem o discurso da direita tradicional – essa antagonização será um eixo essencial da campanha socialista para as próximas eleições legislativas.
Temos nos questionar constantemente. O que faz de nós socialistas democráticos? Para onde aponta a nossa bússola moral? O que vem, afinal, antes de tudo o resto?”
A garantia da social-democracia tem ocupado boa parte do discurso de Pedro Nuno desde que avançou nesta corrida para a liderança e tem uma razão muito concreta: tentar contrariar a imagem de radicalismo de esquerda que lhe está associada desde que foi a cara mais visível e entusiasmada com a experiência da “geringonça”, mas que já vinha de uma longa história como o rosto da fileira mais esquerda do partido desde que liderou a JS (2004-2008). No Congresso apareceu, no entanto, a querer dizer mais qualquer coisa sobre o que é isso de ser social-democrata e para Pedro Nuno é seguir os “valores morais da empatia, da cooperação, da generosidade, do respeito mútuo, da reciprocidade nos laços que mantemos com os outros e com os seus problemas, com os problemas da comunidade”. O socialista acredita que estes são os valores que “ligam as nossas razões às nossas emoções” e que, por isso mesmo, “têm de ter tradução concreta”. Impossível não recordar que alguns destes valores, nomeadamente questões como a “empatia” e a capacidade de mostrar emoção foram muitas vezes apontados a António Costa. A proposta de Pedro Nuno parece ser diferente logo na forma de abordagem pessoal.
Para nós, os problemas resolvem-se mais através da cooperação do que da competição, e mais através da ideia de responsabilidade recíproca do que da meramente individual. É por isso que, para nós, os problemas dos outros são os nossos problemas, são os problemas de todos”
Este é um dos vértices essenciais do pensamento de Pedro Nuno Santos, que tem uma visão do país e do mundo ideologicamente vincada e aqui explicada passo por passo. A sua oposição às ideias liberais, que durante a campanha já tinha considerado tão radicais que um projeto que só incluísse PSD e IL, mesmo sem Chega, já seria “suficiente para nos preocupar”, é mais do que conhecida. Basta ler uma das bases desta teoria, o livro “A tirania do mérito” de Michael Sandel, para reconhecer em vários discursos de Pedro Nuno a ideia de que o culto da meritocracia em excesso é perverso e divide a sociedade, injustamente, em grupos de vencedores e perdedores. Já a visão do socialista assenta numa ideia de comunidade e entreajuda, como quis aqui frisar, rejeitando o foco na “competição” e falando nos “filhos” e “avós” dos outros, que todos os membros da comunidade – assim como, em última análise, o Estado social que daí resulta – devem cuidar.
O setor privado pode e deve investir onde bem entender, como em qualquer economia de mercado, mas o Estado tem a obrigação de fazer escolhas quanto aos setores e tecnologias a apoiar. Dir-me-ão que foi isso que se fez ao longo das últimas décadas, mas não é inteiramente verdade”
Nas últimas décadas foi o PS que esteve no poder a maior parte dos anos, pelo que a referência acaba também por apanhar os seus antecessores no cargo de líder, mas sobretudo aqueles que desempenharam funções governativas a quem aponta muito diretamente a “incapacidade de se dizer ‘não'”. Foi isso que “levou o Estado a apoiar, de forma indiscriminada, empresas, setores e tecnologias, independentemente do seu potencial de arrastamento da economia”, critica. Pedro Nuno quer agora maior “selectividade” nos apoios públicos, privilegiando as “competências empresariais, científicas e tecnológicas já existentes em Portugal” e para isso propõe um programa de desburocratização e simplificação, feito “em diálogo e com a participação das empresas portuguesas, que reduza de forma substancial os obstáculos ao investimento” — “sempre com transparência e no respeito pelo ambiente”. O assunto tem especial relevância quando o Governo caiu na sequência de uma investigação judicial, a Operação Influencer, onde há suspeita de a ação política ter cometido ilegalidades para agilizar um investimento — envolvendo precisamente questões ambientais”. Além disso também quer “um programa para a capitalização das empresas, que promova o acesso a formas alternativas e complementares ao financiamento bancário” e ainda um “programa de apoios à internacionalização, que seja mais do que um programa de apoio às exportações e que tenha a ambição de ter um maior número de empresas portuguesas internacionalizadas, isto é, com presença internacional”. Promete ainda envolver sociedade civil, “agentes económicos, a academia e o país”, na definição das áreas “estratégicas para desenvolver na próxima década”.
Quando formos governo, não vamos pôr tudo em causa. Nós não andamos a brincar às reformas; não mudamos por mudar”
A ideia tem sido repetida por Pedro Nuno Santos mesmo em relação a decisões do passado com que não concordou: nos últimos dias já disse que não fará nenhuma reversão das privatizações do tempo da troika (uma má notícia para a esquerda) e no programa disse que as leis laborais precisam sobretudo de estabilidade (idem). Além disso, o passado recente que poderia ter de “pôr em causa” seria de governação do PS. Por isso, prefere dizer que é preciso dar um “sinal” de resposta aos problemas, sendo que em vários casos essa resposta dará uma continuidade às medidas dos governos de António Costa. Desde logo, a proposta de aumento do salário mínimo para mil euros em 2028, continuando um trajeto que Costa lançou em 2015 – mas assegurando que vai associar esse aumento ao dos salários médios, uma vez que uma das críticas recorrentes ao PS é ter permitido que os salários mínimos e médios se aproximassem demasiado. Promete também que cumprirá a lei de atualizações para as pensões, numa faixa de eleitorado que o PS sabe que tem de conservar e que continua a olhar com desconfiança para a direita graças aos cortes dos tempos da troika, que os socialistas não se cansam de relembrar. A isto acrescenta uma novidade: rejeitando “desmantelar, privatizar ou plafonar” o sistema público de pensões, anuncia que quer lançar uma reforma das fontes de financiamento da segurança social, para que a sua sustentabilidade, eternamente discutida, fique assegurada sem depender só das contribuições do trabalho. Foi um dos momentos em que conseguiu levantar o congresso, com aplausos e gritos pelo PS, uma vez que o discurso representa uma novidade de fundo e uma arma de arremesso contra o PSD.
Nos setores da saúde e da educação, há mudanças estruturais em curso postas em prática pelo atual governo, que não desperdiçaremos“
A reforma do SNS é para “implementar e consolidar”, bem como o que se fez na Educação e na Habitação. Mas Pedro Nuno quer coisas concretas nestas áreas. Na Saúde promete valorizar a carreira médica e modernizar equipamentos e também criar um programa de saúde oral para ter esses cuidados no SNS, bem como uma carreira de medicina dentária no SNS. Na Educação quer aumentar os salários de entrada na carreira docente e não falou na questão da reposição integral do tempo de carreira congelado, continuando sem dizer como fará. Na habitação centrou-se no problema das rendas para dizer que quer o INE a definir um novo indexante de atualização das rendas que tenha em consideração a evolução dos salários.
Para a direita, decidir representa um pesadelo. Resulta, por um lado, do mantra que o mercado tudo resolve e, por outro lado, da sua inexperiência e impreparação governativa”
É um ponto crucial para o novo líder: às acusações constantes de ser precipitado e impulsivo, tenta responder fazendo dessas fraquezas uma força e assegurando que, ao contrário da direita, tem convicções e não teme tomar decisões. Ironicamente, uma das maiores provas que tem nesse sentido é também um dos seus pontos mais baixos no Governo: o despacho que aprovou com a localização do novo aeroporto de Lisboa, contornando António Costa, que o revogou em menos de 24 horas, obrigando Pedro Nuno Santos a fazer um mea culpa público. O PS não parece importar-se: ao criticar o PSD pela demora em decidir-se sobre o aeroporto (ou o TGV), recebeu aplausos de pé, provando que pelo menos entre socialistas essa cicatriz que admitiu carregar parece estar sarada. Falta saber se no país esta ideia de que a direita sofre de uma “impreparação governativa”, por oposição à experiência por vezes polémica de Pedro Nuno na governação, convence.
Estabilidade não é inércia, não é paralisia, não é indecisão. Estabilidade é, antes, a capacidade de uma nova liderança manter um rumo disciplinado e em coerência com o passado e com os nossos valores, sem surpresas e sem rupturas”
Há anos de imagem do jovem turco, radical e impulsivo para tentar reverter em muito pouco tempo e Pedro Nuno Santos tem procurado fazê-lo. Neste discurso de encerramento não faltou a referência a isso mesmo, tocando em poucas palavras em várias dessas fragilidades e desconfianças que pairam sobre a sua figura — afinal foi o ministro que decidiu uma localização do novo aeroporto de Lisboa sem o dizer ao primeiro-ministro. Garante que não tomar decisões é que garante a estabilidade, ao dizer que “a instabilidade não é indecisão” nem “inércia” e compromete-se a com um “rumo disciplinado”, para responder às críticas sobre a sua personalidade impulsiva. E também em não romper de forma radical com o passado recente, aquele que António Costa lhe deixa nas mãos.
Concretizando aqui e agora um Portugal Inteiro, que não se negoceia, nem se divide”
A acabar ficou no ar o chega para lá nas conversas sobre negociações pré ou pós eleitorais — e no dia antes do Congresso o Bloco de Esquerda colocou um desafio concreto em cima da mesa a Pedro Nuno Santos — tentando concentrar a palavra do partido nos próximos tempos na vitória do partido, dizendo que o país “não se negoceia ou divide”. Depois das eleições, logo se verá.