O Governo tem vendido a solução como um bónus “extraordinário“, de 50% da pensão, pago já em outubro para todos os pensionistas com atualizações de pensões — António Costa estima que sejam 99,9%. E tem por várias vezes frisado, nos últimos dois dias, que esse suplemento somado à atualização proposta para janeiro — mais limitada do que prevê a lei — dá, “estritamente”, o mesmo do que se nada se alterasse nas regras. Mas não é bem assim. Segundo cálculos do Observador, os pensionistas saem prejudicados nas pensões futuras com a nova solução e a perda pode ultrapassar os 260 euros, no caso das pensões de 500 euros, só num ano, em 2024, mas ultrapassar os 700 euros no caso de uma pensão de 1.500 euros.
Esta é a quinta vez que a lei da atualização das pensões não é aplicada para travar um aumento: aconteceu em 2011, 2012, 2013 e 2015. Já, pelo menos, em 2010, 2014 e 2021 não foi aplicada para evitar uma descida. Ainda que seja verdade que, somando o bónus de outubro com a atualização pensada agora para janeiro, o aumento para os pensionistas corresponde ao valor da atualização automática (aquela que seria paga se o Executivo não mexesse nas regras), nos anos seguintes, os pensionistas ficam a perder, se o Governo não tomar medidas então. É que a atualização de janeiro às pensões será, praticamente, metade do que define a lei, o que significa que quando forem calculados os aumentos para 2024 e adiante partirão sempre de uma base mais baixa do que partiriam se o Governo optasse por aplicar a lei.
O aumento das pensões não será, assim, tão “histórico” como António Costa tinha anunciado em junho. Essa era a perspetiva porque as pensões são atualizadas em janeiro, segundo a lei, com base numa fórmula que tem em conta o crescimento económico e a inflação. Consoante o escalão da pensão, a fórmula altera-se. As regras ditam que se a taxa de crescimento médio dos últimos dois anos for superior a 3%, como acontecerá este ano, as pensões iguais ou inferiores a 2 IAS (886,4 euros este ano) sobem no equivalente à soma da inflação sem habitação registada até novembro e 20% do crescimento médio do PIB. Já uma pensão entre esse valor e 6 IAS (2.659 euros) tem um aumento igual à inflação acrescida de 12,5% do crescimento do PIB; e acima desse valor e até 12 IAS (5.318 euros) cresce ao nível da inflação.
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Se essa regra fosse respeitada, o Governo estima que as pensões teriam, em janeiro de 2023, aumentos, respetivamente, de 8%, 7,65% e 7,10% — valores expressivos por influência da inflação, que tem batido recordes de 30 anos nos últimos meses. Foi essa influência que levou Costa a prever o tal aumento “histórico”. Na altura em que fez essas declarações, o Presidente da República calculou que aumentos nessa ordem significariam uma subida da despesa permanente de dois mil milhões de euros.
Mas o Governo vai limitar esses aumentos. Em janeiro, os pensionistas terão uma atualização mais limitada, que varia entre os 4,43% para pensões até 886 euros; 4,07% para pensões entre 886 euros e 2.659 euros; e 3,53% para as restantes pensões sujeitas a atualização (até 5.318,4 euros). Acima desse valor, não há atualização. Ou seja, esses aumentos são, praticamente, metade do que a regra da lei permitiria.
Além disso, são aumentos fixos, definitivos. E não passageiros, de um só mês, como o bónus de meia pensão que o Governo vai pagar já em outubro — e que corresponde, precisamente, a um extra equivalente a 50% das pensões. Essa é outra novidade: se uma pessoa recebe uma pensão de 600 euros, receberá, só em outubro, mais 300. O argumento do Governo é que esse extra, somado à atualização automática de janeiro, dará os tais aumentos entre 7,10% e 8% que a lei definiria só de aumento automático. E se isso é verdade para a soma do bónus de 2022 e a atualização de 2023, nos anos seguintes não. Porque a pensão base sobe menos em janeiro do próximo ano do que dita a lei.
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Vejamos o exemplo de uma pensão de 500 euros. Em outubro de 2022, receberá um bónus na pensão de 250 euros (nesse mês, receberá 750 euros). Em janeiro, com a nova regra, é abrangido por um aumento de 4,43%, o que dá uma pensão de 522,15 euros. Mas se o aumento fosse pela fórmula antiga, a pensão subiria, aí, 8% para 540 euros. Isso significa que, quando em 2024 for atualizada (partindo do pressuposto que a lei volta a ser aplicada), a pensão ficará nos 545,33 euros pelas novas regras, contra os 563,98 euros que resultariam da aplicação da lei em 2023. Ou seja, em 2024, o pensionista perde 261 euros. Já quem recebe atualmente 750 euros, fica a perder 391 euros em 2024, e quem recebe 1.500 euros perde 785 euros só naquele ano.
Estes cálculos têm em conta uma taxa de inflação projetada pela Comissão Europeia de 3,6% em 2023 e um crescimento da economia projetado de 6,5% em 2022 e de 1,9% em 2023 (a inflação que é tida em conta nos cálculos oficiais é a inflação sem habitação. Na falta dessas projeções, optámos pela inflação total que nos últimos meses tem variado pouco, apenas algumas décimas, da inflação sem habitação).
Se o Governo optar por dar alguma compensação em 2024, alterar a fórmula ou atribuir um aumento extraordinário o cenário será diferente. Para janeiro de 2023, já excluiu um aumento extraordinário, que tem sido atribuído às pensões mais baixas desde 2017. É a primeira vez desde esse ano que não vai acontecer.
Bónus é pago por pensão
Segundo o Governo, o bónus de meia pensão será pago em outubro, juntamente com a pensão normal, e vai chegar a 2,7 milhões de pensionistas. É pago por pensão (ao todo, são 3,3 milhões de pensões abrangidas) e não por pensionista. Ou seja, se um pensionista tem duas pensões, receberá bónus por cada uma. O bónus vai ser tributado em sede de IRS, mas não vai traduzir-se num agravamento do imposto a pagar. “Não haverá nenhuma penalização de retenção na fonte ou imposto por essa via”, revelou o ministro das Finanças, Fernando Medina.
Na conferência de imprensa desta terça-feira, a ministra da Segurança Social, além de fugir às questões sobre a perda para os pensionistas a partir de 2024 por via da limitação do mecanismo automático de atualização das pensões, foi repetindo que o bónus de outubro chega numa altura em que os pensionistas mais precisam, quando a inflação alta corta poder de compra. A argumentação é que, no próximo ano, a inflação não será tão expressiva quanto este ano pelo que, argumenta o Executivo, a verba é mais importante agora.
Mas Ana Mendes Godinho foi mais longe na argumentação e avançou mesmo que a atualização de janeiro das pensões, entre 3,53% e 4,43% “é a mais alta desde a entrada no euro“. “O valor de atualização mais alto foi em 2001 e 2002, de 3,5%, desde aí não voltámos a ter valores semelhantes, depois acabou por ser contrariada pelo aumento das pensões mais baixas” para ajudar a garantir aumentos mínimos de 10 euros.
No exemplo dado pelo Governo, um pensionista que receba 500 euros, “com a aplicação da fórmula prevista na lei das pensões teria, fruto dos pressupostos naturais da fórmula associada à evolução do IPC [índice de preços no consumidor] e crescimento da economia, um aumento anual de 8%”, ou seja teria um aumento anual de 560 euros. Assim, com a proposta do Governo vai receber, em outubro, 250 euros e, ao longo do ano de 2023, mais 22,14 euros por mês. O que significa, na prática, que somando o bónus ao aumento de janeiro receberá os mesmos 560 euros. “Exatamente o mesmo do que resultaria da fórmula, com a diferença de ter liquidez já adicional em outubro com mais meia pensão.” Mendes Godinho só não disse que a partir de 2024, os pensionistas ficam a perder.
Governo acena com sustentabilidade
O Executivo não respondeu diretamente às perguntas sobre se reconhecia que os pensionistas vão ser prejudicados com o novo mecanismo criado. Mas nas respostas que foi dando, e na proposta de lei enviada ao Parlamento, vai repetindo que é preciso olhar para a sustentabilidade do sistema de pensões, que deverá entrar no vermelho no início da década de 2030, segundo as projeções do Executivo no Orçamento do Estado para 2022. Ana Mendes Godinho, quando questionada sobre o tema, começou por dizer que “dificilmente” entendia a crítica de que “não estamos a fazer nada para os pensionistas”. Frisou, aliás, que só o bónus de meia pensão pago em outubro vai custar mil milhões de euros, com verbas canalizadas do Orçamento da Segurança Social e não do sistema previdencial (o que paga as pensões).
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Ana Mendes Godinho não se comprometeu com o que vai acontecer em 2024. Remeteu uma avaliação dos aumentos para o trabalho da comissão criada este ano, liderada por Mariana Trigo Pereira, para estudar a sustentabilidade do sistema de pensões e a diversificação das fontes e financiamento. Mas justificou as opções que o Governo tem tomado com a necessidade de garantir o “futuro do sistema“.
“O que temos procurado é dar passos sólidos que deem confiança às pessoas e não pôr em causa o futuro do sistema. Estamos cá sempre procurando os instrumentos precisos sem colocar em causa a confiança e o compromisso com os pensionistas”, afirmou. E ainda: “O que estamos a fazer é garantir que não pomos em causa o futuro das gerações atuais (…), garantindo ao mesmo tempo a reposição do poder de compra aos pensionistas agora, quando precisam.”
Já questionada sobre a Segurança Social vai poupar, por limitar o valor da atualização automática, assegura: “Não há aqui nenhuma lógica de poupança”.
Essa limitação dos aumentos está a ser criticada pelas associações de reformados. Maria do Rosário Gama, presidente da APRe!, por exemplo, em declarações à SIC Notícias, disse estar a receber “imensos telefonemas e emails” com dúvidas e queixas de pensionistas e considera que a medida fica muito aquém. Sobretudo porque os pensionistas tinham pedido uma mitigação dos efeitos da inflação no poder de compra. “Agora é um alívio, mas deixa de ser em janeiro”, quando a atualização for de “metade” do que deveria ser com o mecanismo automático, criticou. O Governo já entregou na Assembleia da República uma proposta com a percentagem de atualização diferente.