O primeiro esboço de A Cadela, quinto romance da colombiana Pilar Quintana, foi escrito num telemóvel, enquanto o filho recém-nascido não acordava da sesta. Quintana converteu a contingência em eficácia: a prosa é curta, concentrada, dirige-se para o destino sem parar em estações de serviço.
O espaço do romance, situado na costa colombiana voltada para o Pacífico, é quase todo preenchido por uma ausência: a falta do filho que Damaris, uma mulher negra prestes a cruzar a fronteira da idade fértil, desejou e nunca teve. A cadela do título é Chirli, uma rafeirinha recém-nascida que Damaris adota e para a qual transfere o zelo maternal que sempre careceu de objeto. O ritual da substituição afetiva não serve senão para iludir a esperança por mais um tempo — até porque em Damaris, última de uma linhagem que veio empobrecendo até se despenhar com estrondo nos fundos da escada social, mora outro trauma que rende para a vida inteira.
A Cadela é um romance de ambientes austeros, onde tudo agride e repele: a natureza caprichosa, as casas desconfortáveis, a humidade, os caminhos lamacentos, as escarpas tenebrosas, a selva que faz sumir cadáveres em poucos dias. Há Rogelio, o marido sorumbático com quem Damaris mantém uma convivência distante; Luzmila, a prima que “aos trinta e sete anos tinha duas filhas e duas netas”, ou Ximena, mulher de “cerca de sessenta anos (…) que não se cuidava muito”.
Uma gravidez tardia que a deixou face a face com dilemas da maternidade e quase uma década passada a viver na selva colombiana deram a Pilar Quintana a matéria humana com que alimentou o romance. A Cadela, finalista do National Book Award em 2020, sai em Portugal quatro anos depois da publicação original (edição D.Quixote, tradução de Pedro Rapoula).
No último livro — Los Abismos, que deverá ter em breve tradução portuguesa — Quintana regressa ao tema da maternidade. Num momento em que a Colômbia voltou a fechar escolas e serviços para travar a pandemia, a autora confessa, em entrevista ao Observador, que “ter uma criança em casa não é bom para o trabalho criativo”. O desabafo, que podia ser só moeda de troca corrente para os tempos que vivemos, dá o tom certo para a uma conversa em torno de um livro que, podendo ser sobre muita coisa, é sobretudo uma fábula sobre a “maternidade frustrada”.
A Cadela saiu há quatro anos. O livro ainda está muito presente na sua vida?
O livro saiu em 2017, mas tem tido uma longa vida. Até ao ano passado, andava a falar exclusivamente dele em muitos eventos fora e dentro da Colômbia. E mesmo agora que lancei um novo romance continuam a falar-me de A Cadela. Sinto-a muito próxima, muito presente. Foi um livro muito importante para mim, deu-me um grande reconhecimento.
O seu olhar sobre o livro mudou nestes quatro anos?
Há uma coisa muito importante de que me fui apercebendo desde a publicação de A Cadela: é que um livro nunca está completo sem os leitores. Os leitores têm sido fundamentais para me revelar aspetos do livro que não faziam parte dos meus objetivos como escritora. O livro disse-lhes outras coisas além das que eu lhes quis dizer. Por exemplo, um leitor disse-me que A Cadela lhe pareceu um hino à liberdade, porque a cadela se revela perante a mãe e vai fazer a sua própria vida. Não tinha pensado nisso, mas pareceu-me uma leitura belíssima. Interessa-me conhecer a minha obra através dos olhos dos leitores.
Para mim, A Cadela é um romance sobre a maternidade frustrada e sobre o que essa frustração faz a uma mulher. É um romance sobre os monstros que nos habitam, que às vezes estão adormecidos e nos fazem crer que não existem. O que faz com que os monstros interiores despertem?
O romance leva-nos a pensar sobre quanto de biológico e de social é que existe na relação das mulheres com a maternidade. Damaris sofre porque não consegue ser mãe. Mas será que esse sofrimento deriva de uma vontade real de ter filhos, ou vem sobretudo da expetativa social que pesa sobre ela?
É uma pergunta muito interessante. Penso que há mulheres que, verdadeiramente, não querem ser mães, e para algumas é difícil assumi-lo, porque há uma sociedade que espera que as mulheres tenham filhos. Mas creio também que há mulheres que, independentemente da imposição social, querem ser mães. Eu própria fui uma dessas mulheres. Entre os trinta e os trinta e nove anos, quando vivia na selva do Pacífico colombiano e as minhas companheiras da universidade e do colégio estavam na sua etapa reprodutiva, não queria ter filhos. Perguntavam-me a toda a hora porque não tinha filhos e respondia “porque não quero”. Muitas vezes, sobretudo na região onde estava, parecia-lhes impossível que uma mulher não quisesse ser mãe. Pensavam que lhes estava a mentir, que tinha um problema de fertilidade que tinha vergonha de confessar. Isso impressionou-me muito.
Depois, vi através de amigas com problemas de infertilidade o difícil que era estar numa sociedade onde constantemente lhes perguntavam “porque não tens filhos?”. Aí comecei a fazer-me essa pergunta. Creio que Damaris quer autenticamente ter um filho, mas também quer ter um filho porque cresceu, nasceu e existe numa sociedade que valoriza muitíssimo a maternidade.
Há uma ideia que se repete no livro: “quarenta anos é a idade em que as mulheres secam”. Essa sentença fez parte do seu imaginário de menina, adolescente, jovem mulher?
Há um momento da vida em que todas as mulheres se perguntam: “quero ou não ser mãe?”. Isso começa aos trinta, porque começam a dizer-te que aos trinta e cinco já estás velha, que aos trinta e oito já é terrível e que depois dos quarenta já é quase impossível ter um filho. É uma ideia que se repete, dizem-na os médicos, as amigas, a tua mãe, as tuas tias… E, cada vez mais, apercebemo-nos de que as mulheres podem ter filhos depois dos quarenta. Somos levadas a sentir que chegamos aos trinta e oito e a nossa vida acabou, já não somos mais mulheres, somos anciãs veneráveis. Essa condenação de relógio biológico que põem em cima das mulheres é terrível. Hoje sou uma senhora, tenho quarenta e nove anos, mas continuo a sentir-me super jovem.
O que é que não lhe contaram sobre a maternidade que gostaria de ter sabido?
Quando as mulheres falam da maternidade dizem que foi a melhor coisa que lhes aconteceu, que se sentem completas, que é o amor mais infinito e absoluto, que os filhos são o melhor que lhes aconteceu na vida… Mas omitem que os filhos, assim como despertam o amor mais profundo, também despertam a raiva mais profunda. Nenhum ser humano consegue pôr-me tão furiosa como o meu filho. É como se soubesse que botões deve premir para que me enfureça, e creio que faz falta falar disso. Não é só amor, a maternidade também é composta por raiva, lágrimas, sangue… Para mim, como ser humano, foi a experiência mais intensa que tive, e eu vivi na selva, fiz bungee jumping, caminhei um mês pela montanha… Fiz coisas intensas, mas a maternidade foi a experiência mais intensa de todas. Faltou-me que a minha mãe, as minhas tias, outras mulheres, me contassem uma experiência mais realista da maternidade, que não me mostrassem apenas o lado luminoso, mas também o lado obscuro e menos bonito de ser mãe.
Qual é o lugar da cadela na história? Quis falar da relação entre humanos e animais, ou a cadela foi o pretexto para falar de relações simplesmente?
Queria falar das duas coisas. Uma das minhas amigas que teve problemas de fertilidade não conseguiu ficar grávida com tratamentos e também não conseguiu adotar. Eu, quando tive vontade de ter um bebé (já depois dos 40), fiquei grávida rapidamente. Foi muito difícil dizer à minha amiga, que tinha tentado durante muitos anos ter um bebé e não tinha conseguido, “olha, eu nunca quis ter um filho, mas de repente apeteceu-me e em cinco minutos fiquei grávida”. Quando soube, ela disse-me que ficava contente por mim, mas precisava de tempo para processar a notícia. Era muito difícil para ela, entendi perfeitamente. Uns dias depois, estava a tentar adotar uma cadelinha. Aí começou a desenhar-se A Cadela, porque queria falar da relação com os animais de estimação quando acontece uma transferência motivada pela impossibilidade de ser mãe. Também me interessa o tema da relação entre as pessoas e os animais, pouco explorado ainda na literatura. A nossa relação com os animais mudou muito rapidamente. Quando era pequena, as corridas de touros eram normais, havia touradas em toda a Colômbia e cresci a vê-las. Eram olhadas como algo natural, parte da nossa tradição cultural. O grosso da sociedade aceitava-as. Hoje em dia, isso mudou totalmente.
Quando era pequena, os cães viviam no pátio da casa e não eram uma parte importante da família. Era normal bater-lhes, tratá-los mal… A maior parte dos cães e dos gatos em casas de campo tinham uma razão de ser utilitária — serviam para comer os ratos ou para defender a propriedade. Hoje em dia, os animais são parte importante da família. Quando morrem temos desgostos profundos. Interessava-me explorar esta relação.
No romance existem cães que cumprem uma função utilitária, e depois existe “a cadela”, que é diferente desses. A cadela da protagonista é o seu bebé.
A sua experiência com animais foi útil para a escrita do romance?
Muito. Tive uma gata cuja mãe morreu envenenada na povoação, adotei-a quando ainda nem tinha aberto os olhos. Tive de ensiná-la a comer. Essa gata esteve comigo cinco anos, até que apanhou uma doença tropical — a leishmaniose –, e tivemos de ir ao veterinário eutanasiá-la. Foi uma experiência muito dura.
Na selva também tive duas cadelas, mãe e filha, que viveram comigo muitos anos. Certa noite, viram ou ouviram um animal qualquer e escaparam-se para a selva. A mãe esteve quatro dias por fora e regressou. A filha perdeu-se na selva e regressou passados dezanove dias, em muito mau estado. Tornou-se numa cadela caçadora, que fugia, como se o seu lado selvagem se tivesse libertado. Tivemos de dá-la a uma pessoa da aldeia.
O livro está muito ligado à experiência de morar no Pacífico colombiano, onde viveu quase uma década. A paisagem natural do livro é inspirada nessa vivência?
Sim. O Pacífico colombiano é uma zona esquecida da Colômbia, uma região a que o governo central historicamente virou as costas. É uma das regiões do mundo com maior biodiversidade, riquíssima, mas é também uma das zonas mais pobres do país. O Pacífico colombiano é uma das regiões do planeta com mais chuva e água, mas nenhuma cidade principal tem água potável. É uma zona cheia de contradições, que não tem sido olhada devidamente pelos colombianos. Quando os colombianos pensam em mar, pensam apenas no Caribe. Ao falar do Pacífico, senti que tinha uma responsabilidade. Não ia falar da capital Bogotá, ia falar de uma região cujos habitantes têm sido excluídos. Tinha de fazer um retrato completo e realista da zona, porque quase nunca se fala dela, e quando se fala, nos noticiários, diz-se que é um lugar pobre onde há inundações, violência e corrupção, mas não se explicam as razões estruturais disso.
Damaris gasta a vida e o corpo para cuidar de uma casa vazia — lavando, limpando, esfregando –, a mansão desabitada dos Reyes, ao mesmo tempo que vive numa cabana sem condições. É uma imagem eloquente da assimetria social…
Era obrigatório, para mim, mostrar a desigualdade. A família de Damaris habitou aquela zona por muitos anos. Ela seria, tradicionalmente, a dona daquele lugar, mas acaba reduzida à empregada que limpa a propriedade. Os donos são, agora, os brancos mestiços do interior. Esta é a realidade de muitas pessoas no Pacífico Colombiano. Era a história de muitos vizinhos que tive.
Viver na selva foi mais duro do que imaginava?
Tinha vivido antes na Amazónia boliviana, já conhecia a selva. Mas a selva do Pacífico colombiano é mais dura, porque é mais húmida que a Amazónia. Os europeus ocidentais que chegam à selva — e nós, os colombianos mestiços do interior do país, somos muito ocidentais, porque vivemos em cidades e temos um sistema capitalista — têm a ideia de que a natureza é uma mãe bondosa. Impressionou-me muito ver chegar uns alemães e uns suíços que tiravam os sapatos e saíam descalços para caminhar na selva. Eu, sul-americana um pouco mais indígena do que eles, dizia-lhes para não irem assim para a selva. Um deles respondeu-me: “Por acaso és minha mãe?”. Três dias depois, estavam com os pés infetados, com fungos, com picadas terríveis, tinham febre, vomitavam, tinham diarreia… Pediram desculpa por não terem feito caso do meu conselho. A selva dá e tira, não é a mãe bondosa que imaginamos. É um organismo que está feito para te colher e te converter em adubo.
O livro conta também como é que uma pessoa pacata, normal, pode ser levada pelas circunstâncias a cometer um ato terrível ou desumano. Interessou-lhe pôr em movimento as engrenagens da violência?
Sou de um país em guerra, que teve um conflito sangrento ao longo de muitos anos. As guerras fazem com que desumanizemos o outro, o inimigo. Tendemos a pensar que os monstros são o outro, o inimigo, os guerrilheiros, os paramilitares ou os soldados do exército. Creio que o monstro não é o outro nem está no exterior, o monstro habita-nos. Não me interessava fazer uma literatura sobre o conflito, a explicar a história, mas interessava-me explicar o lado de dentro, a violência íntima. Neste romance quis indagar o monstro interior: o que é preciso acontecer para que uma pessoa como eu ou você, que não somos seres malvados nem assassinas em série, cometa um ato impensável e terrível? A Cadela foi a resposta a isso.
Não é difícil, pela maneira como a história nos é contada, sentir empatia por Damaris e desculpar as suas faltas. Quis posicionar o leitor nesse lugar de compreensão?
Sim, foi isso que procurei. Que pudéssemos olhar para uma mulher negra, pobre, numa zona isolada, esquecida pele estado, e pôr-nos no seu lugar.
As lógicas da selva são implacáveis. Em dado momento, Damaris conclui que mais vale matar uma cadela prenha do que ter de matar a ninhada quando ela nascer. É terrível, mas não deixa de fazer sentido…
Sim, isso tem muito a ver com a minha experiência no Pacífico. A zona onde vivia ficava a três horas da minha cidade natal, mas creio que é mais fácil encontrar códigos culturais comuns entre mim e você do que entre mim e os habitantes do Pacífico colombiano. Havia muitas coisas que não entendia, porque as julgava a partir da minha mentalidade mestiça, branca, privilegiada, do interior da Colômbia.
Quais são as partes do livro que mais gosta de ler em público?
A minha parte favorita é quando morre o Nicolasito. Aí está condensado muito do que é A Cadela. Revela-se, por exemplo, a desigualdade que existe entre um menino mestiço e uma menina negra. É, talvez, o instante em que Damaris se perde como pessoa. A culpa fica incrustada nela, e torna-se no motor que dirige a sua vida.
A história de Nicolasito tem alguma base real?
A personagem é inventada, mas baseia-se numa história passada quando era pequena. Um menino de ano e meio caiu dentro de um buraco. Quando conseguiram tirá-lo de lá, vários dias depois, já estava morto. Nesse momento, apercebi-me de que as crianças também morriam. Até aí, julgava que quem morria eram só os velhos, os doentes… Nesse dia dei-me conta de que a morte era transversal, de que eu também podia morrer.
Escreveu A Cadela num telemóvel, mais por necessidade do que por opção. Como é que isso aconteceu?
Estava a amamentar o meu bebé, que tinha nove meses quando comecei a escrever o romance. A única altura que tinha para escrever era no telemóvel, durante a sesta dele, que durava duas horas. Sempre fui uma narradora eficaz, mas escrever no telemóvel e ter só duas horas de escrita por dia fez com que me tornasse ainda mais eficaz.
Como é que a biografia alimenta a ficção?
Pego nas emoções, nas dores e nos eventos da minha vida e transformo-os em ficções onde não é possível reconhecer a situação original. Há tanta distância entre o que se passou comigo e o que aparece narrado que me parece difícil dizer que a minha literatura é biográfica.
De que fala Los Abismos, o seu livro mais recente?
É também uma história de maternidade, sobre uma menina que descobre o mundo dos adultos. Todas as crianças pensam que os pais, e sobretudo as mães, existem por e para nós. Esta é uma menina que, de repente, começa a descobrir que a sua mãe não é apenas a sua mãe, que tem uma vida secreta que a exclui e que põe em perigo a estabilidade da família.
Em dado momento da sua vida, desfez-se de tudo para se mudar para o Pacífico. Esteve lá nove anos e regressou à cidade. O que restou da utopia de uma vida simples?
Creio que, em certa medida, continuo a ter essa vida simples. A minha vida está ao serviço da escrita. A vida de um escritor é uma vida quase monacal.
De que é que tem mais medo?
A vida de escritor não dá segurança económica. Pode-se ser um escritor muito bom e aos 80 anos estar na pobreza. Sempre temi um futuro em que, tendo dedicado a minha vida à escrita, os meus amigos tenham de fazer coletas para me pagar a diálise. Tenho medo da pobreza.