O tema andava esquecido desde que Paula Teixeira da Cruz deixou o Terreiro do Paço, mas a ex-ministra já tinha traçadas as linhas de ação para acabar com a Polícia Judiciária Militar: a Judiciária civil ficava com a investigação de crimes cometidos dentro de instalações militares, passaria a haver inspetores da PJ especializados neste tipo de criminalidade, os funcionários civis da PJM poderiam ser absorvidos pela PJ e os militares-inspetores regressariam aos respetivos ramos. “Esse trabalho estava adiantado, mas faltou tempo”, diz a ex-ministra ao Observador.
Num frente-a-frente com o primeiro-ministro, no debate quinzenal na Assembleia da República, a coordenadora do Bloco de Esquerda levou o braço ao fundo do baú, puxou do assunto e disse que, com o fim dos tribunais militares, há uma década e meia, passou a ser “difícil justificar que hoje permaneça uma polícia de investigação militar”. O primeiro-ministro, defensor da ideia da extinção da PJ Militar desde o tempo em que ele próprio assumiu a pasta da Justiça, deixou o tema em suspenso com duas frases curiosas. Primeiro, António Costa disse que “não se tomam decisões institucionais perante problemas pontuais” mas, logo a seguir, acrescentou uma ressalva: “As alterações institucionais são sempre possíveis, mas no quadro devido, no tempo devido e não no calor dos acontecimentos.”
Ao Observador, fonte do Ministério da Defesa garante que o tema não está na agenda. Pelo menos, num horizonte imediato: “O Governo nunca tomou posição sobre o assunto, não há nada no programa de Governo sobre o tema e a questão nunca se colocou neste Governo.” Mas para o ano há eleições legislativas e, com a Operação Húbris ainda a marcar a agenda, o tema da organização judiciária também estará na ordem do dia. E aí pode haver novidades.
Furto de Tancos: a desculpa para reabrir o debate
Há dois anos, a Polícia Judiciária estava em peso na rua. Durante quase um mês, a instituição não olhou a esforços para apanhar Pedro Dias, o homem suspeito de ter matado três pessoas, entre as quais um militar da GNR. Num desses dias, os inspetores da PJ dão de caras com inspetores da PJ Militar — estavam todos à procura do homicida, mas ninguém na polícia civil imaginava que os colegas militares também andavam no terreno. A razão era simples: Pedro Dias tinha roubado uma arma a um militar da GNR e a PJ Militar queria apanhá-lo.
Esse é, para uma fonte próxima da investigação, um exemplo flagrante da “má colaboração” entre as duas instituições. Mas também há casos que mostram exatamente o contrário, processos em que civis e militares trabalharam lado a lado para concluir as investigações. Desta vez, no entanto, tudo foi diferente.
A recuperação do material de guerra que tinha sido levado dos Paióis Nacionais de Tancos em junho do ano passado abriu feridas profundas na relação entre as duas instituições. A PJ Militar nunca aceitou a decisão da Procuradoria-geral da República de juntar à lista de possíveis crimes as suspeitas de terrorismo e de entregar à Polícia Judiciária civil o papel principal da investigação. Um golpe para quem via naquele assalto um caso estritamente militar.
Seguiram-se meses de tensão entre investigadores de um e do outro lado, guerra institucionais que arrastaram o diretor da PJ Militar para o centro do problema e, pelo meio, uma investigação da PJ aos colegas militares que incluiu escutas, perseguições e encontros inesperados a meio da madrugada nos arredores de Lisboa.
No final, a PJ deu o golpe derradeiro, ao avançar com a detenção de oito pessoas: o diretor e quatro inspetores da PJ Militar, três militares da GNR e um civil, alegadamente um dos suspeitos do furto aos paióis. No dia seguinte às detenções da Operação Húbris, Catarina Martins defendia no Parlamento o fim da PJ Militar.
Inspetores militares: a polícia que “incomoda muita gente”
Há muitos anos que o coronel Gil Prata se cristalizou como um dos maiores defensores da existência de uma Polícia Judiciária Militar com exclusividade para investigar crimes em unidades, organizações e equipamentos militares. No caso de Tancos, aliás, defende que era isso que deveria ter acontecido: o processo devia ter ficado nas mãos dos inspetores militares.
Aos que apoiam o fim da PJ Militar, o antigo sub-diretor da instituição responde com a ideia de que, “hoje, mais que nunca”, esta polícia “tem de existir”. Ao Observador, o coronel considera que “estranho é haver uma PJ civil a investigar crimes de natureza militar” e refere que “muito poucos exemplos haverá em que isso aconteça”, dentro e fora da Europa. “O que vemos, em muitos Estados, é a existência de polícias militares a investigar crimes militares.”
Gil Prata dá os exemplos dos órgãos de investigação criminal integrados na Gendarmerie francesa, nos Carabinieri italianos ou na Guardia Civil espanhola, todos na “dependência do Ministério da Defesa”. E admite que, a alterar-se alguma coisa na atual conceção da PJM, isso teria de passar pela transferência da polícia criminal para a GNR, nunca para uma polícia civil.
Mas isso seria já uma solução de recurso. A PJ Militar, refere o antigo dirigente desta polícia, é um “órgão de polícia criminal de competência especifica”. Isso significa que, por um lado, investiga “crimes de natureza militar” e, por outro, investiga a “prática de crimes de natureza comuns em instalações militares”, em Portugal e no estrangeiro (neste caso, sempre que há militares portugueses suspeitos de cometer crimes enquanto estão integrados em missões internacionais).
Mas há outros argumentos, que o coronel tem defendido em vários artigos da especialidade, para sustentar a tese da manutenção de uma polícia com a configuração da PJ Militar.
Um deles é o da “desconcentração” dos órgãos de polícia criminal, em contrapeso com o “risco” de um cenário em que “um só órgão de investigação” concentra em si todas as investigações criminais. Outro argumento, mais técnico, é dos “bens jurídicos” sobre os quais assenta o trabalho da PJ Militar. “A PJM investiga os crimes estritamente militares que tutelam uma espécie de bens jurídicos: os interesses militares da Defesa nacional, isto é, os interesses socialmente valiosos que se ligam às funções militares especificas de defesa da pátria e outras cometidas pela Constituição às Forças Armadas”, refere o coronel num artigo em que se questiona sobre o “futuro” desta polícia.
Um exemplo para ilustrar a especifidade dos crimes que esta polícia investiga é o de casos em que os arguidos respondam por “cobardia”. O militar é “o único profissional” que pode ser acusado de cobardia, pela ação ou falta de ação perante ordens de um superior hierárquico (por exemplo, em cenário de combate com o inimigo). “Alguém vê um polícia civil a investigar um ato de cobardia?”, questiona-se Gil Prata.
Mas este é um debate antigo. O coronel ainda se recorda da “confusão” que foi quando, em 1995, uma alteração legislativa do Governo de António Guterres atribuiu à PSP e à GNR competências para investigar crimes de tráfico de droga. “A PJ sempre teve gosto pela exclusividade”, diz, sugerindo que as sucessivas vagas que trouxeram de volta o tema “extinção/integração da PJ Militar na PJ” não são inocentes. “Até parece que PJM incomoda muita gente”, ironiza.
Há um último ponto que o antigo responsável da PJ Militar rejeita sem hesitar: o da “interferência” do poder — seja ele militar ou político — nas investigações. Essa ideia, garante, “é completamente errada”, desde logo porque “não há nenhum vinculo profissional entre a PJM e a hierarquia militar”. E, por isso, “as chefias militares não autorizam nem deixam de autorizar” ações dos inspetores. Mas também porque a hierarquia interna da PJ Militar não é diferente da hierarquia interna da Judiciária Civil. “Se o diretor nacional adjunto dá uma ordem, ela é para cumprir”, defende, com a “salvaguarda” de que essa ordem “não conduza à pratica de um crime”.
Aqui, Gil Prata volta à sua experiência pessoal: “Passei pelo Serviço de Informações de Segurança, pelo Serviço de Informações Estratégicas de Defesa, pela PJM e nunca um chefe militar me telefonou a tentar dizer qualquer coisa, até porque eles sabem que não devem fazê-lo”, sublinha.
“Faltou tempo” para acabar com PJ Militar
Paula Teixeira da Cruz não esconde que via o fim da PJ Militar como um “projeto” seu. “Não só a questão da PJM não fazia sentido nenhum como entendi sempre que a PJ foi, durante anos e anos, a referência na investigação criminal e que esta investigação não devia estar partida, fosse ela militar ou não”, diz ao Observador a ex-ministra da Justiça.
A social-democrata queria “concentrar na PJ” a investigação criminal. E isso significava mexer nas competências da PJ Militar, mas também nas competências da PSP e da GNR. A mudança de fundo, porém, deveria mesmo incidir sobre a casa dos inspetores militares, com um fim que chegou a estar anunciado num artigo do Jornal de Notícias publicado a 22 de fevereiro de 2013. Título: “PJ vai absorver PJ Militar.” O que falhou? A “falta de tempo”, justifica.
Teixeira da Cruz recusa comentar os episódios mais recentes, que misturam a PJ Militar com a investigação ao furto de Tancos, mas defende uma “vocação da investigação criminal independente, para que não haja situações em que as equipas aparentemente respondem perante a hierarquia”. No caso de Tancos, a interceção de escutas que invocam o Chefe do Estado-Maior do Exército dão argumentos àqueles que defendem a tese de que as chefias militares continuam a ter uma intervenção direta no trabalho da PJ Militar. A ex-ministra considera que, se houver uma polícia focada na investigação de um único tipo de crimes — como os militares —, “o que vai conter é aquilo que se indicia perante o que é público”, ou seja, “essa polícia pode receber ordens que põem em causa uma investigação livre do poder político”.
Essa ingerência, admite, “também pode acontecer na PJ”, mas no caso da polícia civil “não há uma hierarquia” militar que se cruze com a hierarquia funcional. Além disso, defende, “a PJ tem o Ministério Público em cima, de forma muito acesa”.
Para a ex-ministra, a defesa que faz do fim da polícia militar parte de uma “conceção do sistema de justiça” em que a investigação não pode partilhar casa com os possíveis investigados. “Temos de separar” as duas realidades. “Se não, podemos ter dissabores” porque “não há garantias de independência de investigação”, admite Paula Teixeira da Cruz. Não que a social-democrata alguma vez se tenha deparado com casos flagrantes de ingerência. Isso, garante, nunca aconteceu. Mas “só a hipótese dessa possibilidade é errada”.
Ao Observador, fonte ligada a essa que foi a última tentativa do poder político de extinguir a PJ Militar diz que o plano “borregou por oposição de militares e da estrutura de comando da GNR”. Teixeira da Cruz teria “enfrentado resistência e cedeu”. A ex-ministra recusa essa tese. “Havia obstáculos das instituições que estavam em causa, mas se me pergunta se senti obstáculos dos colegas, não senti”, diz. No final do dia, Paula Teixeira da Cruz precisava de “mais tempo e mais debate” para levar o projeto avante.
Uma polícia filha da Revolução
A Polícia Judiciária Militar nasce em 1975, ainda como Serviço de Polícia Judiciária Militar (SPJM), e, em pleno período revolucionário pós-ditadura, fica na direta dependência do Conselho da Revolução. Tinha responsabilidade de “investigar os crimes sujeitos ao foro militar e instruir os respectivos processos”. Dois anos depois, com a publicação do Código de Justiça Militar (CJM), passou para a sombra do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Mas a grande mudança surge em 2004, com a aplicação da reforma constitucional de 1997 e o fim dos tribunais militares em tempo de paz.
Com a queda dessa instituição — um julgamento conduzido exclusivamente por magistrados com carreira militar — ficou salvaguardada a garantia de que os crimes militares seriam julgados com a participação de um juiz militar. Os inquéritos são tutelados pelos procuradores do Ministério Público, com o apoio de assessores militares, coadjuvados por equipas de investigação criminal da Polícia Judiciária Militar.
Antes, em 1993, a SPJM já tinha passado para a dependência funcional do Ministério da Defesa, à imagem o que acontece atualmente, e mudado de nome: Polícia Judiciária Militar. E as últimas grandes alterações dos 40 anos, desde a criação, ocorrem em 2001 e 2003, com a Lei Orgânica da Polícia Judiciária Militar e o Código de Justiça Militar. Na prática, os dois diplomas definem a PJM esta como um “corpo superior de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do ministro da Defesa Nacional e funcionalmente dependente do Ministério Público para efeitos da investigação criminal”.
Além dos crimes de cobardia, a PJM investiga suspeitas de traição à pátria, violação de segredo, espionagem, infidelidade no serviço militar, crimes de guerra e em aquartelamento. Também tem competências para investigar casos em que os militares das Forças Armadas estejam em missão, com os crimes de abandono de comando. O Código de Justiça Militar consagra ainda crimes de abandono de posto, ofensas a sentinela, entrada ou permanência ilegítimas em instalações militares (como aconteceu em Tancos no ano passado), deserção, dano, comércio ilícito, extravio, furto e roubo de material de guerra (mais uma vez, como no caso dos Paióis Nacionais de Tancos), insubordinação, abuso de autoridade, ultraje à bandeira nacional e perda ou abandono de navio.