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A atual, mas crescentemente desgastada e acossada, ordem política-constitucional espanhola tem as suas origens próximas no chamado processo de “transição política democrática” iniciado com a morte de Francisco Franco a 20 de novembro de 1975. Independentemente daquele que foi o papel desempenhado neste processo pelas oposições políticas ao franquismo, a verdade é que foram setores tanto civis, sobretudo, como militares do regime autoritário saído da guerra civil que, em grande medida, o pensaram e alimentaram. Os civis pelo pensamento e ação. Os militares essencialmente por omissão.
Após a morte de Franco, e apesar de tanto o falecido ditador, como os chamados setores imobilistas do franquismo (o célebre búnquer), parecerem ter acreditado ser possível e desejável prolongar a vida do franquismo sem o caudillo, deu-se início a um conjunto de movimentações políticas cuja intenção derradeira era instituir um regime político democrático inspirado nos exemplos então existentes a norte dos Pirenéus. É claro que a “transição democrática” em Espanha foi ainda devedora, qualquer que tenha sido a vontade dos reformistas que viviam no seio do franquismo e o apoiaram, da natureza e da história do moderno autoritarismo espanhol. Isto apesar de se ter tratado de um fenómeno social e politicamente conservador, quando não reacionário, violento, além de que assente em valores católicos e castrenses genericamente ultraconservadores, mas que ainda assim preparou e preparou-se desde muito cedo para uma evolução, que seria sempre uma transição, fosse ela, ou não, no sentido da instauração de uma democracia de tipo “ocidental”. A restauração da monarquia e a escolha de Juan Carlos de Borbón como sucessor de Franco tinha como grande vantagem o facto de proporcionar, para o dia que se seguisse ao fim físico e/ou político de Franco e do franquismo, uma razoável margem de manobra política tanto para velhas como para novas lideranças.
Note-se, por exemplo, que a ideia de conciliação e de apaziguamento nacional foi fazendo o seu caminho do lado do franquismo desde 1942 ou 1943, apesar dos mais diversos acontecimentos da história política espanhola, desde a década de 1940 até 1975, terem sido e significado precisamente o contrário: foi o caso da elaboração e aprovação, em 1966, da Lei Orgânica do Estado que ratificava o princípio da limitação da participação política dos espanhóis; do julgamento, em 1970, dos “ativistas” bascos condenados no chamado processo de Burgos e de que resultaram quinze condenações, seis delas à morte mas depois todas perdoadas; ou os cinco fuzilamentos de membros da ETA e das FRAP ocorridos em finais de setembro de 1975. De qualquer modo, relevante foi o facto de, do ponto de vista político-institucional, tanto o franquismo como o pós-franquismo terem sido politicamente uma história de sucesso na criação de condições que permitiram a preparação, construção e consolidação de um regime político democrático.
Note-se que, do lado de muitos setores políticos e sociais não franquistas ou antifranquistas, houve, desde muito cedo um propósito idêntico: aceitar o triunfo dos “nacionais” e a inevitável constituição de uma nova ordem política e social. É verdade que, e ao mesmo tempo, esses mesmos setores resistiram e contrariaram de forma pacífica muitos dos aspetos mais intrusivos da realidade decorrente da existência de uma “nova ordem” e de um “novo estado”, esperando desse modo, paciente mas realisticamente, uma mudança no arranjo franquista e a sua posterior substituição por uma solução politicamente democrática e social e economicamente mais equilibrada e justa.
Paz, piedade e perdão
Mesmo que correndo o risco de um certo anacronismo, vale a pena evocar o célebre discurso (“Paz, piedad y perdón”), tão otimista como surpreendentemente premonitório, que Manuel Azaña pronunciou a 18 de Julho de 1938 em Barcelona. Redigido e dito para assinalar os dois anos do golpe militar que deu início à guerra civil, foi na verdade o primeiro discurso evocativo da necessidade absoluta de pôr em prática em Espanha um processo de “transição” política: “transição” política de uma II república revolucionária e, portanto, antidemocrática, para uma ordem pós-revolucionária e democrática — no caso improvável de uma vitória dos “republicanos” –, mas também, e sobretudo, daquilo que teria que acabar por ser a transição de um regime autoritário, filo-fascista, conservador e ultramontano para uma solução democrática. Embora Azaña no seu discurso não falasse em “democracia”, descrevia uma Espanha que social e politicamente só poderia existir caso uma solução inequivocamente democrática triunfasse após uma reconciliação que o então ainda presidente da república propunha e aparentemente não se cansava de procurar. Essa nova Espanha exigia que os autoritarismos e os totalitarismos, tanto de direita como de esquerda, fossem superados dando lugar a uma “terceira Espanha” até então com existência envergonhada e subordinada, tendo tido que se esperar pela “transição” de 1975-78 para que pudesse emergir e iniciar o caminho da consolidação.
Nesse sentido, as unanimemente reconhecidas mudanças que a Espanha de Franco sofreu, por exemplo, no plano económico e social, com o avanço inexorável da urbanização, uma industrialização acelerada, a duplicação da riqueza produzida, a diminuição substancial das desigualdades sociais, uma melhoria dos padrões do ensino ou da saúde, foram acompanhadas por igualmente profundas e importantes mudanças ocorridas, ainda que quase em silêncio, no plano político e ideológico, fosse no campo franquista fosse no das oposições ao franquismo. Ainda que a transição para a democracia não tivesse que ser uma espécie de corolário lógico da história de Espanha iniciada na década de 1940, a verdade é que as mudanças ocorridas no plano socioeconómico e político ao longo de mais de três décadas antecipavam aquilo que veio a ser o destino democrático do país e o conturbado processo de transição ocorrido entre novembro de 1975 e dezembro de 1978 quando, respetivamente, Francisco Franco faleceu e uma nova Constituição foi aprovada e entrou em vigor.
Ainda que a transição para a democracia não tivesse que ser uma espécie de corolário lógico da história de Espanha iniciada na década de 1940, a verdade é que as mudanças ocorridas no plano socioeconómico e político ao longo de mais de três décadas antecipavam aquilo que veio a ser o destino democrático do país
É por isso possível afirmar que sem a transição iniciada na década de 1940, em grande medida involuntária e mais da responsabilidade da sociedade espanhola do que das instituições do franquismo, não teria sido possível uma segunda e definitiva “transição”, esta democrática, após a morte de Franco. Isto é, a segunda transição não teria possível sem uma primeira ocorrida em pleno franquismo e protagonizada tanto por franquistas como por opositores ao franquismo. Sem uma “situação” e uma “oposição” em evolução que se afastavam das suas origens e fundamentos históricos, políticos e ideológicos, que reconheciam as mudanças ocorridas em Espanha e no “ocidente”, mas, sobretudo, a necessidade imperiosa de uma superação do franquismo dever ser norteada pela não-repetição dos erros cometidos pelos dois “bandos” durante a vigência da II república, da Guerra Civil e do franquismo, jamais teria tido lugar a formação e consolidação de uma ordem pós-franquista ainda com Franco no poder e, depois, de uma transição para a democracia sem Franco.
A lei de amnistia e o “pacto del olvido” (do verão e do outono de 1977), foram exemplos paradigmáticos das mudanças profundas que a política espanhola e os seus protagonistas sentiam e faziam. Em primeiro lugar, a lei de amnistia total – uma amnistia parcial fora aprovada em 1976 – colocou em liberdade todos os presos que se encontravam detidos por delitos motivados politicamente, incluindo crimes de sangue. Ainda que a Alianza Popular não tenha apoiado a lei, a verdade é que ela foi aprovada com a abstenção desta formação e apenas dois votos contra. Em segundo lugar, a lei da amnistia, na forma e no espírito, consumou aquela que era uma velha aspiração das oposições ao franquismo, apesar de também beneficiar aqueles que tinham cometido delitos em nome do franquismo e do seu aparelho repressivo. Isto significa, portanto, que uma lei geral de amnistia, para franquistas e seus oposicionistas, exigia a celebração daquilo que ficou conhecido como “pacto del olvido” (o que não deve ser confundindo com qualquer intenção de promover uma espécie de amnésia social e histórica sobre os crimes de natureza política cometidos durante a guerra civil e o franquismo).
Foi, e é bom recordá-lo, celebrado por centristas da UCD (formação política que então apoiava o governo presidido por Adolfo Suárez), por socialistas, comunistas e pequenas organizações bascas e catalãs, na convicção de que o período de história de Espanha iniciado em 1936 e concluído em 1975 deveria ser reconhecido como equivalendo a uma “guerra fratricida”, pelo que a normalização da vida política e social espanhola dependia da reconciliação de todos os espanhóis. Como afirmou então Marcelino Camacho, deputado do PCE, dirigente das CC.OO. e preso político durante a ditadura, os que se tinham “matado uns aos outros” nunca se reconciliariam verdadeiramente caso o “passado não fosse apagado de uma vez para sempre” através da aprovação de uma lei de amnistia.
Omissão da história
Sucede, porém, que nos últimos anos, pelo menos desde 2004, a sociedade espanhola tem sido percorrida por um frenesim político e cultural que questiona de forma crescente e radical o espírito de reconciliação que acompanhou e tornou possível a “transição” e a existência da mais longa experiência democrática da história de Espanha. As primeiras tentativas de destruição do espírito e da prática de reconciliação pertenceram, ainda na fase final do franquismo, mas, sobretudo, durante e após o período de “transição democrática”, a agrupamentos terroristas, especialmente à ETA. Decorriam de um projeto político intimamente ligado à ideia de criação de um estado basco independente fundado em preceitos revolucionários, de terrorismo urbano, marxistas-leninistas, que eram a negação da democracia e de qualquer vontade de (re)conciliação entre bascos, entre bascos e demais espanhóis e entre o País Basco e o resto de Espanha, independentemente da natureza dos regimes e sistemas políticos em vigor.
O ataque à natureza e aos objetivos da “transição” não se fez diretamente. Começou por uma tentativa, em grande parte conseguida, de apropriação da memória da história da guerra civil, e consequentemente da II república e do franquismo
Na última década o espírito de reconciliação foi deixando de ser alvo exclusivo de formações terroristas — em grande medida por causa da derrota política e militar imposta pelo estado espanhol e pela sociedade espanhola à ETA — e passou a definir o modo de agir de muitos setores da chamada sociedade civil e de grupos, movimentos e partidos políticos tanto “espanhóis” como originários das chamadas “nações” históricas (Catalunha, Galiza e País Basco).
No entanto, o ataque à natureza e aos objetivos da “transição” não se fez diretamente. Começou por uma tentativa, em grande parte conseguida, de apropriação da memória da história da guerra civil, e consequentemente da II república e do franquismo. A partir de 2004 esta estratégia foi apropriada e depois em grande medida conduzida pelos dois governos do PSOE liderados por José Luis Rodríguez Zapatero. Para que se perceba um pouco o alcance daquele ataque, vale a pena relembrar que a “transição democrática”, como a subsequente consolidação da democracia espanhola, não assentou em qualquer silêncio ou tabu impostos à sociedade espanhola sobre a história dos cerca de quarenta anos que precederam a morte de Franco ou sobre os anos de chumbo que antecederam o deflagrar da guerra civil, nomeadamente por parte dos setores que, oriundos do franquismo, protagonizaram a “transição democrática”. Simplesmente, houve um acordo, elaborado e proposto por oposicionistas ao franquismo, nomeadamente comunistas, entre a quase totalidade dos mais destacados atores políticos da transição pós-1975 segundo o qual as questões históricas da guerra civil, das suas causas e origens e dos seus efeitos, não serviriam para alimentar o combate político quotidiano.
Independentemente dos antecedentes oposicionistas e franquistas do pacto de silêncio e da lei de amnistia, pelo menos desde o discurso pronunciado por Juan Carlos I perante as Cortes a 22 de novembro de 1975, aquando da sua proclamação e juramento das Leis Fundamentais do Reino, a guerra civil deixou clara e inequivocamente de ser tema de disputa política ao mesmo tempo que deveria ser um acontecimento que de forma alguma se poderia e deveria repetir. Por esse facto, Juan Carlos teve o cuidado de não fazer qualquer referência à vitória de Franco e do seu “bando” na guerra, preferindo falar na necessidade de ser conseguido um “consenso” e “concórdia nacional”.
A questão da omissão da história recente de Espanha no debate político foi consensual, para não dizer praticamente unânime, durante cerca de trinta anos. Tal facto não impediu, por um lado, que pudesse ser livremente investigado e discutido pelos mais variados setores da sociedade aquele que foi o período mais conturbado e violento da história do século XX espanhol, como também não impossibilitou que as vítimas da violência política “republicana” ou, sobretudo, “franquista”, vissem reconhecido publicamente tal facto, nomeadamente através de compensações financeiras ou da anulação de sentenças muitas vezes já prescritas e proferidas por tribunais durante o período do franquismo.
Perante a constatação de que qualquer tentativa de manipulação política da história espanhola pós-1931 contaminaria o presente com as disputas político-ideológicas do passado, mas também o passado com as disputas político-ideológicas do presente, os arquitetos da “transição” e pais fundadores da democracia espanhola respeitaram escrupulosamente a lei de amnistia e o pacto de silêncio. Evitaram assim que presente e passado se fundissem a partir do momento em que se tornassem sujeitos equiparados do debate político para o qual fossem transportados não apenas todas as paixões e anacronismos mas, e sobretudo, já mais tarde, aquela que se constituiu na nova agenda do debate político escolhido por uma nova esquerda.
Assentava essencialmente em temas culturais da chamada pós-modernidade, que iam desde a banalização do divórcio e do aborto até à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou ao anti-capitalismo ou pacifismo “a outrance” e “pour cause”. Ou seja, as questões do combate às desigualdades económicas e sociais que tinham mobilizado as elites políticas espanholas, e naturalmente também as de esquerda, embora continuassem a ser necessárias como marca distintiva desta, deixaram de ser suficientes, passando claramente para segundo plano enquanto temas mobilizadores de opiniões e de vontades, nomeadamente junto de um eleitorado mais jovem e urbano. E assim foi pelo menos até ao momento em que a economia e a sociedade espanhola mergulharam numa crise profunda depois de 2008.
A lei da memória
O ponto alto deste movimento revisionista daquele que é um dos principais pilares políticos em que assenta a democracia espanhola foi a publicação em finais de 2007, a 26 de dezembro, da Ley de Memória Historica. Com esta peça legislativa, sob a capa de que se pretendia reconhecer e ampliar os direitos de todos aqueles que tinham sido vítimas de perseguição e de violência política no decurso de guerra civil e do franquismo, aquilo que se fez foi, em primeiro lugar, tentar condenar demónios passados a partir da segurança do presente. Em segundo, foi preciso ampliar a base de apoio político-partidário do PSOE em detrimento não apenas de formações políticas de esquerda radical, a maior parte delas autodenominadas representantes das aspirações dos nacionalismos históricos, mas ainda à custa de uma deslegitimação política e moral da direita espanhola identificada com o Partido Popular. Pela primeira vez na história da democracia em Espanha, passou a ser identificado sistematicamente como herdeiro, senão mesmo filho dileto, do franquismo e dos sublevados de julho de 1936, fossem eles militares ou, sobretudo, falangistas. Finalmente, a Ley de Memória Historica legitimou uma limpeza radical, em espaços e instituições públicas espanholas, de quase todos os testemunhos do franquismo: nomes de ruas, praças e avenidas, estatuária ou heráldica que evocassem direta ou indiretamente Franco, o franquismo e a vitória dos “nacionais” na guerra civil foram removidos como se nunca tivessem existido…
Com a chegada da crise económica e financeira internacional em 2007/08, o rebentamento da bolha imobiliária em Espanha, o resgate à banca e a saída do poder dos socialistas liderados por Rodríguez Zapatero, a questão da manipulação de questões históricas resolvidas pelo “pacto del olvido” e a lei de amnistia de 1977 pode ter parecido em vias de se resolver restaurando-se a normalidade entretanto parcialmente rompida. Afinal, em muitos setores da sociedade espanhola como nos mais variados partidos, que não apenas o Partido Popular, emergiram vozes criticando a agenda política e (a)moral escondida no espírito da Ley de Memória Historica, e, portanto também, os danos gratuitos que produzira e, eventual ou mesmo inevitavelmente, iria continuar a produzir no quotidiano político e social de uma Espanha profundamente dividida não só pelos efeitos diretos e óbvios da crise económica e financeira (desemprego, emigração, desequilíbrio das finanças públicas autonómicas, etc.), mas também pelo recrudescimento dos nacionalismos históricos em versão populista, nomeadamente na Catalunha. Por outro lado, e por mais que se sustentasse que, pela sua natureza, os crimes cometidos pelos franquistas durante e após a guerra civil não poderiam ser considerados prescritos (seriam crimes de genocídio, casos de violações dos direitos humanos, que tanto o juiz Baltasar Garzón como, por exemplo a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional insistiam em ver investigados e os seus eventuais culpados condenados, apesar de todos se encontrarem mortos ou em idade muito avançada), a verdade é que a lei de amnistia tem sido respeitada.
Nada disto não significa, porém, que a história da II república, da guerra civil, do franquismo e da própria “transição democrática” não continue a ser politicamente apropriada e debatida. Aliás, é-o cada vez mais. Partidos, coligações e movimentos como o Podemos, os nacionalistas de esquerda galegos ou as mais variadas forças políticas do nacionalismo catalão ou basco, usam cada vez mais uma visão tanto política como moralista da história espanhola do século XX. Esse facto permite-lhes serem, pelo menos até ao momento, razoavelmente eficazes na forma como apresentam e pretendem legitimar os respetivos programas de mudança radical do mapa político e social espanhol, mudança que tem como objetivo final a destruição do estado espanhol, das suas instituições políticas democráticas e da sociedade que as sustenta. O futuro mais ou menos próximo encarregar-se-á de confirmar se os seus objetivos serão ou não cumpridos e em que medida.
Fernando Martins é professor do departamento de História da Universidade de Évora e coordenou a obra colectiva “A Formação e a Consolidação Política do Salazarismo e do Franquismo. As décadas de 1930 e de 1940” (2012).