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A Marcha pela Liberdade, um protesto organizado pela Plataforma Cívica, principal partido da oposição
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A Marcha pela Liberdade, um protesto organizado pela Plataforma Cívica, principal partido da oposição

RADEK PIETRUSZKA/EPA

A Marcha pela Liberdade, um protesto organizado pela Plataforma Cívica, principal partido da oposição

RADEK PIETRUSZKA/EPA

Polónia. O país partido ao meio que desafia a Europa

A reforma judicial de Kaczynski levou Anna e outros milhares às ruas. Mas no país também há quem goste do tom desafiador do governo, que ameaçou esta quarta-feira contestar a UE em tribunal.

Em Varsóvia ouviu-se Chopin e gritou-se “Konstytucjia!”, que é nada menos do que a palavra “Constituição” em polaco. Em Cracóvia o tom foi mais de vigília, com minutos de silêncio complementados por discursos didáticos de advogados e juízes, que explicavam o que estava em causa. Anna Majewska esteve lá, uma entre as centenas de manifestantes iluminados pelas velas que traziam nas mãos. Foi a primeira vez que esta polaca de 23 anos participou num protesto político.

“Tenho muito medo de multidões. Foi por isso que não participei nas manifestações contra a lei do aborto, em outubro”, conta, referindo-se aos protestos do ano passado que levaram o governo polaco a recuar na sua intenção de criminalizar o aborto em todas as circunstâncias. “Desta vez, talvez porque sou estudante de Direito, percebi que a situação era muito séria. Talvez isto soe um pouco tonto, mas… Senti mesmo que, pela primeira vez na minha vida, fazia parte de algo maior.”

Foi assim que Anna ganhou coragem e saiu de casa praticamente todas as noites, durante uma semana do mês de julho, para ir até às portas do tribunal de Cracóvia, onde estava o ajuntamento. Também os pais de Anna, em Gliwice, na Silésia, se reuniram frequentemente com os vizinhos numa das praças da cidade. Como eles, milhares de outros polacos saíram à rua e juntaram-se em manifestações em mais de 200 cidades. Os mais jovens, a maioria com mais tempo livre por causa das férias escolares, aderiram em massa aos protestos organizados pelos mais velhos — um cenário raro de aproximação entre gerações.

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(Anna, à esquerda, com uma amiga no protesto em frente ao Tribunal de Cracóvia)

Em causa estava o sistema judicial do país e as propostas de lei feitas pelo governo do Lei e Justiça (PiS, na sigla original), a força política de direita populista que está à frente dos destinos da Polónia desde outubro de 2015, altura em que se tornou o primeiro partido na História democrática do país a conseguir uma maioria absoluta no Parlamento.

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Quase dois anos depois, o PiS enfrentou em julho uma onda de manifestações após ter proposto reformas que incluíam a demissão dos 83 juízes do Supremo Tribunal e a sua substituição por juízes nomeados pelo Conselho Nacional Judiciário. Este Conselho seria composto por membros políticos nomeados pelo Parlamento e por juízes também nomeados pelo Parlamento. Ou seja, na prática o PiS poderia passar a escolher diretamente os juízes da instância mais alta da Justiça nacional — algo que já tinha feito no Tribunal Constitucional, quando nomeou discricionariamente novos juízes em 2016. “O terceiro pilar na Polónia não está a funcionar corretamente. E o Tribunal Constitucional é uma farsa”, resume ao Observador Radoslaw Markowski, professor de Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais de Varsóvia, sobre a situação política no país.

A serem aprovadas, estas leis agravariam ainda mais a situação, como explicou Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia: “Cada uma destas leis, se adotada, corroeria seriamente a independência do sistema judicial polaco”, avisou o responsável europeu a 19 de julho. “Juntas, abolirão qualquer independência judicial que resta e colocarão a Justiça sob o total controlo político do governo.”

A perspetiva de Bruxelas abrir um processo contra a Polónia por “desrespeito do Estado de Direito” tornou-se então mais real, mas nem por isso Varsóvia tem descido o tom. Ainda esta quarta-feira, o governo polaco anunciou que continua a contestar as quotas de redistribuição europeia de refugiados: “A Polónia está preparada para defender o seu caso perante o Tribunal de Justiça da União Europeia”, declarou o ministério dos Negócios Estrangeiros em comunicado, acusando Timmermans de se intrometer na política interna do governo polaco. E, mesmo que o assunto seja levado ao Tribunal Europeu, nada garante que o PiS esteja disposto a acatar uma decisão que não lhe é favorável, como aconteceu com o desafio à ordem para suspender o abate de árvores na floresta de Bialowieza, a mais antiga da Europa e considerada património da Humanidade pela UNESCO.

Uma “deriva iliberal” e um autoritarismo paternalista

Continuavam os polacos a reunir-se em manifestações contra as novas leis da Justiça, quando, em finais de julho, o Presidente Andrzej Duda surpreendeu tudo e todos ao vetar duas das três propostas de lei. Duda, também ele eleito pelo PiS e considerado um membro leal do partido, aprovou apenas uma lei que permite ao ministro da Justiça ter mais influência na nomeação de juízes em tribunais secundários. Em breve, caberá ao próprio Duda apresentar as suas alternativas às propostas que vetou.

Presidente polaco veta leis que condicionavam justiça ao poder político

Mas o que terá levado o Presidente a travar o seu próprio partido? Para os polacos ouvidos pelo Observador, não foi o peso das ruas a forçar a mão de Duda. “Ele é tratado como um fantoche do governo, as pessoas fazem piadas sobre ele constantemente. Penso que este foi um momento para ele tomar uma posição”, diz Anna. O professor Markowski, por seu lado, destaca as posições críticas de outros países como os EUA, França e mesmo de alguns países de leste (normalmente aliados do PiS) como a República Checa. “Ele percebeu que era demais e por isso inventou este veto falso. Veremos o que ele propõe daqui a dois meses”, diz o académico, considerando que Duda esteve “envolvido neste golpe constitucional desde o início”.

O veto de Duda não põe um fim efetivo à vontade do executivo polaco de controlar os poderes judiciais — e de desafiar a União Europeia (UE). Jaroslaw Kaczynski, o líder do PiS e considerado por muitos primeiro-ministro de facto do país (oficialmente a eleita foi Beata Szydlo), repete as acusações de que os tribunais são ninhos de “pós-comunistas” subordinados “a “forças estrangeiras”. Desde que subiu ao poder, o PiS não só mexeu no Tribunal Constitucional, como substituiu funcionários públicos por pessoas leais ao partido, nomeadamente na televisão e rádio estatais. O modelo é o de um “sultão rodeado de políticos eunucos”, como descreveu o antigo membro do partido Ludwik Dorn.

“Na Polónia, temos líderes eleitos, mas Kaczynski não é um deles. Ele dá instruções ao Presidente e à primeira-ministra, mas não há sequer documentos que o provem. E está rodeado de pessoas totalmente dependentes dele — umas que o admiram, outras que são simplesmente antigos membros do apparatchik comunista a tentarem livrar-se do seu passado.”
Radoslaw Markowski

Markowski assina por baixo: “Na Polónia, temos líderes eleitos, mas Kaczynski não é um deles. Ele dá instruções ao Presidente e à primeira-ministra, mas não há sequer documentos que o provem. E está rodeado de pessoas totalmente dependentes dele — umas que o admiram, outras que são simplesmente antigos membros do apparatchik comunista a tentarem livrar-se do seu passado.” Para este especialista em Política Comparada, o modelo político ideal de Kaczynski tem aspectos semelhantes ao instaurado pelo Estado Novo em Portugal, seja nas tentativas de enfraquecimento de sindicatos e media, seja nas ligações à Igreja Católica ou no foco na família tradicional. “É claro que não estamos nos anos 40”, diz Markowski, que também destaca a questão colonial como um ponto diferente, “mas temos esta ideia do Estado contra a sociedade civil e acima de tudo o resto”.

PiS tem apoio de um boa parte da população

Parece cada vez mais claro que a Polónia do PiS caminha a passos largos para um tipo de “Estado iliberal” como o promovido por Viktor Orbán, na Hungria, como o próprio primeiro-ministro húngaro defendeu num discurso em 2014. Só que enquanto o Fidesz de Orbán se tem mantido no poder através de claras maiorias políticas, o apoio popular do PiS é mais fraco. Apesar de ter conquistado maioria absoluta no Parlamento, tal deve-se em parte ao sistema eleitoral, já que o partido reuniu 37,5% dos votos numa eleição onde 50% dos eleitores se abstiveram. “O PiS não venceu as eleições, a oposição é que as perdeu”, resume o professor Markowski. E as propostas de lei para a Justiça poderão ter diminuído ainda mais o apoio ao partido — o “Economist” cita inclusivamente uma sondagem que apurou que 76% dos polacos se opunham a estas medidas.

Tal não significa, contudo, que o Lei e Justiça não goze de um forte apoio entre uma parte muito importante do eleitorado. “A oposição pensa que quem os apoia são só as velhinhas das aldeias que vão à missa, mas isso não é verdade”, ilustra a estudante Anna, que identifica muitos jovens apoiantes do partido. “As propostas sócio-económicas deles agradam a algumas pessoas, que sentem que pela primeira vez repararam nelas. É uma questão de respeito — aqueles 500 zlotys [cerca de 120 euros] por mês dão-lhes mais dignidade e é isso que o governo anterior não compreendeu”, diz Anna, referindo-se ao abono de família introduzido pelo governo do PiS, uma das suas medidas mais populares.

A Polónia não tem indicadores económicos preocupantes, bem pelo contrário, tendo gozado de um crescimento acelerado na última década, alimentado em parte por fundos europeus — a maior fatia da UE vai todos os anos para o país, que recebeu 67 mil milhões de euros no período 2007-2013 e aumentou para 86 mil milhões no orçamento 2014-2020. Contudo, o país é também um grande exportador de mão-de-obra, com mais de dois milhões de polacos a trabalhar no estrangeiro, sobretudo noutros países da UE. Para os mais novos, a emigração é uma forma de fugir ao desemprego (14% entre os jovens, mesmo assim uma percentagem baixa por comparação com os países do sul da Europa), aos baixos salários e à insegurança laboral.

Jaroslaw Kaczynski, líder do PiS e considerado por muitos como governante efetivo do país (SEAN GALLUP/GETTY IMAGES)

Getty Images

O exemplo de Anna Pasternak, contado pelo jornalista britânico James Meek num artigo de abril deste ano, não é invulgar: aos 37 anos, esta polaca já tinha trabalhado num aviário, num supermercado e em fábricas de automóveis, pastilhas, fraldas e chocolates, recebendo salários que oscilavam entre os 200 e os 500 euros por mês. “Na fábrica de chocolate, o trabalho era extenuante, tínhamos de trabalhar no duro e os salários eram muito baixos”, diz Pasternak. “As pessoas sentiam que eram tratadas como lixo. O líder da equipa chegava e gritava: ‘Vocês são a pior brigada da fábrica! Se não conseguem aguentar isto, são os piores!’” Pasternak saiu antes do final da temporada e arranjou um trabalho na Donaldson. Continua à espera de conseguir um contrato permanente. Como ela, estão milhares de outros polacos, naquele que é o segundo país da UE com mais contratos de trabalho temporários (o primeiro é Espanha, o terceiro é Portugal). Ao todo, 23% dos contratos na Polónia são temporários.

Muitos destes jovens descontentes fazem parte da base de apoio do PiS, que soma e segue também entre parte da população mais velha, agradada com o caráter conservador do partido. Mas não só: “O Lei e Justiça agrada àqueles que estão frustrados com o ritmo lento do progresso económico. Os seus eleitores mais fiéis não são os pobres, mas sim a classe média. As famílias fartas das escolas e creches delapidadas, bem como os pequenos empresários e donos de lojas que se sentem ameaçados pelas grandes cadeias internacionais. São o tipo de eleitor que quer que o PiS garanta o subsídio de 500 zlotys por cada novo filho e que reduza a idade da reforma dos 67 para os 65 nos homens e para os 60 nas mulheres”, resume a revista alemã “Der Spiegel”.

23%

De todos os contratos na Polónia são temporários, o segundo maior valor na UE

Eurostat

A maioria dos apoiantes do Lei e Justiça aprecia a retórica dura de Kaczynski — que em 2015 acusou os migrantes de trazerem “cólera e disenteria” para a Europa — e as suas teorias da conspiração. Ainda em julho, durante os debates sobre a reforma judicial, um deputado ousou falar em Lech Kaczysnki, o irmão gémeo do líder do PiS que morreu num acidente de avião em Smolensk, na Rússia, dizendo que ele não ousaria propor medidas destas. “Não ousem limpar as vossas caras traidoras com o nome do meu falecido irmão”, declarou Kaczynski, exaltado. “Vocês destruíram-no, vocês mataram-no!”, gritou, ressucitando a teoria da conspiração altamente difundida de que o acidente de Smolensk teria sido um homicídio político, programado pelos russos e apoiado pelo governo polaco.

Forçar a mão de Bruxelas

A Polónia é agora uma sociedade dividida, com um discurso público endurecido, propagado por um governo determinado em fazer frente a Bruxelas. Na sequência do anúncio das medidas judiciais, a Comissão Europeia enviou um aviso formal a Varsóvia, dizendo-se preocupada com o poder que tais leis dariam ao ministro da Justiça. “A independência dos tribunais polacos seria minada”, escreveu.

Mesmo depois de o Presidente Duda ter anunciado o seu veto, a 24 de julho, a Comissão decidiu que, se as propostas de lei forem aprovadas de uma forma ou de outra, poderá invocar o famoso Artigo 7, que retiraria os direitos de voto à Polónia no palco europeu. No entanto, qualquer sanção desse tipo pode esbarrar no muro de Orbán — a decisão tem de ser unânime entre todos os Estados-membros e o primeiro-ministro húngaro já disse que não tenciona votar a favor de uma medida deste tipo.

Para o professor Markowski, contudo, o veto de Orbán não está escrito na pedra. E o diretor do Estudo das Eleições Nacionais Polacas tem fé na capacidade da UE de arranjar formas alternativas de pressionar o governo polaco, como o atraso na entrega de fundos comunitários. “É claro que, como polaco, isto me magoa, mas penso que a Europa devia tomar uma posição. Devia pedir a este país que viola a sua própria Constituição e os princípios democráticos que siga o seu próprio caminho”, declara. “Consigo imaginar Vladimir Putin a abrir uma garrafa de champanhe com cada ação deste governo polaco… É como ter um cavalo de Tróia dentro da Europa.”

Andrzej Duda, o Presidente polaco e também membro do PiS (PAWEL SUPERNAK/EPA)

PAWEL SUPERNAK/EPA

Ao Observador, o professor Ulrich Sedelmeier, especialista em relações externas da UE da London School of Economics, defendeu uma visão mais conservadora, garantindo que Orbán vetará quaisquer sanções à Polónia, mas admitindo a possibilidade de propostas alternativas: “Há uma sugestão da professora Kim Scheppele de que a UE pode abrir um procedimento de acordo com o Artigo 7.1 (risco sério e persistente de uma falha no Estado de Direito) que seria mais fácil de aprovar, já que os Estados que foram alvos deste procedimento [caso da Hungria] não poderiam votar no Artigo 7.2 [que impõe sanções]. Mas a minha opinião é que não é isso exatamente que o Artigo 7 diz”.

Os polacos têm o índice de apoio à União Europeia mais elevado dos 28, com 77% a favor da manutenção no bloco europeu — razão pela qual qualquer tentativa de o governo abandonar o grupo europeu seria, para já, um desastre. “Penso que Kaczynski está a tentar sair da UE, mas em vez de fazer um referendo, está a tentar que sejam aplicadas sanções à Polónia”, avança Anna. “Assim ele pode dizer ‘estamos a lutar contra a UE para defender os interesses polacos’ e cada sanção é uma vitória para a sua propaganda.”

Sedelmeier, pelo contrário, crê que a imposição de sanções só convencerá os já convertidos — “podem conseguir mobilizar os apoiantes hardcore, mas duvido que ganhem muito mais do que isso”. Já Markowski acredita que Kaczynski tem uma estratégia de tentar forçar o braço europeu contra a Polónia, esperando que até às próximas eleições consiga alterar a perceção pública face à Europa. Para já, entre os apoiantes do PiS, quase metade (48%) já crê que a Europa deveria devolver alguns poderes aos governos nacionais.

77%

Dos polacos apoiam a manutenção na UE, o valor mais elevado dentro da União

Estudo da Fundação Bertelsmann

Anna, nascida e criada numa pequena cidade da Silésia, estuda hoje Direito numa das melhores universidades do país, a Jaguelónica, em Cracóvia — a mesma onde o Presidente Duda se licenciou, também em Direito. Mas se para o Presidente polaco a UE tem estado “no caminho dos países” e tem feito “demasiadas exigências aos Estados-membros”, para ela a UE foi essencial à sua vida, permitindo-lhe estudar e viajar. “Amo a Polónia, mas sinto-me europeia”, resume, sem hesitações.

A jovem de 23 anos preocupa-se com o futuro da Polónia na Europa, mas, mais do que isso, preocupa-se com o futuro dentro da Polónia. Quando terminar o seu curso, o PiS poderá ou não ter renovado o mandato nas eleições de 2019. Mas quem sabe o que mais poderá ter mudado num país onde se ouvem gritos de “assassinos!” no Parlamento e de “Constituição!” nas ruas? Anna só tem uma certeza: “Este governo não irá governar para sempre. Pode durar cinco anos ou 20, mas irá acabar”, garante. Depois, faz uma pausa e dispara de rajada o que mais a preocupa: “O problema é que, quando acabar, teremos de reconstruir o respeito mútuo. Essa é que é a parte difícil.”

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