Não é só em Nova Iorque que cai neve, enquanto há sol noutro país. Também no norte da Europa, no que ao futebol diz respeito, o talento desponta em avalanche. O Benfica detetou o fenómeno e não deslizou no gelo quando se dirigiu à Escandinávia para trazer dois nomes a quem vendeu a ideia de que lhes faz falta Lisboa para se sentirem felizes.
“Podes apanhar -10, -15, -20 graus no inverno”, descreve o treinador Vítor Gazimba, que passou seis anos na Noruega e dois na Suécia. “Fazem-se jogos oficiais de março a novembro por causa do inverno”, diz. Além do calendário diferente do praticado em Portugal e noutros países, também a superfície de jogo sofre. “A grande maioria dos estádios tem relva sintética ou híbrida. A relva natural exige muito trabalho para estar em boas condições”, afirma o português.
Independentemente do piso em que jogam, os jogadores nórdicos são desde cedo o foco dos clubes que os tentam desenvolver. Vítor Gazimba, atualmente treinador adjunto do Pogon Szczecin da Polónia, orientou a equipa B dos noruegueses do Stromsgodset, a equipa principal do Kongsvinger, clube do mesmo país, e o Orebro SK da Suécia. Ao longo do percurso na Escandinávia, detetou uma filosofia específica no futebol do norte da Europa.
“Existe muito o conceito de talent developer, que é uma pessoa dentro da estrutura do clube que é responsável pelos principais talentos, aqueles que são mais promissores para chegarem à equipa principal, tenham eles a idade que tiverem. É uma pessoa que se desmultiplica pelos diferentes escalões onde estão esses jogadores para lhes dar uma atenção maior e um acompanhamento redobrado e individualizado a esse tipo de jogadores. Em Portugal, a visão é fazer uma boa equipa e, dentro de um coletivo, as individualidades acabam por crescer. Na Noruega, em vez do centro ser colocado na equipa, é mais no desenvolvimento da pessoa e da maximização do indivíduo. Talvez por ser um país com grande tradição em desportos individuais”, descreve o técnico.
“É fantástico treinar jogadores escandinavos”, diz a voz de experiência, Hugo Pereira, antigo adjunto do Rosenborg e ex-treinador principal do Ranheim, também clubes noruegueses. “Os problemas que tenho com os jogadores da Escandinávia é ensiná-los a não fazer demasiado, a respeitarem o corpo, a descansarem e a convencê-los que o descanso faz parte da periodização. Eles querem treinar todos os dias a toda a hora, porque acham que é só assim que melhoram. Os treinadores não têm problemas com a aplicação dos treinos, o que está à vista de quem quiser assistir”, destaca. “Os treinos na Noruega são todos abertos”, continua Hugo Pereira. “Qualquer pessoa pode chegar ao Rosenborg e ver um treino, até um adversário. Não há uma academia a quilómetros de distância do centro, onde os jogadores podem estar em paz. Aqui, as academias não são espaços exclusivos”.
Não é só a Noruega que tem lançado jogadores de relevo no futebol mundial. Quando visitou o Nordsjaelland, em 2016, Hugo Pereira viu o “Ajax da Dinamarca”. O técnico de 44 anos destaca a maneira como os dinamarqueses “preparam os jogadores do ponto de vista holístico, não só para o desempenho no campo, mas para tudo aquilo que representa ser um jogador de futebol”. Desde cedo, os jogadores da formação recebem “apoio psicológico, apoio na comunicação com a imprensa, apoio sobre a vida fora do futebol e apoio familiar”, complementa.
É desta forma que se criam condições para que jovens de 15 anos possam estarem prontos para jogar a nível sénior. Vítor Gazimba destaca que o método utilizado para potenciar os atletas passa por acelerar o seu maturação. “Pode não ser na primeira divisão ou na segunda divisão. Pode ser no terceiro nível, em alguns dos casos, mas o que acontece é que jogam com jogadores na casa dos 30 anos que estiveram na primeira divisão e que entretanto baixaram um pouco. É uma das vias que os nórdicos têm escolhido para produzir jogadores e cada vez dá mais frutos”.
Casper Tengstedt e Andreas Schjelderup: produtos da fábrica
Vítor foi um dos últimos treinadores de Martin Odegaard, atual jogador do Arsenal, na Noruega. Quando o técnico português chegou à equipa B de do Stromsgodset, encontrou um jovem de 15 anos a jogar como sénior que “não tinha nada a ver com a média” e que “era genial em tudo o que fazia”. Na mesma época, Odegaard subiu à equipa principal da equipa norueguesa e, em janeiro de 2015, com 16 anos transferiu-se para o Real Madrid. “O Odegaard foi um jogador à frente do seu tempo. Foi dos primeiros desta fornada a sair”, diz o técnico. Mais tarde, Haaland, avançado do Manchester City, deixou o Molde para assinar pelo Red Bull Salzburg.
Odegaard e Haaland são considerados os nomes que colocaram os países nórdicos na rota de viagem dos olheiros dos grandes clubes. Hugo Pereira diz que as mudanças dos dois jogadores provocaram um fenómeno de “inflação” dos jogadores escandinavos e, em específico, os noruegueses. “Os clubes apostam muito nos jogadores jovens e locais e querem lucrar com isso. O que o Haaland e o Odegaard trouxeram ao futebol norueguês foi que influenciaram muito o mercado do jogador norueguês. Os clubes sabem que os escalões jovens são uma grande fonte de rendimento”.
Para obter produtos com selo de qualidade, o Benfica teve que abrir os cordões à bolsa. Ao adquirir Casper Tengstedt, o Benfica teve que pagar sete milhões de euros aos noruegueses do Rosenborg, sendo que o negócio pelo avançado dinamarquês de 22 anos pode chegar aos dez milhões mediante objetivos.
✍️ Bem-vindo, Casper Tengstedt!
???????? ???? Welcome!#EuAmoOBenfica || #CasperTengstedt pic.twitter.com/sNzm77fRxS
— SL Benfica (@SLBenfica) January 11, 2023
Os valores da contratação de Andreas Schjelderup são ainda mais altos. Os encarnados vão pagar ao Nordsjaelland cerca de dez milhões pelo extremo de 18 anos, com o negócio a poder estender-se até aos 15 milhões também mediante a concretização de objetivos. Schjelderup era um nome já bastante falado para reforçar o Benfica. Pelo contrário, Casper Tengstedt aterrou em Lisboa da noite para o dia.
Como joga Schjelderup, o jovem que o Benfica não quer deixar fugir e vai ser a “figura da Noruega”
“O Casper Tengsted entra no Rosenborg a meio da época passada e, quase sozinho, garante a qualificação do Rosenborg para as competições europeias. Levou a equipa às costas. Marcou 15 golos em 14 jogos. Tem uma capacidade de finalização muito acima da média para a idade que tem. É um jogador veloz, de contra-ataque. Ataca muito bem o espaço nas costas da defesa e é uma ameaça constante. Quando estava no Midtjylland, era extremo. No Rosenborg, jogava num sistema de 5x3x2″, resume Hugo Pereira. O ponta de lança dinamarquês tem características distintas dos jogadores que o Benfica tem para a posição. Caso seja opção do treinador encarnado, Roger Schmidt tem um jogador mais capaz de oferecer apoio à saída de bola longa, especificamente quando cai nos flancos para servir de referência. Simultaneamente, acrescenta a eficácia em frente à baliza de que o alemão tanto se tem queixado.
“Tengsted cai muito nos corredores, é extremamente veloz e tem uma movimentação muito vertical. É muito económico nos movimentos. Não faz movimentos que não sejam verticais e que não sejam para ir para a baliza e que não sejam para ter a bola e atirar à baliza nos segundos seguintes”, conclui o português.
Er det noen i Eliteserien som er bedre enn Casper Tengstedt akkurat nå?????@RBKfotball pic.twitter.com/wtAa4Ef7N4
— Eurosport Norge (@EurosportNorge) September 29, 2022
O Benfica ataca o final da época com dois novos talentos nórdicos que se juntam a Aursnes. Para Vítor Gazimba, “Casper Tengsted e Andreas Schjelderup são jogadores de futuro, contratações pensadas a médio prazo mesmo que as características deles assentem bem no que é o futebol português”. Para o adjunto do Pogon, os encarnados encontram-se a preparar o futuro. “O Enzo pode sair a qualquer momento e o Benfica, como qualquer bom clube, tem que pensar no que são os próximos passos”. Hugo Pereira considera que se trata “daquele tipo de jogadores que nos tiram da cadeira na bancada”.
Para os jovens jogadores, Portugal pode não ser um contexto fácil. “A Noruega é um país que não tem um único jornal desportivo. A comunicação social é generalista e o Casper vai chegar a um país que tem três jornais e dezenas de programas de televisão só para falar de futebol. É completamente diferente. Aquilo que ele faz no campo vai ser dissecado ao milímetro”, diz Hugo Pereira. O português deixa a ressalva de que “Casper está mais preparado para lidar com a pressão, porque o Rosenborg tem pressão diária e constante para ganhar. Ainda assim, ganhar no Rosenborg tem muito pouco a ver com o que é ter que ganhar no Benfica”, ao contrário do que acontece com Schjelderup, que jogava no Nordsjaelland que “não é um clube cuja ambição seja ganhar”, mas sim formar jogadores. Para o ex-Ranheim, é preciso ter em conta que Tengsted e Schjelderup vêm de um contexto, onde “são estrelas das companhia e vão ter que se adaptar ao Benfica, onde são mais um”.