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Como nenhum outro, a autora pinta a vida da geração millennial – ela que, por isso mesmo, se transformou no seu principal símbolo dentro dessa geração. Está lá tudo: as personagens, as suas preocupações, a sua faixa etária, a forma de falar, a relação particular de cada um com o seu tempo
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Como nenhum outro, a autora pinta a vida da geração millennial – ela que, por isso mesmo, se transformou no seu principal símbolo dentro dessa geração. Está lá tudo: as personagens, as suas preocupações, a sua faixa etária, a forma de falar, a relação particular de cada um com o seu tempo

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

Como nenhum outro, a autora pinta a vida da geração millennial – ela que, por isso mesmo, se transformou no seu principal símbolo dentro dessa geração. Está lá tudo: as personagens, as suas preocupações, a sua faixa etária, a forma de falar, a relação particular de cada um com o seu tempo

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

Porta-voz de uma geração ou autora de uma fórmula eficaz: de onde vem o sucesso de Sally Rooney?

É a carga emocional que dá às narrativas da irlandesa tanta empatia, mas ao quarto romance, "Intermezzo", é óbvio que existe um "método Rooney" que funciona — ensaio crítico de Ana Bárbara Pedrosa.

Foi publicado mais um livro de Sally Rooney, que, aos 33 anos, já tem filas de leitores à espera nas noites dos lançamentos dos livros. É o quarto romance da autora, e mostra-a as características a que nos habituou nos anteriores. Já lá vamos. Em primeiro lugar, uma volta ao passado, em jeito de resumo panorâmico, seguindo a ordem das publicações em inglês.

Em 2017, a autora irlandesa estreou-se com Conversations With Friends, que em Portugal foi publicado sob o título Conversas Entre Amigos, pela Presença. Em 2022, chegou à HBO a adaptação do livro para série. Como se verá, o potencial da prosa para ser vertido em série televisiva não se esgota aqui. Há qualquer coisa de imagético no que Sally Rooney escreve, voltado para a acção, para a cena – assim que o leitor abre um livro, está metido com a gente que lá está. Este romance, que logo conquistou crítica e leitores, já traz as características que marcam agora, de forma indubitável, o lugar de Rooney no panorama literário irlandês e internacional. Como nenhum outro, a autora pinta a vida da geração millennial – ela que, por isso mesmo, se transformou no seu principal símbolo dentro dessa geração. Está lá tudo: as personagens, as suas preocupações, a sua faixa etária, a forma de falar, a relação particular de cada um com o seu tempo – e, portanto, a relação desta faixa etária com o tempo actual, que vai desde a forma como se encara a cama ou as relações humanas às questões de habitação. Por isso, ler Rooney sabe a ver a vida diária, pegando-lhe também nas entranhas.

Neste primeiro livro, o leitor segue a vida de Frances: com 21 anos, estudante em Dublin, aspirante a escritora, gosta – digamo-lo à millennial – de curtir a vida. À noite, actua em recitais de poesia com Bobbi, a sua melhor amiga, com quem teve um caso. Após uma entrevista a Melissa, uma conhecida jornalista, cria-se um grupo de três amigas, sendo que a última traz Nick, o marido, iniciando-se uma narrativa que gira em torno de relações e festas. Com uma prosa seca, dirigida à acção, a autora não apenas dá ao leitor a vida de Frances, que é o que se intui no início, como lhe dá as das outras três personagens, tecendo uma teia que, mesmo sendo complexa, se abre de forma surpreendentemente simples na cabeça do leitor.

A capa de "Intermezzo", de Sally Rooney, na edição portuguesa da Relógio D'Água (tradução de Marta Mendonça)

Ora, com a cabeça metida na ideia de explorar o âmago das relações humanas da contemporaneidade, do seu meio (Irlanda, jovem), Sally Rooney avançou para Pessoas Normais, publicada no original no ano a seguir ao primeiro romance (em Portugal pela Relógio D’águam como tem sucedido desde então com os livros que se seguiram). Nesta altura, já o sucesso precedia o livro, embora este tenha, em larga escala, suplantado o anterior – e também ele foi parar à HBO. Ali, Sally Rooney, como num quadro, teceu a vida de Connell e Marianne numa pequena cidade irlandesa. O estilo é à comédia romântica, mas moderna, e sem uma sensação de Disney: ele é popular, ela é solitária. E os dois iniciam uma relação que se faz pelo indizível: falando de banalidades, atraem-se um ao outro.

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A forma como a autora tratou a relação, tão feita de silêncios, não é para todos: o relato é intenso, cirúrgico, emotivo, sem gorduras. E os silêncios também ecoam na cabeça de quem lê, maculado pelo desconforto alheio. A intensidade ali descrita, claro, está ligada à idade das personagens – a idade em que tudo é ainda futuro e sabe a primeira vez. No início, Rooney descreve uma paixão tão intensa que é apenas amargura. Um espera pela outra, a outra desespera na espera. Entre um aparente quase nada, a autora cria a relação: há conversas quando se encontram (e nem sempre) e há o silêncio na escola, de quem vive a intimidade de um quarto enquanto finge que não se conhece na escola. Entre os dois, a vida vai avançando, e é aqui que Rooney triunfa: não há acasos a mais, não há coincidências que pareçam pertencer à ficção, tudo é bem doseado, incluindo a emoção – mesmo nos momentos em que sabe a coisa intensa. Enquanto lê, o leitor sente que tem a vida nas mãos – que agarra aquela gente, que está com ela à mesa ou nos lençóis.

Em "Intermezzo", o conjunto de personagens faz-se amplo, trazendo grande abrangência à narrativa, sobretudo emocional. É que, por simples que pareça a prosa, a carga emocional está sempre lá. A fórmula parece fácil por isso – porque, para quem lê, a leitura é um deslize.

Com a publicação de Mundo Belo, Onde Estás?, em 2021, a autora sedimentou o caminho literário feito até ali, enquanto se meteu em novas incursões, com longas partes epistolares. Por um lado, manteve a prosa sem rodriguinhos, sem manias, sem erudições escusadas, em busca da aprovação intelectual do leitor. Mais uma vez, tudo sabe a ambiente cinematográfico, desta vez com quatro jovens. A narrativa foca-se especialmente em Alice, romancista bem sucedida que se muda de Dublin para uma terra pequena. Ali conhece Felix, que trabalha num armazém. Como isto é a vida, lá se apaixonem. Em Dublin, ficou Eileen, a melhor amiga de Alice, que reata com o ex-namorado, Simon, que conhece desde a infância.

A narrativa consiste na acção entre Alice e Felix (cinematográfica, portanto) e cartas trocadas entre as duas amigas (a maior parte do romance). No decorrer da acção, vê-se ainda a forma como o sucesso de Alice é intimidante para Felix, que, para lidar com isso, tenta humilhá-la, invertendo os papéis. No caso, torna-se difícil, para quem lê, entender as estruturas desta relação: Felix parece nada ter para dar, e as conversas mais emotivas, por parte de Alice, parecem coisa desfasada. Assim, a materialização da relação, que nasceu no Tinder e trouxe constrangimento no início, acaba por tornar a narrativa manca, não se conseguindo o efeito de verdade e de naturalidade dos anteriores – e isto é reforçado noutras opções, com uma tendência excessiva da autora para explicar o que não tem de ser explicado. Por exemplo, nos momentos pré-cama, há longas conversas, até filosóficas – e depois a própria cama é tratada de forma rápida, displicente, robótica. Ou seja, ao contrário dos outros livros mencionados, e do que mencionaremos a seguir, aqui há uma quebra de plausibilidade e há picos emocionais incompreensíveis.

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A forma como Rooney trata a melancolia também é um dos seus traços distintivos. Ao lê-la, vê-se que a vida passa, a juventude também, e não há garras que a atem

Getty Images for Hulu

Ao mesmo tempo, o livro é marcado por uma excessiva teorização de tudo, que chega ao leitor de forma aparentemente aleatória. Alice e Eileen, por exemplo, misturam nas suas cartas vida pessoal com teoria política. Num momento, fala-se de um engate; noutro, disserta-se sobre teoria laboral. O preço da renda de Eileen é suficiente para se dissertar sobre a forma como o conservadorismo passou a ser associado a um capitalismo de mercado opressor. Da banalidade à teoria, são duas letras de distância – e é aqui que Rooney perde o que Rooney é famosa por dar. Seja como for, o leitor continua em cena com as personagens, os diálogos são vivos, o discurso directo parece até ter timbre.

Ora, com Intermezzo, publicado agora, Sally Rooney lima as pontas que deixou por limar no romance anterior. De novo, as suas qualidades tornam-se evidentes – e deixa cair o que não serve para nada além de catequizar. O conjunto de personagens faz-se amplo, trazendo grande abrangência à narrativa, sobretudo emocional. É que, por simples que pareça a prosa, a carga emocional está sempre lá. A fórmula parece fácil por isso – porque, para quem lê, a leitura é um deslize. Mas a aparente leitura fácil também tem essa carga permanente que cria o desconforto. Ao colocar os leitores em cena com a personagem, à voyeur, este apanha-se na cama alheia, sente as emoções dos outros. Por isso, a leitura já leva uma certa sensação de melancolia, e isto em qualquer um dos eixos. A forma como Rooney trata a melancolia também é um dos seus traços distintivos. Ao lê-la, vê-se que a vida passa, a juventude também, e não há garras que a atem.

Há dois elementos fundamentais na escrita de Sally Rooney: a condução imagética da cena, o que faz com que o leitor visualize tudo e que torna a produção da autora tão propícia a adaptações a formatos audiovisuais; densidade emocional constante, estando as cenas pejadas de coisas por dizer, de expectativas, de ironias, de alguma perdição, o que faz com que o leitor se prenda, ganhando empatia.

Em Intermezzo, há dois irmãos unidos por laços de sangue, um passado e pouco mais. Peter, 30 e poucos anos, é advogado em Dublin, a atravessar o luto pela morte do pai, e a tentar gerir a vida entre duas mulheres: Sylvia, amor de longa duração, com quem terminou por Naomi, uma estudante universitária que traz uma espécie de juventude descomprometida à narrativa. Já Ivan, de 22 anos, é jogador de xadrez, sem grandes apetências sociais, e inicia uma relação com Margaret, muito mais velha, separada mas ainda não divorciada. Nestes cenários, tudo é possibilidade, não se sabe para onde é que vida arrancará.

Enquanto mantém as características que aqui mencionámos, presentes principalmente nos dois primeiros romances, a autora explora o desfasamento – o desconforto – de relações em que as questões etárias são um peso. Há que notar, até porque é impossível não fazê-lo, e isto será parte do estrondoso sucesso de Sally Rooney, que em cada episódio há duas coisas: por um lado, há a condução imagética da cena, o que faz com que o leitor visualize tudo e que torna a produção da autora tão propícia a adaptações a formatos audiovisuais, ou seja, o enredo tem peso considerável na narrativa; por outro, há uma densidade emocional constante, estando as cenas pejadas de coisas por dizer, de expectativas, de ironias, de alguma perdição, o que faz com que o leitor se prenda, ganhando empatia, e também com que o romance não seja um mero conjunto de didascálias. Os dois elementos juntos são a fórmula do sucesso, que Rooney tem repetido e aperfeiçoado, fazendo com que quem a lê queira virar as páginas – e, viradas todas, se ponha numa fila numa livraria na dia do lançamento das páginas seguintes.

As capas dos anteriores romances de Sally Rooney, nas edições portuguesas da Presença e da Relógio D'Água

Naturalmente, a identificação dos leitores coetâneos tem o seu peso. É fácil ver a quem é que Rooney agrada, e o público mais ou menos da sua idade, ou mais jovem – mas certamente da sua geração –, tem assegurado as tiragens elevadas. Ainda assim, seria errado fechá-la nisso. Os seus romances têm múltiplos méritos, e não merecem ser acantonados num nicho geracional. Pelo contrário, permitem, através da leitura, o diálogo intergeracional. É que Rooney pinta bem o que tenta pintar, e em cada pincelada há detalhe, camadas, múltiplas cores. O presente que retrata está imbuído de passado – em cada pequeno episódio corriqueiro, há tudo o que ficou para trás: por exemplo, a relação de Peter com Naomi vem carregada com a destruição da relação com Sylvia, e a nova relação com Sylvia vem carregada com a forma como morreu às mãos de Naomi –, e existe ainda a ideia de futuro, que, como é natural nesta geração, implica o medo de não assegurar coisas à partida básica, ainda que a vida se faça num lugar aparentemente seguro, sem que haja medo de uma insegurança a sério. Ou seja, a vida de Naomi, por exemplo, inclui o medo de não conseguir pagar a casa, mas nunca o de que um rocket lhe caia em cima.

Tudo isto faz com que uma geração se veja ali. É a carga emocional que Rooney confere à narrativa que obriga a que haja empatia, e é impressionante ver como essa carga nunca cede – sem que, por isso, a narrativa consiga fluir de forma escorreita. Não é que a literatura seja uma composição formulaica, mas não há como evitar dizer que a autora irlandesa se lançou ao teclado e construiu uma fórmula funcional.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

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