Foi publicado mais um livro de Sally Rooney, que, aos 33 anos, já tem filas de leitores à espera nas noites dos lançamentos dos livros. É o quarto romance da autora, e mostra-a as características a que nos habituou nos anteriores. Já lá vamos. Em primeiro lugar, uma volta ao passado, em jeito de resumo panorâmico, seguindo a ordem das publicações em inglês.
Em 2017, a autora irlandesa estreou-se com Conversations With Friends, que em Portugal foi publicado sob o título Conversas Entre Amigos, pela Presença. Em 2022, chegou à HBO a adaptação do livro para série. Como se verá, o potencial da prosa para ser vertido em série televisiva não se esgota aqui. Há qualquer coisa de imagético no que Sally Rooney escreve, voltado para a acção, para a cena – assim que o leitor abre um livro, está metido com a gente que lá está. Este romance, que logo conquistou crítica e leitores, já traz as características que marcam agora, de forma indubitável, o lugar de Rooney no panorama literário irlandês e internacional. Como nenhum outro, a autora pinta a vida da geração millennial – ela que, por isso mesmo, se transformou no seu principal símbolo dentro dessa geração. Está lá tudo: as personagens, as suas preocupações, a sua faixa etária, a forma de falar, a relação particular de cada um com o seu tempo – e, portanto, a relação desta faixa etária com o tempo actual, que vai desde a forma como se encara a cama ou as relações humanas às questões de habitação. Por isso, ler Rooney sabe a ver a vida diária, pegando-lhe também nas entranhas.
Neste primeiro livro, o leitor segue a vida de Frances: com 21 anos, estudante em Dublin, aspirante a escritora, gosta – digamo-lo à millennial – de curtir a vida. À noite, actua em recitais de poesia com Bobbi, a sua melhor amiga, com quem teve um caso. Após uma entrevista a Melissa, uma conhecida jornalista, cria-se um grupo de três amigas, sendo que a última traz Nick, o marido, iniciando-se uma narrativa que gira em torno de relações e festas. Com uma prosa seca, dirigida à acção, a autora não apenas dá ao leitor a vida de Frances, que é o que se intui no início, como lhe dá as das outras três personagens, tecendo uma teia que, mesmo sendo complexa, se abre de forma surpreendentemente simples na cabeça do leitor.
Ora, com a cabeça metida na ideia de explorar o âmago das relações humanas da contemporaneidade, do seu meio (Irlanda, jovem), Sally Rooney avançou para Pessoas Normais, publicada no original no ano a seguir ao primeiro romance (em Portugal pela Relógio D’águam como tem sucedido desde então com os livros que se seguiram). Nesta altura, já o sucesso precedia o livro, embora este tenha, em larga escala, suplantado o anterior – e também ele foi parar à HBO. Ali, Sally Rooney, como num quadro, teceu a vida de Connell e Marianne numa pequena cidade irlandesa. O estilo é à comédia romântica, mas moderna, e sem uma sensação de Disney: ele é popular, ela é solitária. E os dois iniciam uma relação que se faz pelo indizível: falando de banalidades, atraem-se um ao outro.
A forma como a autora tratou a relação, tão feita de silêncios, não é para todos: o relato é intenso, cirúrgico, emotivo, sem gorduras. E os silêncios também ecoam na cabeça de quem lê, maculado pelo desconforto alheio. A intensidade ali descrita, claro, está ligada à idade das personagens – a idade em que tudo é ainda futuro e sabe a primeira vez. No início, Rooney descreve uma paixão tão intensa que é apenas amargura. Um espera pela outra, a outra desespera na espera. Entre um aparente quase nada, a autora cria a relação: há conversas quando se encontram (e nem sempre) e há o silêncio na escola, de quem vive a intimidade de um quarto enquanto finge que não se conhece na escola. Entre os dois, a vida vai avançando, e é aqui que Rooney triunfa: não há acasos a mais, não há coincidências que pareçam pertencer à ficção, tudo é bem doseado, incluindo a emoção – mesmo nos momentos em que sabe a coisa intensa. Enquanto lê, o leitor sente que tem a vida nas mãos – que agarra aquela gente, que está com ela à mesa ou nos lençóis.
Com a publicação de Mundo Belo, Onde Estás?, em 2021, a autora sedimentou o caminho literário feito até ali, enquanto se meteu em novas incursões, com longas partes epistolares. Por um lado, manteve a prosa sem rodriguinhos, sem manias, sem erudições escusadas, em busca da aprovação intelectual do leitor. Mais uma vez, tudo sabe a ambiente cinematográfico, desta vez com quatro jovens. A narrativa foca-se especialmente em Alice, romancista bem sucedida que se muda de Dublin para uma terra pequena. Ali conhece Felix, que trabalha num armazém. Como isto é a vida, lá se apaixonem. Em Dublin, ficou Eileen, a melhor amiga de Alice, que reata com o ex-namorado, Simon, que conhece desde a infância.
A narrativa consiste na acção entre Alice e Felix (cinematográfica, portanto) e cartas trocadas entre as duas amigas (a maior parte do romance). No decorrer da acção, vê-se ainda a forma como o sucesso de Alice é intimidante para Felix, que, para lidar com isso, tenta humilhá-la, invertendo os papéis. No caso, torna-se difícil, para quem lê, entender as estruturas desta relação: Felix parece nada ter para dar, e as conversas mais emotivas, por parte de Alice, parecem coisa desfasada. Assim, a materialização da relação, que nasceu no Tinder e trouxe constrangimento no início, acaba por tornar a narrativa manca, não se conseguindo o efeito de verdade e de naturalidade dos anteriores – e isto é reforçado noutras opções, com uma tendência excessiva da autora para explicar o que não tem de ser explicado. Por exemplo, nos momentos pré-cama, há longas conversas, até filosóficas – e depois a própria cama é tratada de forma rápida, displicente, robótica. Ou seja, ao contrário dos outros livros mencionados, e do que mencionaremos a seguir, aqui há uma quebra de plausibilidade e há picos emocionais incompreensíveis.
Ao mesmo tempo, o livro é marcado por uma excessiva teorização de tudo, que chega ao leitor de forma aparentemente aleatória. Alice e Eileen, por exemplo, misturam nas suas cartas vida pessoal com teoria política. Num momento, fala-se de um engate; noutro, disserta-se sobre teoria laboral. O preço da renda de Eileen é suficiente para se dissertar sobre a forma como o conservadorismo passou a ser associado a um capitalismo de mercado opressor. Da banalidade à teoria, são duas letras de distância – e é aqui que Rooney perde o que Rooney é famosa por dar. Seja como for, o leitor continua em cena com as personagens, os diálogos são vivos, o discurso directo parece até ter timbre.
Ora, com Intermezzo, publicado agora, Sally Rooney lima as pontas que deixou por limar no romance anterior. De novo, as suas qualidades tornam-se evidentes – e deixa cair o que não serve para nada além de catequizar. O conjunto de personagens faz-se amplo, trazendo grande abrangência à narrativa, sobretudo emocional. É que, por simples que pareça a prosa, a carga emocional está sempre lá. A fórmula parece fácil por isso – porque, para quem lê, a leitura é um deslize. Mas a aparente leitura fácil também tem essa carga permanente que cria o desconforto. Ao colocar os leitores em cena com a personagem, à voyeur, este apanha-se na cama alheia, sente as emoções dos outros. Por isso, a leitura já leva uma certa sensação de melancolia, e isto em qualquer um dos eixos. A forma como Rooney trata a melancolia também é um dos seus traços distintivos. Ao lê-la, vê-se que a vida passa, a juventude também, e não há garras que a atem.
Em Intermezzo, há dois irmãos unidos por laços de sangue, um passado e pouco mais. Peter, 30 e poucos anos, é advogado em Dublin, a atravessar o luto pela morte do pai, e a tentar gerir a vida entre duas mulheres: Sylvia, amor de longa duração, com quem terminou por Naomi, uma estudante universitária que traz uma espécie de juventude descomprometida à narrativa. Já Ivan, de 22 anos, é jogador de xadrez, sem grandes apetências sociais, e inicia uma relação com Margaret, muito mais velha, separada mas ainda não divorciada. Nestes cenários, tudo é possibilidade, não se sabe para onde é que vida arrancará.
Enquanto mantém as características que aqui mencionámos, presentes principalmente nos dois primeiros romances, a autora explora o desfasamento – o desconforto – de relações em que as questões etárias são um peso. Há que notar, até porque é impossível não fazê-lo, e isto será parte do estrondoso sucesso de Sally Rooney, que em cada episódio há duas coisas: por um lado, há a condução imagética da cena, o que faz com que o leitor visualize tudo e que torna a produção da autora tão propícia a adaptações a formatos audiovisuais, ou seja, o enredo tem peso considerável na narrativa; por outro, há uma densidade emocional constante, estando as cenas pejadas de coisas por dizer, de expectativas, de ironias, de alguma perdição, o que faz com que o leitor se prenda, ganhando empatia, e também com que o romance não seja um mero conjunto de didascálias. Os dois elementos juntos são a fórmula do sucesso, que Rooney tem repetido e aperfeiçoado, fazendo com que quem a lê queira virar as páginas – e, viradas todas, se ponha numa fila numa livraria na dia do lançamento das páginas seguintes.
Naturalmente, a identificação dos leitores coetâneos tem o seu peso. É fácil ver a quem é que Rooney agrada, e o público mais ou menos da sua idade, ou mais jovem – mas certamente da sua geração –, tem assegurado as tiragens elevadas. Ainda assim, seria errado fechá-la nisso. Os seus romances têm múltiplos méritos, e não merecem ser acantonados num nicho geracional. Pelo contrário, permitem, através da leitura, o diálogo intergeracional. É que Rooney pinta bem o que tenta pintar, e em cada pincelada há detalhe, camadas, múltiplas cores. O presente que retrata está imbuído de passado – em cada pequeno episódio corriqueiro, há tudo o que ficou para trás: por exemplo, a relação de Peter com Naomi vem carregada com a destruição da relação com Sylvia, e a nova relação com Sylvia vem carregada com a forma como morreu às mãos de Naomi –, e existe ainda a ideia de futuro, que, como é natural nesta geração, implica o medo de não assegurar coisas à partida básica, ainda que a vida se faça num lugar aparentemente seguro, sem que haja medo de uma insegurança a sério. Ou seja, a vida de Naomi, por exemplo, inclui o medo de não conseguir pagar a casa, mas nunca o de que um rocket lhe caia em cima.
Tudo isto faz com que uma geração se veja ali. É a carga emocional que Rooney confere à narrativa que obriga a que haja empatia, e é impressionante ver como essa carga nunca cede – sem que, por isso, a narrativa consiga fluir de forma escorreita. Não é que a literatura seja uma composição formulaica, mas não há como evitar dizer que a autora irlandesa se lançou ao teclado e construiu uma fórmula funcional.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.