“Um banco é um sítio onde te emprestam dinheiro se conseguires demonstrar que não precisas dele” — esta foi uma das tiradas que ajudaram a eternizar Bob Hope, o comediante norte-americano que morreu em 2003, com 100 anos. Por alguma razão, a piada veio à memória de José, professor universitário e fundador de uma startup na área da biotecnologia, quando pediu ao financeiro da sua empresa para contactar a gestora do processo no IAPMEI e perguntar-lhe, uma vez mais, porque é que ainda não tinha chegado o apoio que tinha sido aprovado há vários meses e que estava a fazer falta para a atividade diária da startup. Incomodada, a gestora respondeu: “Têm de esperar, tenham paciência. Vocês já deviam saber que não podem estar dependentes, à espera do dinheiro“. “Então, mas pode-se contar ou não se pode contar?”, pergunta o empresário.
A história é contada por José, nome fictício de um empreendedor que entrou em contacto com o Observador depois de ler que, até julho, dos 30 maiores financiamentos europeus, só quatro tinham chegado às empresas — o restante foi para organismos ligados ao Estado. Nesse trabalho, também se falava sobre a falta de agilidade e os atrasos crónicos que exasperam muitos empresários que tentam recorrer aos fundos europeus, essencialmente geridos pelo IAPMEI, e acabam por encontrar nessa candidatura não um apoio mas um “pesadelo”, prejudicando a expansão da empresa, colocando em risco postos de trabalho e levando alguns empresários a ter de recorrer aos bancos ou a favores familiares (“com todos os problemas que isso acarreta”) para colmatar a falta de resposta dos serviços.
“O PT2020 não tem ‘problemas’. É mais do que isso. Chega a ser uma ferramenta perigosa“, comenta o investigador, que conhece pessoas “com problemas pessoais e familiares gravíssimos” por causa de projetos relacionados com fundos europeus. “Os meus parceiros, os meus investidores privados, já me começaram a dizer que em projetos futuros nem vale a pena fazer candidatura, para não estarmos à espera de uma coisa e a gerir o projeto com base em algo que é fantasioso”, revela.
Os atrasos na aprovação, reapreciação e financiamento de projetos foram notícia nos últimos dias, no Expresso, com base numa denúncia de um consultor que se queixou ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) de ter sido prejudicado pelos serviços “por não ter querido subornar os técnicos do IAPMEI”. Uma queixa que, soube-se depois, já terá dado origem a um inquérito por parte do DCIAP e da Polícia Judiciária em que oito funcionários do IAPMEI estarão a ser investigados por irregularidades — embora ninguém tenha, ainda, sido constituído arguido.
Ao contrário do que alega esse consultor — que garante “sempre ter ouvido falar de alegados casos de técnicos do IAPMEI que aprovavam ou aceleravam projetos a troco de subornos” — as várias fontes com que o Observador falou nos últimos dias garantem que nunca ouviram “falar de tal coisa”: desde empresários até consultores que trabalharam em “milhares de processos, envolvendo milhares de milhões de euros em vários quadros comunitários”. “Nunca ouvi falar de subornos”, comentou um experiente consultor do norte do país, ao Observador. Mas, mesmo que — a confirmar-se — esse tenha sido um fenómeno circunscrito, só terá acontecido porque existe um quadro de ineficácia que penaliza as empresas e a inovação em Portugal.
Ninguém ouviu falar em solicitações de subornos mas todas as fontes contactadas reconhecem que “existem, de facto, sensibilidades — para não dizer listas negras em que ninguém quer entrar“. E é por isso que não estão dispostos a dar a cara nem José nem Carlos, outro empresário que esteve dois anos à espera de saber a resposta a uma reclamação. Carlos (nome fictício) tinha feito uma candidatura ao PT2020 e esta foi rejeitada devido a erros “menores” em alguns cálculos. A empresa assumiu as responsabilidades, retificou os cálculos mas, depois, a resposta à reclamação demorou cerca de dois anos a chegar.
A certa altura, a empresa candidatou-se, também, aos fundos do Horizonte 2020, que são distribuídos diretamente a nível europeu, e conseguiu o apoio, o que compensou a falta de financiamento que se esperava do PT2020. Mas, no verão passado, a empresa teve uma resposta do PT2020 à reclamação feita dois anos antes — e foi uma resposta positiva. Não foi uma boa notícia: “Terem-nos atribuído o projeto dois anos depois causa-nos, agora, mais problemas do que se tivesse sido rejeitado“. Ou se rejeita o financiamento ou se tenta fazer uma adaptação da candidatura, mas “para isso — já fomos avisados pelas consultoras — mais vale cancelar e fazer uma candidatura nova”, garante.
Portugal 2020. Dos 30 maiores financiamentos europeus, Governo só fez chegar quatro às empresas
A pedido do Observador, uma consultora multinacional em Lisboa partilhou uma análise de vários processos recentes em que a empresa participou, o que permite ter uma ideia concreta da gravidade dos atrasos, frequentemente em empresas ligadas a setores inovadores em que os avanços não podem esperar.
- Na fase da aprovação (ou não) de candidaturas, a consultora refere uma candidatura submetida em setembro de 2016, com decisão prevista para fevereiro de 2017 — só foi comunicada a decisão em agosto de 2017;
- Quando o processo não é imediatamente aprovado, por alguma razão (como foi o caso de Carlos), as empresas podem fazer reclamações — e a saturação, aí, parece ser ainda maior. Num caso, as alegações foram submetidas pela empresa em junho de 2017 e havia um prazo de 40 dias úteis para que fosse feita uma reapreciação do processo nos pontos rebatidos pela empresa. Esse prazo de 40 dias terminaria no final de agosto de 2017, mas o resultado final só foi emitido em fevereiro de 2018;
- Tão ou mais graves são os atrasos no desembolso de apoios financeiros em candidaturas perfeitamente aprovadas e em curso. Uma empresa pediu ajuda à consultora para fazer um pedido de pagamento que foi entregue em setembro de 2017 mas só teve resposta em março de 2018. Num outro caso, houve uma “decisão de pedido de pagamento final com cerca de um ano de atraso”, relata a consultora.
“Caos” informático, pouca gente (e inexperiente) e instabilidade na liderança
A falta de recursos humanos, nas várias competências e papéis, parece ser a principal justificação para este tipo de ineficácias, aos olhos dos empresários e consultores. Mas não será só isso: na opinião de Carlos, o processo é “idiossincrático” porque “as avaliações estão nas mãos de pessoas que nem sempre têm a sensibilidade que se tem quando se está no terreno, a trabalhar em empresas desta área”. Um exemplo: Carlos conta a história de um amigo que, num processo semelhante, viu o gestor questionar despesas como leite em pó. “Colocaram em questão ser preciso leite em pó num laboratório — possivelmente pensou-se que alguém estaria a querer fundos do PT2020 para comprar leite lá para casa”, recorda.
Em novembro foi também noticiado que uma mudança nos sistemas informáticos (que tiveram de ser adaptados a 10 programas operacionais, cada um com diversas ramificações) estava a agravar a situação “caótica” dos serviços. Empresas à espera de respostas às candidaturas, já bem fora dos prazos, outras que aguardam por reembolsos de despesas, fundos comunitários retidos na ordem dos milhões de euros e empresas a dever seis meses de salário aos colaboradores.
Outro fator que terá agravado os problemas nesta segunda metade de 2018 é a contratação de pessoas com pouca ou nenhuma experiência naquelas funções. “Eu conheço gente muito boa, com muita qualidade, que está a fazer avaliação de projetos mas, infelizmente, acredito que não são a maioria“, comenta Victor Cardial, presidente da AConsultiip, uma associação portuguesa de consultores de investimento e inovação. Em conversa com o Observador, o especialista lamenta: “Há muita gente que entra para ali quase recém-licenciado, para fazer um estágio, para ‘tapar uns buracos’, e temos a sensação de que falta capacidade para os integrar da estrutura na melhor forma”.
Carlos também sente que, “de um modo geral, parece que estamos a lidar com pessoas muito novas, que imagino serem contratadas para a gestão básica do dia a dia, mas incapazes de tomar decisões ou fazer avançar processos de forma adequada”. Além disso, é tudo “demasiado formal” — “Se é preciso alguma coisa tem de se marcar uma reunião, é preciso coordenar agendas do diretor, do gestor do processo, é uma formalidade imensa”. O empreendedor compara esta formalidade com a experiência “muito informal com os apoios europeus do Horizonte 2020, onde qualquer coisa que é necessária trata-se com um simples e-mail“.
Na relação direta com o organismo europeu que gere os fundos do Horizonte 2020, há uma “maior sensação de que estão ali para nos ajudar, não é a mesma figura rígida de alguém que está ali, de forma algo robotizada, para cumprir regras e procedimentos”. Carlos conta que tem como gestor de processo (no Horizonte 2020) um sueco que está em Bruxelas — “Quando vou a Bruxelas falamos sempre um bocadinho e quando ele tem uma viagem a Lisboa contacta-me sempre, com grande informalidade, para nos vir visitar e conversarmos um pouco. Cria-se, quase, uma relação pessoal“, compara.
“Se o Horizonte 2020 não fosse tão mais competitivo, como naturalmente é, nem quereríamos ter qualquer relação com o PT2020”, acrescenta Carlos, lembrando que “as empresas não podem estar paradas“: “Temos investidores e objetivos acordados com eles — se não conseguimos o financiamento que está previsto temos de fazer com o que temos ou, em alternativa, ir aos bancos ou pedir dinheiro a investidores, o que normalmente implica ceder mais equity [porções do capital]. É um enorme desperdício de energia” que devia ir para o trabalho e para a pesquisa.
IAPMEI diz-se “limitado” na contratação e está a negociar com o Governo
Tanto Carlos como José deixam estas críticas mas salientam que têm uma visão construtiva: “Temos de fazer alguma coisa para melhorar”. O que não tem ajudado, porém, é que o IAPMEI tem vivido anos de grande instabilidade na liderança da equipa executiva. Em setembro de 2016 soube-se que Miguel Cruz, nomeado para o IAPMEI pelo governo de Passos Coelho em 2014, iria sair para a Parpública. Sucedeu-lhe, já em 2017, Jorge Marques dos Santos, mas pouco depois chegou aos 70 anos e atingiu o limite legal de idade para o exercício de funções em cargos públicos. Foi então que entrou Nuno Mangas, presidente do politécnico de Leiria desde 2009.
Nuno Mangas está em regime de substituição e está aberto um processo “urgente” de recrutamento, através da CReSAP, num mecanismo que prevê que se identifiquem três candidatos a apresentar ao membro do Governo. O Observador tentou contactar a assessoria do Ministério da Economia, para tentar obter uma estimativa de quando poderá haver um novo conselho diretivo para o IAPMEI, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Denúncia de subornos? IAPMEI não recebeu qualquer queixa
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O Observador questionou o IAPMEI, também, sobre a denúncia noticiada pelo Expresso de pedidos de suborno para acelerar ou aprovar candidaturas. “O IAPMEI não recebeu qualquer tipo de denúncia nem tem conhecimento sobre qualquer investigação que esteja a decorrer neste âmbito”, garante, acrescentando que “também não tem conhecimento das ocorrências invocados e associados a uma suposta queixa apresentada”.
“Quaisquer práticas dessa natureza, caso tivessem sido denunciadas, seriam objeto das averiguações e procedimentos disciplinares adequados, bem como da sua comunicação às autoridades de investigação criminal, tal como demonstrou ter procedido no passado”, nota o IAPMEI, salientando que “está atualmente a decorrer um inquérito interno para averiguação da veracidade dos diversos factos invocados nas referidas notícias”.
Já o IAPMEI explica os atrasos com vários fatores, incluindo o facto de o organismo se ter visto “limitado na possibilidade de reforçar ou, até, repor a perda de elementos das suas equipas“. Fonte oficial do IAPMEI explica ao Observador que em 2018 já foi possível reforçar as fileiras através da mobilidade interna na administração pública mas não é suficiente: “O IAPMEI está a equacionar medidas que permitam melhorar a sua capacidade de resposta em prol das empresas, incluindo a possibilidade de reforço das equipas em articulação com a nossa tutela“.
O IAPMEI salienta, também, que não é possível garantir o cumprimento dos prazos porque “o tempo de avaliação das candidaturas depende do número de candidaturas apresentadas — o qual é desconhecido até ao seu fecho. Só após terminado o concurso é que o IAPMEI pode iniciar a avaliação dos projetos”. Por outro lado, o PT2020 tem tido uma “procura muito superior à verificada no QREN“, o quadro comunitário anterior: menos de 9.000 candidaturas no QREN (entre 2007 e 2011) e mais de 17.000 no PT2020 (entre 2014 e até final de novembro de 2018), segundo os dados enviados pelo IAPMEI.
O organismo “tem vindo a tentar corresponder da melhor forma à elevadíssima procura verificada nos concursos, sem poder no entanto deixar de cumprir os requisitos e procedimentos técnicos de avaliação das candidaturas”. Ainda assim, garante o IAPMEI, depois de “um período inicial de dificuldade de resposta, tem sido possível reduzir o prazo médio de análise das candidaturas”: a média tem sido de “50,9 dias úteis em 2018, uma redução de cerca de 40% face ao verificado em 2016 e 2017”.
Acontece o mesmo nos pedidos de pagamento. “Comparando com o mesmo período do QREN, o número de pedidos de pagamento no Portugal 2020 é mais do que o triplo“, diz o IAPMEI, acrescentando que “os níveis de execução são, também, superiores: em período homólogo do QREN, o IAPMEI havia processado cerca de 382 milhões de euros de incentivos, enquanto no Portugal 2020, o IAPMEI processou mais de 1.212 milhões de euros de incentivos”.
Apesar de haver mais trabalho, em comparação com o QREN, há menos gente para o fazer, lamenta o IAPMEI. As melhorias que tem havido deveram-se, defende o organismo, a medidas como “ações de formação e sensibilização das empresas, de forma a evitar situações de incumprimento por parte das empresas, uma vez que um projeto sem incidentes é, logo à partida, um projeto que consome menos recursos”. Por outro lado, a nível interno, foram tomadas mais de 30 medidas de agilização e simplificação, por exemplo “a medida ‘carimbo 0‘, que eliminou a necessidade de carimbar os milhares de documentos de despesa apresentados pelas empresas e também o trabalho da sua verificação por parte dos nossos técnicos”.