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Pré-publicação. Churchill, Orwell e a luta de classes na Grã-Bretanha

Contemporâneos e ambos com funções importantes no combate contra aqueles que se opunham à liberdade, as duas figuras são protagonistas de um livro de que o Observador faz uma pré-publicação.

No livro “Churchill e Orwell: A Luta pela Liberdade”, Thomas E. Ricks propõe uma linha paralela entre Winston Churchill e George Orwell. Um político, outro escritor, ambos com visões que em vários pontos se cruzavam, sobre a guerra, a política, a sociedade e o futuro. Ambos, também, com um papel ativo na luta contra diferentes formas de opressão, opondo-se àqueles que atentavam contra direitos, liberdades e garantias fundamentais.

O excerto que o Observador pré-publica concentra atenções na opinião que tanto Churchill como Orwell tinham sobre as classes sociais na Grã-Bretanha, razões que as criaram e motivos para a respetiva transformação, influências, causas e consequências.

“Churchill e Orwell: A Luta pela Liberdade”, de Thomas E. Ricks (Edições 70)

1941

“George Orwell, enquanto ia assistindo à Batalha de Inglaterra e ao Blitz, nunca acreditou que a Luftwaffe conseguisse subjugar a Inglaterra: «Não é provável que o bombardeamento aéreo decida uma guerra de grandes dimensões.»

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Em muitos aspetos, Orwell não se deu bem com a guerra. «Não me aceitam no exército, pelo menos para já, por causa dos pulmões», disse ele a um amigo. Não foi uma surpresa: um exame médico realizado em 1938 mostrou que Orwell, com 1,99 m de altura, pesava apenas 72,12 kg, e a radiografia revelou manchas nos pulmões. Mas apesar disso e do seu ferimento no pescoço, Orwell continuou a fumar muito – cigarros fortes enrolados à mão. Procurou trabalho no departamento de relações públicas do Ministério da Aeronáutica, mas também não teve sorte. Eileen trabalhava na censura.

Com uma saúde mais robusta, Orwell teria provavelmente dado um grande correspondente de guerra, uma espécie de versão britânica de Ernie Pyle, mas com um sentimento mais forte do combate e mais inclinação para retratar os factos duros da guerra em vez de os atenuar, como Pyle às vezes fazia.

Orwell sentia que podia e devia contribuir mais para o esforço de guerra, mas não via como. «É terrível sentirmos-mos inúteis e ao mesmo tempo vermos em todo o lado patetas e pró-fascistas em trabalhos importantes», lamentou-se ele numa carta a um amigo. Um dia, num sinal de frustração, andou por Londres a arrancar cartazes pró-soviéticos. «Numa altura normal», confessou ele ao seu diário, «é contra os meus princípios escrever numa parede ou interferir no que outra pessoa escreveu.»

De forma significativa, a guerra pareceu impedir Orwell de escrever ficção durante anos. Não publicou nenhum romance entre 1939, o ano de publicação do fraquito Coming Up for Air, e O triunfo dos porcos, que começou a escrever em finais de 1943 e que foi publicado quando a guerra acabou na Europa, em 1945. Porém, tal como Churchill, Orwell extraiu energia da guerra. Em 1940, escreveu mais de trezentas peças de jornalismo, entre artigos, ensaios e recensões. Num artigo notável, arrasou W. H. Auden por causa de uma linha do poema «Espanha»: «a aceitação consciente da culpa no assassínio necessário.» Orwell ficou irritado com as três últimas palavras. «O tipo de amoralismo do Sr. Auden só é possível quando se é aquele género de pessoa que está sempre noutro sítio quando alguém carrega no gatilho», escreveu ele. «Muito do pensamento de esquerda é uma espécie de brincadeira com o fogo de gente que nem sequer sabe que o fogo queima.» Orwell sabia quase de certeza que Auden tinha partido para a América em 1939.

Winston Churchill com sete anos

No dia 17 de abril de 1940, Orwell escreveu uma nota autobiográfica reveladora e algo singela para um livro americano intitulado Twentieth Century Authors:

Além do meu trabalho, o que me dá mais prazer é a jardinagem, em especial, a horticultura. Gosto da gastronomia inglesa e da cerveja inglesa, dos tintos franceses, dos brancos espanhóis, de chá indiano, de tabaco forte, do carvão a arder na lareira, da luz das velas e de cadeirões confortáveis. Não gosto de grandes cidades, de barulho, de automóveis, da rádio, de comida enlatada, de aquecimento central e de «mobiliário moderno»… A minha saúde é um desastre, mas nunca me impediu de fazer nada, exceto, até hoje, combater na guerra… De momento, não estou a escrever nenhum romance, principalmente devido aos transtornos causados pela guerra.

Semanas depois, deixou a casinha e mudou-se para Londres, para estar com a mulher. Em junho, alistou-se na Milícia, os agrupamentos paramilitares locais formados para combater a eventual invasão alemã. Orwell foi rapidamente promovido a sargento da Companhia C do 5.º Batalhão de Londres. Ficou estupefacto quando um oficial lhes disse que não precisavam de aprender muitas táticas porque, em caso de invasão, «a nossa missão, disse ele, era morrer nos nossos postos». Orwell escreveu no seu diário que estava espantado com os comandantes da Milícia. «Estes miseráveis retrógrados, tão obviamente tontos e senis, e tão degenerados em tudo, exceto na coragem física, são pura e simplesmente patéticos, e quase teríamos pena deles não fosse andarem sempre em cima de nós.» As palestras que ele deu à sua unidade foram de cariz mais prático. Dentro de um edifício, disse ele, as granadas de mão são «mais fáceis de atirar para baixo do que para cima». E avisou que as balas tendem a fazer ricochete nas paredes.

Em meados de 1940, Orwell, tal como muitas outras pessoas, pensou: «a Inglaterra vai ser invadida nos próximos dias ou semanas.» Ao contrário de muita gente, mas tal como Churchill, Orwell gostou da sua experiência. Segundo um dos seus amigos, Cyril Connolly, «Ele sentiu-se enormemente à-vontade durante o Blitz, no meio das bombas, da coragem, dos escombros, das carestias, dos desalojados, dos sinais de um espírito revolucionário.» Eileen também. Quando as sirenes começavam a uivar, ela apagava as luzes do apartamento e punha-se à janela a assistir à ação. Orwell era um observador nato e havia muitas coisas novas e diferentes para ver. Ele escreveu no seu diário que não tinha visto nenhuma cratera mais profunda do que 3,5 m, o que o levou a concluir que as bombas alemãs eram bastante pequenas, talvez semelhantes às munições de artilharia de 150 mm que tinha visto usar em Espanha. Num abrigo antiaéreo, Orwell ouviu queixumes sobre «assentos duros e a noite que nunca mais passava, mas ninguém se pôs com conversas derrotistas».

A fase inicial do conflito foi um momento de otimismo surpreendente para Orwell, que se mostrou esperançado: «Esta guerra, se não formos derrotados, vai eliminar a maior parte dos privilégios de classe.» Em termos gerais, Orwell acertou: muitos privilégios de classe desapareceram depois da guerra, embora não devido a uma rutura revolucionária, mas sim através de uma transferência ordeira do poder para um governo trabalhista no pós-guerra.

Orwell reparou com interesse que os cães aprenderam rapidamente a desistir dos seus passeios nos parques quando ouviam as sirenes. A sua única queixa foi: «Nas noites em que os bombardeamentos são intensos, é difícil trabalhar com a barulheira ensurdecedora. É difícil concentrarmo-nos, escrever um simples artiguito para o jornal leva o dobro do tempo.»

O seu melhor texto da fase inicial da guerra é «The Lion and the Unicorn», um ensaio que pode ser lido como uma espécie de canção da Batalha de Inglaterra. Orwell trabalhou no texto de agosto a outubro de 1940, durante o auge da campanha. O ensaio é uma contemplação da guerra da perspetiva do patriota de esquerda, estupefacto com o comportamento dos aristocratas britânicos e concebendo a possibilidade de a guerra acarretar turbulência social.

Os seus comentários sobre Chamberlain poderiam facilmente ter saído da boca de Churchill. Orwell escreveu o seguinte:

Os adversários de Chamberlain acusaram-no de ser um intriguista tenebroso e matreiro que conspirou para vender a Inglaterra a Hitler, mas é muito mais provável que ele tenha sido apenas um velho estúpido a tentar fazer o seu melhor de acordo com as suas poucas luzes. Caso contrário, é difícil explicar as contradições da sua política, a sua incompreensão das vias que lhe estavam abertas. Tal como a massa do povo, não quis pagar o preço da paz nem da guerra.

A fase inicial do conflito foi um momento de otimismo surpreendente para Orwell, que se mostrou esperançado: «Esta guerra, se não formos derrotados, vai eliminar a maior parte dos privilégios de classe.» Em termos gerais, Orwell acertou: muitos privilégios de classe desapareceram depois da guerra, embora não devido a uma rutura revolucionária, mas sim através de uma transferência ordeira do poder para um governo trabalhista no pós-guerra.

O único conservador que Orwell parece ter admirado foi Churchill. Orwell disse num ensaio sobre o escritor socialista e utópico H. G. Wells que Churchill tinha compreendido os bolcheviques melhor do que Wells. Wells respondeu a Orwell com uma nota furiosa: «Lê os meus primeiros textos, meu merdas!» O idoso romancista deu em chamar a Orwell «trotskista pezudo».

Eric Blair («George Orwell»), com três anos

«A oratória de Churchill é bastante boa, num estilo antiquado, mas não gosto da sua locução», escreveu Orwell no seu diário, a 28 de abril de 1941, depois de ouvir um discurso de Churchill na BBC. Quanto aos demais conservadores, Orwell foi sempre desconfiado em relação à direita. Escreveu concordando com a afirmação de um amigo segundo a qual «com algumas exceções como Churchill, a aristocracia britânica é totalmente corrupta e falha do patriotismo mais básico».

* * *

Os acontecimentos da Batalha de Inglaterra e do Blitz tiveram implicações para o sistema de classes às quais Orwell e Churchill foram sensíveis. Os pobres sofreram de forma desproporcionada com os bombardeamentos aéreos de 1940, e o governo de Churchill foi lento a reagir. As estações de metro de Londres não foram inicialmente disponibilizadas como abrigos antiaéreos, em parte devido ao receio de que as pessoas que lá se refugiassem fossem prejudiciais ao funcionamento dos transportes e talvez se negassem a sair. Phil Piratin, um ativista comunista do bairro de Stepney, uma zona severamente atingida pelos bombardeamentos, envergonhou as autoridades liderando um grupo de residentes do East End que exigiu acesso ao abrigo existente na cave de um dos hotéis mais finos, o Savoy. Churchill leu as notícias nos jornais e perguntou ao gabinete porque é que as estações de metro não eram disponibilizadas como abrigos antiaéreos. «Garantiram-me que era muitíssimo indesejável», recordou ele. Churchill discordou e pouco depois as estações foram abertas.

A campanha de bombardeamento alemã, que durou do outono de 1940 até à primavera de 1941, teve o efeito de enobrecer os pobres aos olhos dos britânicos. «Agora, os trabalhadores são 100% heróis», escreveu o antropólogo Tom Harrisson, que estudou a literatura do Blitz durante os bombardeamentos. «É-lhes prodigalizada uma admiração extravagante, sem olhar à modéstia, à dignidade ou à exatidão.»

Não eram apenas alguns britânicos que desconfiavam da aristocracia. Em julho de 1941, em Washington, o general George C. Marshall, o chefe do estado-maior do Exército dos EUA, expressou o seu receio a um repórter americano de que os apaziguadores da classe alta pudessem minar o esforço de guerra e deixar encurraladas as tropas americanas que ele enviasse para a Grã-Bretanha para a invasão da Europa.

De forma inversa, os ricos tornaram-se suspeitos, especialmente porque muitos trocaram Londres pelas suas casas de campo. Orwell declarou: «A dama no Rolls-Royce é mais prejudicial para o moral do que uma frota de bombardeiros de Goering.» Basil Stapleton, um ás da RAF, recordou-se de ver um bombeiro impedido de trabalhar porque um Rolls-Royce passou por cima da mangueira. Stapleton e os seus companheiros bloquearam o automóvel e, «com a ajuda de algumas pessoas, virámos o Rolls-Royce ao contrário».

Não eram apenas alguns britânicos que desconfiavam da aristocracia. Em julho de 1941, em Washington, o general George C. Marshall, o chefe do estado-maior do Exército dos EUA, expressou o seu receio a um repórter americano de que os apaziguadores da classe alta pudessem minar o esforço de guerra e deixar encurraladas as tropas americanas que ele enviasse para a Grã-Bretanha para a invasão da Europa. «Segundo me informou o Departamento de Estado, existe a possibilidade de os britânicos negociarem a paz com os nazis», disse ele, com base num relatório do chefe dos serviços de informações do exército. E acrescentou:

Onde ficaria a minha vanguarda? Estou muito preocupado com as informações que recebi do Departamento de Estado. O problema parece ser que uma parte da opinião pública britânica prefere a paz à derrota. São as pessoas que têm mais a perder, a classe governante tradicional.

Churchill não se poupou a esforços para garantir aos americanos de visita que não toleraria semelhantes iniciativas conciliatórias em relação aos alemães. No mesmo ano, disse a um congressista que representava o eleitorado da região carbonífera da Pensilvânia: «não existe nenhum sinal de fraqueza na nação, nem os trabalhadores tolerariam, por um instante que fosse, qualquer sinal de fraqueza ou indecisão por parte da classe governante.»

Além do mais, em 1941, quem teve o papel mais significativo não foi o distinto exército nem a poderosa marinha, mas sim a Royal Air Force. A Força Aérea era nitidamente uma instituição de classe média, com cheiro a gasolina e lubrificante.

Entre 1941 e 1943, Orwell trabalhou no Serviço Oriental da BBC como produtor de palestras destinadas a apoiar o esforço de guerra

Orwell e Churchill aperceberam-se da natureza de classe média da RAF e comentaram-na. Orwell disse: «não se situa de maneira nenhuma… na órbita da classe governante.»

De facto, segundo um historiador, havia quem dissesse que os homens da RAF eram «mecânicos de automóveis com uniformes», parecidos com os anónimos motoristas dos ricos. Evelyn Waugh, sempre atento às diferenças sociais, tem num dos seus romances passados durante a Segunda Guerra Mundial uma personagem que lamenta que um oficial superior da Royal Air Force tenha sido autorizado a entrar para um clube gastronómico de elite. A personagem explica que a gafe aconteceu porque foi durante a Batalha de Inglaterra, «quando a Força Aérea, durante algum tempo, foi quase respeitável… Meu caro, é um pesadelo para toda a gente». Mas alguns aspetos do sistema de classes persistiram na RAF. Segundo um piloto, Hugh Dundas, os membros de algumas unidades «auxiliares» formadas pelos ricos e aristocratas de Londres chamavam aos homens da RAF regular «tropas de cor». E as diferenças de classe também chegaram à carlinga: os oficiais tinham geralmente o privilégio útil de voarem todos os dias no mesmo avião, ao passo que os sargentos tinham de voar nos que estivessem disponíveis.

No entanto, Orwell ponderou as implicações sociais do papel da RAF ao impedir a invasão alemã. «Devido, entre outras coisas, à necessidade de criar uma força aérea enorme, foi aberta uma brecha importante no sistema de classes»,39 escreveu ele. Terminada a Batalha de Inglaterra, referiu na conclusão de «The Lion and the Unicorn», «os herdeiros de Nelson e Cromwell não estão na Câmara dos Lordes. Estão nos campos e nas ruas, nas fábricas e nas forças armadas, nos bares com cerveja barata e nos jardins das traseiras suburbanos, mas continuam a ser subjugados por uma geração de fantasmas».

Churchill, olhando para a questão de uma perspetiva diferente, disse aos seus subordinados, com alguma apreensão, que o papel da aristocracia na Batalha de Inglaterra tinha sido diminuto. Churchill observou que Eton, Harrow e Winchester, onde a elite da nação punha os filhos a estudar, não tinham «contribuído praticamente nada» com pilotos para a Royal Air Force. Dos três mil pilotos de caça da Batalha de Inglaterra somente cerca de duzentos frequentaram Eton, Harrow ou outras escolas de elite. Foi uma percentagem minúscula em comparação com a Primeira Guerra Mundial, onde por exemplo Eton forneceu às forças armadas 5768 efetivos, dos quais 1160 morreram e 1467 foram feridos. Churchill escreveu: «Deixaram a coisa entregue à classe média-baixa» – isto é, aos filhos de professores, bancários, lojistas metodistas e burocratas menores diligentes.

Churchill concluiu sobre estes «filhos excelentes» da classe média: «Salvaram o país, têm o direito de o governar.» Neste sentido, Margaret Thatcher, filha de um merceeiro de uma pequena cidade que abandonou os estudos com treze anos de idade, surge claramente como legítima herdeira política de Churchill. Quando era uma jovem política em ascensão, costumava usar ao peito um alfinete prateado com o perfil de Churchill. Thatcher, que foi eleita pela primeira vez para o parlamento em 1959, teve como colega o decrépito Churchill durante cerca de cinco anos, até ele se reformar, em 1964. Thatcher tornou-se primeira-ministra em 1979, cerca de trinta e nove anos depois da Batalha de Inglaterra.

Churchill, sensível ao sistema de classes na sua condução da guerra, instruiu os generais e almirantes no sentido de terem cuidado com a forma como dirigiam as forças armadas. Logo na fase inicial do conflito, avisou a marinha para ter «um cuidado especial para que os preconceitos de classe não entrem nestas decisões» sobre a seleção dos cadetes para o Royal Naval College, em Dartmouth.

Thatcher recordou Churchill de forma apropriada. Mandou renovar e abrir ao público pela primeira vez o bunker dele durante a guerra. E Thatcher tinha uma visão churchilliana do século xx. Quando visitou a Checoslováquia como primeira-ministra, pediu desculpas pelos atos de Neville Chamberlain. «Falhámos-vos em 1938, quando uma política de apaziguamento desastrosa permitiu a Hitler extinguir a vossa independência», disse ela na Assembleia Federal, em Praga. «Churchill repudiou prontamente o Acordo de Munique, mas ainda o recordamos com vergonha.»

Churchill, sensível ao sistema de classes na sua condução da guerra, instruiu os generais e almirantes no sentido de terem cuidado com a forma como dirigiam as forças armadas. Logo na fase inicial do conflito, avisou a marinha para ter «um cuidado especial para que os preconceitos de classe não entrem nestas decisões» sobre a seleção dos cadetes para o Royal Naval College, em Dartmouth. E garantiu que investigaria o assunto – «Caso não me apresentem motivos melhores.» A marinha resistiu e ele, tal como tinha avisado, interveio diretamente. E até se reuniu com alguns candidatos a oficial que apesar de terem tido notas altas no exame de admissão tinham sido rejeitados. «Estive com os três candidatos», disse ele ao alto comando da marinha. «É verdade que o A tem um ligeiro sotaque cockney e que os outros são filhos de um sargento-ajudante e de um engenheiro da marinha mercante. Mas a intenção dos exames competitivos é abrir o ramo ao talento, independentemente da classe ou da fortuna.» Churchill concluiu dizendo que tinha sido cometida uma injustiça e ordenou a admissão dos três candidatos. Era um grande desgaste de energias para quem estava a conduzir uma guerra e a impedir uma invasão.

Churchill fez jus à sua retórica nas interações com o pessoal da marinha. Uma vez, a bordo do HMS Boadicea, desapareceu da ponte, onde estavam reunidos os oficiais superiores e alguns altos funcionários civis. «Durante algum tempo, ficámos sem saber dele», escreveu um tenente ao pai, «até que fomos dar com ele sentado na messe dos fogueiros, a trocar patranhas com eles».

Noutra frente da luta de classes, Churchill guerreou durante meses com as chefias militares por causa das insígnias regimentais dos uniformes. Parece um assunto trivial, mas Churchill apercebeu-se corretamente de que mais uma vez era uma questão enraizada nas distinções sociais. Os generais disseram-lhe que as antigas unidades de linha do exército associadas à aristocracia receberiam emblemas especiais para usarem no ombro. Justificaram a coisa com razões de ordem económica, devido à escassez de lã ou de alfaiates, mas Churchill, cético e sempre pronto para discutir pormenores, soube pela Comissão do Comércio que a quantidade de lã necessária para produzir as insígnias para todas as unidades, incluindo as «arrivistas» com oficiais da classe média, era relativamente reduzida – 85 000 metros de um total de 8 milhões de metros que se usavam por semana. O general Brooke, que muitas vezes deu mostras de tacanhez, queixou-se no seu diário: «Nesta questão, tem-se portado como uma criança e desperdiçado muito do nosso tempo.»

Churchill como primeiro lorde do Almirantado, 1911

Mas tal como observou o estratego Eliot Cohen, estas intervenções nas coisas da governança militar refletiram a compreensão perspicaz que Churchill tinha da liderança de guerra. Tratava-se de manter o moral de um exército repetidamente derrotado, e, por conseguinte, «a questão das insígnias e emblemas não é trivial». Em tempo de guerra, como disse Napoleão, os homens combatem por fitinhas coloridas. «Gostaria muito», escreveu Churchill ao funcionário responsável pela supervisão do exército, «que me explicasse também porque é que os Guardas [uma unidade de elite] devem ser favorecidos nesta questão. Foi-lhes dada alguma autorização especial, e se foi, com que justificação? Eu diria que os regimentos de linha, em especial os regimentos nacionais como os galeses ou escoceses, desejarão ainda mais o apoio do espírito de corpo e a expressão de individualidade que as insígnias distintas conferem». Isto foi mais do que um simples aspeto do gosto de Churchill pela pompa e pelas cores garridas. Churchill compreendeu que os oficiais da classe média e os soldados da classe operária tinham de ser tratados com mais respeito do que antes.

* * *

«De todos os países, a Inglaterra é o mais sujeito ao sistema de classes», disse Orwell em «The Lion and the Unicorn». «É a terra do snobismo e dos privilégios, governada principalmente por velhos e patetas.» No ensaio, condenou a classe governante, mas abriu uma exceção em relação ao primeiro-ministro. «Até o governo de Churchill travar um pouco este processo, conseguiram fazer constantemente o que não se devia desde 1931.»

Tendo em conta a sua atitude socialista, Orwell ficou admirado consigo próprio pelo seu apoio a Churchill durante a maior parte da guerra. «É significativo que no momento do desastre o homem mais capaz de unir a nação tenha sido Churchill, um conservador de origem aristocrática», escreveu ele durante a guerra.

Mas mais uma vez, Churchill, de forma surpreendente, tinha a mesma opinião que Orwell em muitas questões relacionadas com o sistema de classes. Orwell descreveu-se como «anarquista conservador» e Churchill era um conservador anárquico, tendo saído do partido em 1904. Regressou em 1924, mas os conservadores não gostavam muito dele. Nunca o acharam completamente apropriado.

As questões relacionadas com o sistema de classes pareceram uma constante nos bastidores da guerra, surgindo de vez em quando em áreas surpreendentes. Alguns britânicos desconfiavam que a aristocracia, com a sua simpatia generalizada pelo fascismo, não era inteiramente de fiar. William Joyce, que fez propaganda na rádio nazi, foi alcunhado pelo público britânico de «Lorde Haw-Haw», apesar de não ser aristocrata e de ter nascido em Brooklyn, em Nova Iorque.

Apesar de ter frequentado Eton, Orwell, durante a maior parte da sua vida de adulto, comeu, bebeu e vestiu-se como se pertencesse à classe operária. Uma noite, durante a Segunda Guerra Mundial, chegou a casa e, por distração, comeu a tigela de enguias cozidas que a mulher tinha preparado para o gato e deu ao animal o empadão de carne que ela tinha feito para ele.

Churchill e Orwell tornaram-se desconfiados das respetivas classes sociais, vendo-as como parte do problema. Para Orwell, o ponto de viragem ocorreu quando ele era um jovem polícia colonial na Birmânia. Apesar de ter frequentado Eton, Orwell, durante a maior parte da sua vida de adulto, comeu, bebeu e vestiu-se como se pertencesse à classe operária. Uma noite, durante a Segunda Guerra Mundial, chegou a casa e, por distração, comeu a tigela de enguias cozidas que a mulher tinha preparado para o gato e deu ao animal o empadão de carne que ela tinha feito para ele. Os seus amigos e colegas viam-no geralmente com calças largueironas de bombazina, um grosso casaco de lã coçado por cima de uma camisa de flanela escura e sapatos por engraxar. Um amigo referiu: «Nunca o vi de fato, nem de chapéu, independentemente do tempo que fizesse.»

Para Churchill, a desconfiança em relação à sua classe afirmou-se mais tarde, com a desilusão com o comportamento da classe governante em relação à ascensão de Hitler, e, depois, com a sua frustração com o desempenho dos elementos aristocráticos das forças armadas, tais como muitos generais do exército e, em especial, as chefias da Royal Navy.

Tal como Orwell compreendeu, as momices churchillianas que alienavam os conservadores aristocráticos afirmaram posição de Churchill junto das restantes classes. «Em Inglaterra, é muito desvantajoso para um líder popular ser um cavalheiro, e Churchill… não é», escreveu Orwell em 1943. Churchill era considerado um metediço, um ferrabrás, um vira-casacas em relação a dois partidos e, talvez pior ainda, meio americano. Um dos seus críticos chamou-lhe «meio estrangeiro e totalmente indesejável».

Em 1940, quando Churchill foi pressionado por Halifax e outros «apaziguadores do costume», como lhes chama o historiador Sir Max Hastings, para considerar a possibilidade de negociações com a Alemanha, foram os trabalhistas do Gabinete, Clement Attlee e Arthur Greenwood, que o apoiaram. Churchill não esqueceu este apoio, pelo menos até ao fim da guerra na Europa, quando regressou à política partidária – e se deu mal.

A oposição resoluta de Churchill a negociações de paz com Hitler também poderá ter tido que ver com o sistema de classes. Toda a gente sabia que alguns aristocratas importantes tinham sido brandos com Hitler, e a retórica inflexível de Churchill poderá ter contido a promessa implícita às classes média e operária, e até aos pobres, de que enquanto ele estivesse de sentinela não haveria nenhuma traição. C. P. Snow, filho de um organista de igreja, recordou que em 1940 tinha ficado tranquilizado depois de ouvir Churchill. «Ele era um aristocrata, mas teria de bom grado reduzido à pobreza a sua classe e os seus amigos, ou mesmo toda a gente, se fosse esse o preço a pagar para salvar o país. Nós acreditámos que ele era capaz de fazer aquilo. E os pobres também acreditaram quando a sua voz chegou aos bairros-de-lata nas noites estivais de 1940.»

* * *

Orwell e Churchill podiam ser surpreendentemente duros ou mesmo severos na análise das questões militares. Isto seria de esperar de Churchill, mas é um bocadinho surpreendente quando Orwell escreve no seu diário, em março de 1941, que talvez a Inglaterra devesse deixar a França ocupada passar fome por razões políticas. «A coisa a fazer seria esperar até a França estar à beira da fome, com o governo de Pétain a tremer, e depois fornecer uma grande quantidade de alimentos em troca de algumas cedências substanciais, por exemplo a entrega de unidades importantes da marinha francesa. É claro que, por enquanto, este tipo de política é totalmente impensável.» E concluiu: «Quando combatem por uma causa na qual acreditam, as pessoas não têm escrúpulos.»

Churchill na América. Em cima: com a família numa limusina, em 1946. Em baixo: bastante envelhecido, num encontro com o presidente Harry Truman na Casa Branca, em 1952.

Orwell também expressou a esperança de que as casas dos ricos que tinham fugido dos bairros finos da zona ocidental de Londres para as suas residências no campo fossem requisitadas pelas autoridades para abrigarem os habitantes do East End desalojados pelas bombas, mas entristeceu-o pensar que «os porcos dos ricos ainda têm peso suficiente para que isto não aconteça». Isto levou-o de volta à sua opinião de que os pobres acabariam por se insurgir contra aquele tipo de comportamentos. «Quando se vê como os ricos continuam a agir, no que se está manifestamente a transformar numa guerra de classes, pensamos em São Petersburgo, em 1916.» Contudo, na primavera de 1941, Orwell começou a alterar os seus pensamentos sobre a possibilidade de uma revolução inglesa. «Olhando para a parte inicial deste diário», escreveu ele, a 13 de abril, «vejo que as minhas previsões políticas foram erradas, mas mesmo assim é como se as mudanças revolucionárias que desejei estejam a acontecer, mas em câmara lenta.»

A experiência de Orwell como polícia na Birmânia e comandante de uma pequena unidade na Guerra Civil de Espanha parece tê-lo tornado um analista perspicaz das operações militares, pelo menos ao nível tático, capaz de decifrar a propaganda. No dia 22 de abril de 1941, escreveu ceticamente no seu diário acerca das notícias otimistas sobre vitórias britânicas na Grécia. «O que mais me preocupa é a afirmação repetida de que estamos a causar baixas enormes, que os alemães avançam em formação cerrada e são ceifados aos molhos, etc. Disseram a mesma coisa durante a Batalha de França.» Nem mais. Dois dias depois, as forças aliadas, comandadas pelos britânicos, começaram a retirar da Grécia, deixando para trás doze mil homens, alguns mortos mas a maior parte prisioneiros, bem como numerosos carros de combate e outro equipamento pesado.

Em agosto, Orwell previu corretamente: «Temos pela frente uma guerra prolongada e terrivelmente esgotante, com toda a gente cada vez mais pobre.» Nesta altura, sem nenhuma explicação, Orwell deixou de escrever no diário e só retomou a escrita seis meses depois.”

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