É uma batalha que dura há quase 20 anos em Viana do Castelo e que esta semana chegou a contornos mais intensos. O edifício Jardim, ou prédio Coutinho como é conhecido localmente, começou a ser demolido para a construção do novo mercado municipal e por ser considerado desajustado visualmente em relação às restantes construções da cidade. Mas há ainda nove moradores dentro de seis apartamentos. Deles, só um casal está a negociar a saída. Estão sem água, gás e eletricidade e chegaram a ficar sem comida, uma vez que os familiares estão proibidos de entrar nos apartamentos. E alguns dizem que o valor oferecido pela casa não é suficiente.
[Veja aqui o filme do dia em que começaram as demolições]
Do outro lado da barricada, a empresa responsável pela demolição apresentou queixa-crime de ocupação ilegal contra os moradores por “não terem procedido voluntariamente conforme o ordenado pelo tribunal”. Mas porque é que o prédio está a ser demolido? E porque é que o processo se arrasta há quase 20 anos? O que vai acontecer aos moradores? 11 perguntas e respostas para perceber o que se passa no prédio de 13 andares em Viana do Castelo.
Que prédio é este?
Durante a primeira metade dos anos 70, um prédio imponente começou a ser construído em pleno centro histórico de Viana do Castelo e junto ao Jardim da Marina. É o edifício Jardim, que a partir de 1975 chegou a ter 300 moradores a viver nos seus 13 andares. Mas não era apenas mais um prédio. O edifício destacou-se desde cedo pelo contraste com as restantes construções à sua volta na cidade, que eram mais pequenas, discretas e com dimensões a rondar os três ou quatro andares. A estética do prédio dividiu opiniões na cidade: para uns era um “símbolo do progresso”, para outros “um mamarracho” que não estava bem naquele local, conta uma reportagem do jornal Público.
Com o passar dos anos, o edifício passou a ser conhecido como prédio Coutinho, referente ao apelido do empresário responsável pela compra do terreno e pela sua construção, Fernando Coutinho. “Nunca conheci a cidade com outra paisagem”, escrevia Cristina Miranda em fevereiro do ano passado no blog Blasfémias, acrescentando que “contava-se que [o edifício] tinha sido embargado várias vezes aquando da sua construção”, mas que “nasceu devidamente licenciado pela Câmara, no terreno do antigo mercado, que tinha sido vendido em hasta pública”.
Tudo começou quando o terreno onde funcionava o primeiro mercado municipal de Viana entre 1892 e 1965 foi vendido em hasta pública por 7500 contos (cerca de 37 mil euros), a 22 de julho de 1972. Fernando Coutinho comprou-o quando decidiu voltar do Zaire (atual República Democrática do Congo). Mas a jornada foi feita de sobressaltos. Em fevereiro de 1973, a Comissão Municipal de Arte e Arqueologia aprovou a construção de um prédio de 13 andares, mesmo tendo em conta a oposição por parte do diretor de obras da Câmara Municipal de Viana do Castelo devido à dimensão do edifício, tendo em conta que tinha sido determinado que este terreno teria “potencialidade para um edifício de seis a oito pisos”.
Só que em março do ano seguinte, a Direção-Geral dos Assuntos Culturais questionou a autarquia sobre o licenciamento da construção deste edifício, uma vez que o terreno do antigo mercado fazia parte da Zona Arqueológica de Viana do Castelo, que nasceu em junho de 1973. Esta direção afirmava que o edifício tinha sido licenciado “sem autorização superior” e obrigou à suspensão das obras, conta o Público. Mas o edifício continuou a ser construído.
Em 1974, e já com o prédio terminado e 105 frações autónomas, a administração da autarquia afirmou que a construção do edifício Jardim foi “o maior atentado à harmonia” da cidade e pediu 70 mil contos (350 mil euros) ao ministro da Administração Interna para a demolição do edifício, um pedido que não foi aceite.
“O caso do Edifício Jardim ou Edifício Coutinho tem sido motivo de interesse e discussão na praça pública, na imprensa, sendo tema de interesse em Viana do Castelo e em toda a região e até no País, sendo capa de periódicos e abertura de telejornais. Tem sido até um dos temas centrais nas campanhas autárquicas e de discussão na Assembleia Municipal de Viana do Castelo”, lê-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
Porque é que decidiram demolir este prédio?
O processo de demolição do prédio Coutinho é uma batalha que dura há quase 20 anos. No dia 1 de junho de 2000, quando José Sócrates era ministro do Ambiente e Defensor Moura presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo, foi apresentado o Programa Polis de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental de Viana do Castelo, que previa a demolição deste edifício, invocando razões estéticas: era “dissonante” da linha urbanística do Centro Histórico de Viana do Castelo e, assim, uma “intrusão visual”.
De acordo com a Direção-Geral do Território, o Programa Polis “visa promover intervenções nas vertentes urbanística e ambiental”, de forma a “promover a qualidade de vida nas cidades, melhorando a atratividade e competitividade dos polos urbanos”. O Polis foi replicado em várias cidades portuguesas e Viana do Castelo foi eleita como uma das cidades que beneficiaria de intervenções, uma vez que existiam “algumas situações a necessitarem de correção e que envolvem privados como, por exemplo, desvios notórios da cércea no centro histórico”, dizia o acórdão do Supremo Tribunal. Viana foi, aliás, o primeiro local do país a receber este programa. O estado contribuía com 40% do capital e as autarquias com outros 60%, sendo que a VianaPolis tem neste momento apenas o presidente Ricardo Magalhães e o vice-presidente Tiago Delgado.
O entusiasmo por parte dos políticos com este programa era tanto, conta a revista Sábado, que a 5 de junho do mesmo ano José Sócrates inaugurou um relógio gigante instalado no Jardim da Marina para marcar a contagem decrescente da Polis Viana do Castelo. O próprio Defensor Moura era um dos mais críticos em relação a este edifício, tendo-se várias vezes referido ao prédio Coutinho como “aleijão”, “mastodonte” e o “maior aborto urbanístico” do casco velho da cidade. Com esta demolição, o objetivo é que volte a ser construído o novo mercado municipal de Viana (o Mercado Municipal que substituiu o original encerrou em 2003).
No plano estratégico para esta intervenção está precisamente a zona do mercado, onde é referido que os projetos planeados têm como objetivo “qualificar um espaço que ao longo dos séculos tem sofrido alterações bruscas muitas vezes sem qualquer enquadramento urbanístico perceptível”.
A 30 de janeiro de 2001 a autarquia afirmou que o prédio Coutinho era um entrave à candidatura de Viana do Castelo como uma das cidades Património Mundial da UNESCO. José Sócrates voltava a reforçar em 2005 o seu apoio à demolição do edifício que, nas suas palavras, era “contra a memória e a identidade”, do centro histórico da cidade. “Chegou o momento de fazer o que devemos fazer para terminar com os erros urbanísticos do passado e se há erro urbanístico que atenta contra a memória e identidade do centro histórico de Viana do Castelo é o prédio Coutinho”, disse na altura.
Houve mais prédios demolidos no país?
O caso da demolição do Prédio Coutinho não é o único que o Programa Polis em todo o país pretendia demolir, apesar de cada local ter um contexto diferente. Na Ria Formosa, por exemplo, também houve demolições: em 2004 deu-se o derrube de construções ilegais nos ilhotes e na Praia de Faro e a partir de 2017 nos núcleos do Farol e dos Hungares, ambos na ilha da Culatra.
Das 376 construções inicialmente sinalizadas para demolição em ambos os núcleos, o número acabou por ficar reduzido a 59 construções, após a introdução de vários critérios que obrigaram a uma reavaliação do número de construções abrangidas. A zona considerada de risco engloba as edificações situadas dentro de uma faixa de 40 metros a contar da linha de água, mas apenas do lado da ria, pois graças a um enchimento artificial de areia feito em 2016 as construções no lado do mar não ficaram abrangidas.
Derrube de últimas 14 casas encerra ciclo de demolições na Ria Formosa
Apesar de não estar integrada no Programa Polis, a demolição do antigo complexo turístico de Torralta, em Troia, foi uma das demolições mais memoráveis da era de José Sócrates como primeiro-ministro. Às 16h00 do dia 8 de setembro de 2005, José Sócrates e o presidente do grupo Sonae, Belmiro de Azevedo, acionaram o detonador que provocou a implosão dos dois edifícios. O plano para aquele local envolvia várias construções: novos aparthotéis, 185 moradias turísticas, um centro de congressos, uma marina para 150 embarcações de recreio, um hotel de cinco estrelas, restaurantes, um casino, um parque aquático, um centro equestre e um eco-resort.
Como é que o Estado fez para ficar na posse do prédio Coutinho?
A VianaPolis foi a empresa criada para desenvolver e implementar o programa Polis em Viana do Castelo. Pouco depois da sua fundação, a empresa criou uma comissão técnica de acompanhamento do Plano de Pormenor do Centro Histórico de Viana do Castelo, que acabou por ser aprovado em 2002 pela Assembleia Municipal. A duração da empresa chegou a ser prorrogada, porque o processo para a qual foi destinada se prolongou e ainda hoje não teve fim.
Dois anos depois, os ocupantes do prédio Coutinho eram notificados do que tinha ficado decidido: o Conselho de Administração da VianaPolis tinha requerido “a declaração de utilidade pública, com caráter de urgência, das expropriações necessárias à execução do Plano de Pormenor do Centro Histórico”. O prédio deveria ser depois demolido e dar lugar a um mercado — o que aliás ali funcionava até à década de 70, até ser demolido e o terreno ser vendido em hasta pública.
Meses depois, o então secretário de Estado do Desenvolvimento Regional assinava um ofício apreensivo, em que lembrava que era preciso seguir todos os trâmites legais para avançar com uma Declaração de Utilidade Pública, lembrando que a própria Comissão Europeia recusava o financiamento do projeto para aquele local.
A justificação por parte da VianaPolis, ao coordenador nacional do programa Polis, dizia que a Comissão Europeia tinha partido de pressupostos incorretos e que a demolição ia muito mais além dos “aspetos de ordem estética”, mas corrigiria as ruturas identificadas no centro, aumentaria o estacionamento assim como os espaço pedonais. Por outro lado, previa que para o processo de expropriação fossem gastos cerca de 12,6 milhões.
Em julho de 2005, porém, o ministro do Ambiente de José Sócrates, Francisco Nunes Correia, acabaria por declarar a utilidade pública para expropriação com caráter urgente. Três meses depois a VianaPolis abria um concurso público para quem reunisse as condições e aceitasse demolir o edifício Jardim até 1,5 milhões de euros.
E como reagiram os inquilinos?
Ainda durante a fase de discussão pública do Plano de Pormenor do Centro Histórico de Viana do Castelo, alguns proprietários tentaram travar o processo com medidas cautelares. Mas a VianaPolis opôs-se sempre, até que, em 2003, os inquilinos acabaram por entregar uma petição ao Parlamento Europeu, assinada por 38 moradores daquele edifício. Foi por esta altura que chegou a resposta da Comissão Europeia dando conta de que que os fundos comunitários não financiariam aquele projeto. Uma resposta que acabou por ser usadas pelos 38 moradores no passo seguinte: nova providência cautelar.
Os moradores chegaram mesmo a instalar um gabinete de crise no 13º. andar do edifício — exatamente um dos que chegaram a sugerir partir, para diminuir a altura do prédio — pensando eles tratar-se de ser esse apenas o problema. Nesta altura houve quem pusesse ações isoladamente, outros que avançaram em grupo, mas as respostas não foram claras e os processos foram-se arrastando nas instâncias superiores e no tempo.
Numa das ações mais importantes, os moradores pediram ao tribunal administrativo que considerasse ilegal algumas normas da lei que permitia a declaração da utilidade pública para expropriação dos edifícios particulares. Mas o tribunal considerou-se incompetente para tal. Mais tarde, os mesmo queixosos impugnaram então o ato da declaração de utilidade pública, invocando razões tão diversas como a da necessidade do projeto que ali iria ser construído depois e o facto de a empresa VianaPolis nem sequer ter orçamento para avançar com ele. Pretendiam também ser indemnizados por tudo o que já tinham passado.
A ação foi proposta contra o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento, a VianaPolis e o Município de Viana do Castelo. No fundo, os recorrentes consideravam essa declaração ilegal por lhe ter sido conferido um carater de urgência que não teria sido fundamentado.
Que garantias foram dadas aos moradores do prédio Coutinho?
João Miranda, advogado, explicou esta sexta-feira em declarações à SIC Notícias que estes moradores “não estão desalojados”: “O estado de direito passa por garantir que estas pessoas têm um imóvel correspondente àquele que perdem por razões de interesse público”, acrescentou, sublinhando ainda que os moradores podem escolher entre duas opções: ou são realojadas noutro imóvel ou então têm direito a uma indemnização correspondente ao valor de mercado do imóvel.
Também o atual ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, garantiu que as cerca de 100 famílias fizeram uma de três opções: “Localizar-se num prédio novo com melhores condições de habitabilidade que o prédio Coutinho; optar pela vista de mar, e por isso mudaram-se para a Marina; e outras optaram por uma indemnização”. Neste último caso, referiu o ministro, citado pelo Jornal Económico, há uma indemnização fixada em 1,9 milhões de euros disponível para levantamento.
Já no caso de os moradores optarem pelo realojamento, a VianaPolis construiu duas urbanizações nesse sentido, onde parte dos primeiros moradores que começaram a sair do prédio em 2005 foi também transferida.
O advogado João Miranda também falou de um processo que teve várias fases: “Primeiro, houve uma tentativa de acordo com os proprietários. Alguns chegaram a acordo, outros não. Depois, o processo evoluiu para uma declaração de utilidade pública (…) e aí houve novamente acordo com outros proprietários quanto ao valor da indemnização. Estes [os que ainda permanecem no prédio] são os moradores irredutíveis que se recusam a aceitar qualquer acordo”.
E é possível comprar um apartamento semelhante em Viana por cerca de 200 mil euros?
Francisco Joaquim da Rocha é um dos 12 moradores do prédio Coutinho que recusa entregar as chaves. E afirmou que o valor que lhe a VianaPolis lhe vai pagar pela casa é inferior ao preço real das mesmas. “A VianaPolis oferece-me 200 mil euros pelo apartamento. Hoje, para comprar um apartamento destes, nessa zona da cidade, são precisos cerca 400 mil euros. O que é que vou comprar com 200 mil euros? Têm que nos pagar o verdadeiro valor dos apartamentos e não querem. Se pagassem mais ou menos o que estou a pedir, entre 350 a 380 mil euros, até saía”, referiu à agência Lusa.
Também Agostinho Correia e o pai, que tem o mesmo nome, vivem no 5º andar do prédio Coutinho e lá têm estado, em permanência, desde que lhes foi retirada a possibilidade de saírem. Os dois dizem que a saída não está dependente de dinheiro, mas salvaguardam que, “em último caso, a VianaPolis tem de pagar o valor justo pelo apartamento”. Saindo, Agostinhos, pai e filho, aceitariam 230 mil euros de indemnização, a proposta de VianaPolis. Mas, para a família, não chega. “Eu não considero esse valor justo. Esse valor não me chega para, na mesma rua, comprar um dos apartamentos que estão à venda”, referiu à rádio Observador.
Já Armando Cunha, também morador, contou ao jornal Público que a VianaPolis o abordou para propor inicialmente uma indemnização de 128 mil euros. “Um valor ridículo”, disse. Mais tarde, terá havido outra avaliação no valor de 224 mil euros. Mas o morador continuava a dizer que não era suficiente.
Contactado pelo Observador, um agente imobiliário da Remax em Viana do Castelo confirmou que um apartamento com características semelhantes às do prédio Coutinho (“quase tudo T3 e com áreas muito generosas”) e localizado no centro histórico da cidade já não é possível ser comprado por 200 mil euros — “Valeria talvez uns 300 mil”. “Um apartamento T2 no centro histórico já anda acima dos 200 mil euros. Se depois sair para a periferia, aí consegue, mas tudo o que fica na zona circundante à linha férrea está mais cara”, explicou.
“Hoje, as pessoas com 200 mil euros não compram um apartamento equivalente, isso há que reconhecer”, acrescentou, sublinhando também a menor oferta disponível do centro que contribui para preços mais elevados.
Porque é que este caso se arrasta há quase 20 anos?
Porque as ações foram-se multiplicando nos tribunais. Uma delas chegou mesmo a vingar no Tribunal Administrativo de Braga e a declaração de utilidade pública chegou a ser anulada, mas a VianaPolis voltaria a ter a razão do seu lado pelas mãos do Tribunal da Relação. Inconformados, os moradores recorreram então para o Supremo Administrativo, sem sucesso.
No acórdão, assinado pelo juiz relator Jorge Madeira dos Santos, em dezembro de 2013, algumas das alegações invocadas pelos moradores são consideradas mesmo como um “absurdo”. A defesa dispara em várias direções: diz que os direitos constitucionais dos moradores foram feridos, que eles não foram efetivamente notificados da decisão e até acusam a empresa de não ter dinheiro para o financiamento necessário a um projeto para aquela zona. Nada disto interessou ao juiz.
“A expropriação tinha, como sua causa final, um interesse público previamente estabelecido: eliminar, pelos vistos por razões estéticas, o referido edifício e construir no lugar dele o mercado municipal”, lembra o juiz. Para voltar a dizer que seria “absurdo” ser ele a qualificar. No final deste ano de 2013, foi tornado público que das quatro ações judiciais interpostas pelos moradores daquele edifício, todas foram favoráveis na primeira e segunda instâncias à sociedade VianaPolis.
E porque é que agora é que se efetivou?
A empreitada de demolição do prédio estava prevista para o primeiro trimestre de 2018, começando o mercado municipal a ser construído em 2019. Mas uma nova providência cautelar voltaria a travar o processo naquele ano de 2018. E só em abril de 2019, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga declarou improcedente
A VianaPolis retomou o processo de desconstrução do prédio Coutinho. Em junho de 2019 os últimos moradores começaram a receber as notificações e tinham de abandonar o prédio até dia 24. Como não o fizeram, cortaram-lhes a água, a luz, e montaram um perímetro de segurança à volta das suas casas impedindo que lhes levem mantimentos.
Entretanto, o tribunal aceitou esta quarta-feira a ação de intimação pela defesa de direitos, liberdades e garantias dos últimos moradores do prédio, sem efeitos suspensivos. Uma ação que não impede que o prédio seja demolido, pode eventualmente ter efeitos indemnizatórios.
Tribunal aceitou ação pelos direitos dos últimos moradores do prédio Coutinho
Mas pode o Estado expropriar assim uma propriedade privada?
O advogado Rui Ribeiro Lima, da Morais Leitão, lembra que este regime de expropriação é específico de um diploma criado em 2000 que implementou o Programa Polis que veio a prever a criação de sociedades como a VianaPolis, que têm um conjunto de especificações.
Diferentemente do regime geral de expropriação, como explicou o advogado ao Observador, este regime especial de expropriação “veio dizer que quando existem planos de pormenor ou aérea abrangidas pela Polis, a expropriação é considerada de utilidade pública”, o que tem que ser feito por despacho do Governo. “A lei diz que essas expropriações são sempre consideradas de utilidade pública”, reforça.
A essas expropriações a lei aplica carácter urgente, para as sociedades Polis tomarem a posse administrativa dos imóveis no imediato. O que não acontece no regime geral em que antes pode haver um acordo. Assim sendo, defende, a única forma de impugnar esta questão em tribunal seria pela indemnização atribuída aos moradores, caso não concordassem com ela. Porque dificilmente, como se viu, se pode impugnar a declaração de utilidade publica porque ela está prevista na lei. “Teria que se por em causa a lei e essa é uma questão ainda mais complexa”, avisa.
Quanto ao que está a acontecer em Viana do Castelo, o advogado lembra que neste momento a propriedade é da VianaPolis. E que é a propriedade deles que está a ser ocupada.
E como estão os nove moradores que permanecem no prédio?
Na segunda-feira passada, os últimos moradores no edifício recusaram entregar a chave das habitações à VianaPolis. Era o último dia do prazo fixado pela sociedade que gere o programa Polis para tomar posse administrativa das últimas frações do edifício. Esta quinta-feira, pelas 15h, a VianaPolis fez um ultimato aos nove moradores, a maior parte já de idade avançada. A demolição, do edifício, avisou a empresa, podia começar a qualquer momento e avançou mesmo na manhã desta sexta-feira. A água, a eletricidade e os elevadores dos dois blocos do prédio foram cortados e foi proibida a entrada dos familiares dos moradores. Mesmo assim, os residentes não saíram.
Em comunicado, a sociedade que gere o Polis de Viana do Castelo disse que passou a ser “rigorosamente cumprida a instrução de impossibilidade de entrada de qualquer pessoa não autorizada pela VianaPolis no edifício, garantindo-se a saída livre e sem qualquer restrição de pessoas e bens”. A sociedade adianta que as seis frações ainda ocupadas, das 105 existentes, já estão à ordem do juiz, e por consequência dos expropriados, 1.198 milhões de euros, resultantes das peritagens ou sentenças já proferidas pelo tribunal.
Prédio Coutinho sem luz: “Deve haver aqui uma vela em casa”. Demolição pode ser a qualquer momento
A VianaPolis entregou uma carta aos residentes em que avisava que se até às 16h00 desta quinta-feira não saíssem, apresentaria uma queixa-crime. E eles não saíram. E a empresa apresentou mesmo queixa-crime, confirmou o advogado Magalhães Sant’Ana. As janelas abrem e fecham e de vez em quando vêm à janela os moradores. Em seis apartamentos, não há gás desde terça-feira à noite e água desde segunda-feira. Nesta quinta-feira chegaram a ficar sem comida — a polícia impediu os familiares de lhes levarem comida.
Entretanto, o presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo, o socialista José Maria da Costa, foi falar com os moradores e disse “estar quase” a chegar a um princípio de acordo com a família de Manuela Cunha, cujos pais, um casal de idosos vive no prédio. Ainda assim, o casal em questão ainda não está totalmente convencido a sair. Os restantes moradores estão, de acordo com declarações do autarca, “reticentes” quanto à possibilidade de saírem.