Foi o primeiro confronto entre Carlos Costa e Mário Centeno depois de este último se tornar ministro das Finanças, no final de 2015. A relação entre os dois já não era boa, desde a polémica com a escolha para o departamento de estudos económicos, mas o tema dos dividendos pagos ao Estado foi o primeiro grande choque: o banco central acumulava lucros chorudos e, sob pressão orçamental, Centeno-ministro queria mais dividendos. Agora, com a inversão rápida da política do BCE, os lucros vão diminuir ou, mesmo, transformar-se em prejuízos – já está a acontecer em alguns países. Assim, Fernando Medina vai receber menos de Centeno-governador do que Centeno-ministro quis receber.
Em meados de dezembro, Mário Centeno descartou o risco de o Banco de Portugal ter prejuízos já em 2022, algo que vai acontecer com vários bancos da zona euro. Mas sobre os anos seguintes foi menos taxativo e disse apenas que “esta pressão vai manter-se durante mais alguns anos”, o que faz com que a previsão que existe neste momento seja de “uma redução muito substancial do que possam ser dividendos do Banco de Portugal nos próximos anos“. Contactada pelo Observador, fonte oficial do supervisor financeiro não quis acrescentar mais comentários.
O que está em causa é que durante a era das taxas de juro negativas, nos últimos anos, os bancos centrais passaram a cobrar juros aos bancos comerciais quando estes lá “parqueavam” a sua liquidez excedentária – ou seja, passou a ser uma receita para o Banco de Portugal aquilo que em tempos normais seria uma despesa. Mas, agora, voltou-se à normalidade: os bancos centrais do Eurossistema não só deixaram de cobrar juros como já estão a pagar aos bancos (comerciais) por esses depósitos. A chamada taxa dos depósitos está em 2%, neste momento, mas irá provavelmente subir para 2,5% na reunião do BCE desta quinta-feira.
Orçamento do Estado para 2023 prevê queda dos dividendos, para 240 milhões
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O Orçamento do Estado para 2023, elaborado em outubro do ano passado, prevê uma queda dos dividendos pagos pelo Banco de Portugal. Serão, a julgar pela proposta orçamental, 240 milhões de euros.
A confirmar-se, será a transferência mais baixa desde 2016, quando o Estado recebeu 186,3 milhões sobre os lucros de 2015 do Banco de Portugal. No ano passado, em 2022, o Banco de Portugal pagou 406 milhões em dividendos sobre o resultado de 2021.
O Observador questionou fonte oficial do Banco de Portugal sobre se continua atualizada a perspetiva de que o supervisor pague os 240 milhões que estão previstos no Orçamento do Estado. O risco é que a aceleração da subida dos juros (entre outubro e o momento atual) torne mais difícil a distribuição desse dividendo. Mas não foram feitos comentários.
A margem financeira do Banco de Portugal também está a ser pressionada pelas rendibilidades muito baixas (até negativas) dos títulos de dívida portuguesa que esteve a comprar nos últimos anos. Foram essas compras de dívida, iniciadas em 2015 e intensificadas na pandemia, que engordaram o balanço do banco central para mais de 100 mil milhões de euros. Muito devido à própria ação dos bancos centrais, que ajudaram a comprimir os juros dos países através das suas compras, nos últimos anos os Estados conseguiram emitir novas séries de dívida com juros anuais (fixos) muito baixos – e boa parte desses títulos, depois de ser vendida a investidores privados, acabou no balanço do banco central e por lá continua (a render muito pouco).
Foi diferente nos primeiros anos desses controversos estímulos monetários. No início, os títulos de dívida pública portuguesa que o Banco de Portugal comprava no mercado (a investidores privados) contemplavam o pagamento de juros anuais mais elevados e, por outro lado, o Banco de Portugal comprava-os a desconto em relação ao chamado par. O par é o capital que o Estado português teria de reembolsar (e reembolsou, a 100%, à medida que os títulos foram atingindo a maturidade). Mas porque o banco central os comprou a desconto, isso maximizou a mais-valia – e foi por este duplo efeito é que as compras de dívida foram muito rentáveis para o Banco de Portugal e, em diferentes medidas, para a generalidade dos bancos centrais da zona euro.
Nessa altura, sobretudo em 2016, Mário Centeno e outras figuras ligadas ao PS e à esquerda pressionaram o Banco de Portugal para que abrisse mão de mais dividendos. João Galamba, que no início da “geringonça” era porta-voz do PS, deu uma entrevista ao Observador onde se congratulava pelo facto de os dividendos terem subido de 183 milhões em 2015 para 450 milhões de euros em 2016 – esta era “uma maneira indolor de fazermos consolidação orçamental“, dizia João Galamba.
O raciocínio era simples: se o Banco de Portugal estava a ganhar mais por comprar mais dívida pública, e se era sobretudo pela própria ação dos bancos centrais que o preço daqueles títulos estava a subir de forma generalizada, então o banco central devia devolver esses lucros à origem – na forma de dividendos extraordinários.
O choque entre Costa e Centeno foi porque o então governador se recusou a aumentar a proporção habitual dos lucros que são distribuídos ao acionista (Estado), por regra 80%. Essa proporção está definida pelos estatutos, mas poderiam ser pagos dividendos extraordinários. A opção foi outra, porém: Carlos Costa usou esses lucros para reforçar as “provisões para riscos gerais” que, agora, poderão ser úteis para amortecer o impacto dos prejuízos caso eles venham a confirmar-se.
De acordo com as contas de 2021 do Banco de Portugal, as últimas disponíveis, estará colocada de lado uma “provisão para riscos gerais” que vale 3.677 milhões de euros, um valor que se tem mantido relativamente estável nos últimos anos. Porém, nos primeiros anos das compras de dívida pelos bancos centrais essa provisão superou os quatro mil milhões de euros: 4.047 milhões em 2015 e 4.247 milhões em 2016 – a partir dessa altura reduziu-se. A provisão para riscos gerais cobre o risco cambial, riscos de taxas de juro e os riscos de crédito dos ativos que estão no balanço do Banco de Portugal.
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Mário Centeno reconheceu, em dezembro, que “o custo de financiamento dos bancos centrais hoje, em virtude das taxas de juro negativas que vivemos durante muito tempo, é mais oneroso que o retorno dos ativos dos bancos centrais, e isso gera uma pressão nos seus resultados“. Porém, apontou Centeno, “o Banco de Portugal acumulou reservas e provisões que, na nossa avaliação, são mais que suficientes para cobrir” os custos associados à tal divergência desfavorável entre custos e receitas.
Outros bancos centrais estão numa situação ainda mais difícil, desde logo porque os títulos de dívida pública dos respetivos países, que foram comprando nos últimos anos, têm rendibilidades (ainda) menos vantajosas do que a dívida portuguesa. O banco central da Bélgica anunciou no início de dezembro que iria ter, já em 2022, o primeiro prejuízo desde a Segunda Grande Guerra: 9 mil milhões. Fora da zona euro, o Banco Nacional Suíço teve em 2022 o maior prejuízo da sua história: 132 mil milhões de francos suíços (perto de 131 mil milhões de euros, ao câmbio atual).
Se Mário Centeno descarta prejuízos em 2022, o governador do banco central dos Países Baixos, Klaas Knot, já veio reconhecer publicamente que terá havido um “pequeno prejuízo” no ano passado e que serão “consideráveis” as perdas nos próximos anos (especialmente em 2023 e 2024). A posição de um banco como o holandês, nesta matéria, é mais desfavorável do que em Portugal desde logo porque os títulos que estão no balanço têm rendibilidades ainda menores do que as obrigações do Tesouro que estão no “cofre” de Mário Centeno.
O banco central da Alemanha também já sinalizou a inevitabilidade de os lucros baixarem ao ponto de, provavelmente, haver prejuízos anuais. E foi por esta razão que o Bundesbank suspendeu a entrega de dividendos nos últimos dois anos, retendo todos os lucros para acumular uma “almofada” de provisões. Outros países, como Portugal, continuaram a pagar dividendos ao Estado.
E qual é a relevância prática disto? Numa carta ao ministro das Finanças, Knot garantiu que “as almofadas de capital têm uma dimensão importante e são capazes de absorver choques de dimensão substancial”. Porém, mesmo sendo “geríveis” alguns anos de prejuízos, o responsável sublinhou que “é essencial para um banco central manter uma posição de capital saudável” e, por isso, “caso as nossas almofadas forem consumidas em demasia (…) podem ser necessárias medidas adicionais”. E isso inclui, admite Klaas Knot, “uma contribuição de capital por parte do Estado holandês, num cenário extremo“.
Por outras palavras, embora os bancos centrais nunca possam ir à falência (porque têm a capacidade de emitir a moeda que desejarem), “os prejuízos de um banco central podem ter consequências práticas importantes, incluindo do ponto de vista orçamental“, escrevem analistas da casa de investimentos suíça Pictet Wealth Management. Numa nota de análise intitulada “Os prejuízos dos bancos centrais importam?”, os analistas dizem que “se as perdas de um banco central aumentem de forma significativa, por um período longo, poderá gerar-se pressão política para que eles sejam recapitalizados” com fundos públicos.
“E, por sua vez, a necessidade de recorrer a um apoio orçamental poderá ameaçar a credibilidade dos bancos centrais como guardiões da estabilidade dos preços”, dizem os analistas da Pictet, explicando de outra forma: “em última análise, o perigo associado aos prejuízos é as dúvidas que se geram em relação à independência do banco central“.
Este é mais do que um perigo teórico, apenas sinalizado por analistas. O próprio BCE, num relatório publicado há quase 10 anos, avisava: “se a saúde financeira de um banco central se deteriorar, ele poderá ver-se obrigado a pedir uma recapitalização por parte do governo – e, por sua vez, o governo em causa poderá tentar, a partir daí, influenciar as decisões que o banco central toma, como se fosse uma moeda de troca pela entrega do dinheiro público”.