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MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/Getty Images

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Preso antes do fim dos recursos? Em vários países, é normal

No Brasil Lula é preso depois de duas condenações e antes de esgotar todos os recursos. É um abuso? Nos EUA, Canadá ou Inglaterra seria preso ao fim da primeira. Análise jurídica de Nuno Gonçalo Poças

Haverá, seguramente, muitas formas de analisar o que se está a passar no Brasil com a Operação Lava Jato e a prisão de Lula da Silva – é possível olhar para a questão através da lente política, da social, da histórica ou da jurídica. Por muito tentador que seja escolher as primeiras, é a última que deve servir para entender o que se passa.

Lula da Silva foi condenado em primeira instância, recorreu e voltou a ser condenado em segunda instância. O que importa agora saber é se, apesar de ter ao seu dispor a legitimidade para interpor recursos extraordinários sem efeito suspensivo (isto é, recursos que não prevêem a suspensão de eficácia da decisão condenatória), a pena deve começar já a ser executada ou não. Em resumo: o que interessa saber é se, em função da lei e da jurisprudência brasileiras, Lula deve ou não começar a cumprir pena, apesar de ainda poder recorrer de forma extraordinária. É essa a questão que neste artigo se analisa.

Houve decisões anteriores semelhantes?

A questão não se colocou pela primeira vez a propósito de Lula. Já nas conjunturas constitucionais pré-1988, o Supremo Tribunal Federal decidia pela incompatibilidade do efeito suspensivo com os recursos extraordinários. E mesmo após 1988, o STF interpretou, por mais que uma vez, de forma bastante restritiva o princípio da presunção de inocência que a nova ordem constitucional trouxera ao Brasil. Além disso, é o próprio artigo 637.º do Código de Processo Penal que afirma que “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.”

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Em 2016, o Partido Ecológico Nacional e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados Brasileiros interpuseram acções declaratórias de constitucionalidade, pedindo ao STF que confirmasse a constitucionalidade do artigo 283.º do Código de Processo Penal – que diz que “ninguém poderá ser preso senão (…) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Por sete votos contra quatro, o STF afirmou, então, ser possível executar as penas depois da decisão condenatória proferida pelo tribunal de segunda instância, ancorando-se, por exemplo, numa decisão do próprio STF, de 2007, em que se decidiu o seguinte: “A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de ser possível a execução provisória da pena privativa de liberdade, quando os recursos pendentes de julgamento não têm efeito suspensivo”. Olhando a esta decisão, a prisão de Lula estaria conforme a jurisprudência.

"Ao se permitir que a punição seja retardada por anos e mesmo décadas, cria-se um sentimento social de ineficácia da lei penal e permite-se que a morosidade processual possa conduzir à prescrição dos delitos.”
Luiz Barroso, juiz do STF

Uma discussão filosófica que não nasceu com Lula da Silva

Podemos até argumentar que o Brasil está a atravessar uma mudança profunda no seu sistema jurídico – e que escolheu a pior altura para o fazer. Mas não se pode afirmar que a questão filosófica que aqui está em causa não merece reflexão.

Existem, de facto, duas correntes em confronto e não têm nada que ver com esquerda ou com direita, com progressistas ou conservadores, com defensores das políticas sociais do PT ou com fascistas brasileiros. O que aqui está em causa são duas visões do princípio da presunção de inocência: de um lado os utilitaristas, do outro os que acreditam que o princípio é um fim em si mesmo.

Os segundos, com muitas vozes solidárias em Portugal, entendem que a presunção de inocência deve impedir o cumprimento de qualquer pena até que se esgotem todos os recursos (extraordinários ou não, com efeito suspensivo ou não).

Já a visão dos primeiros pode ser resumida no entendimento manifestado pelo Ministro do STF, Luiz Barroso: “O sistema penal brasileiro não tem funcionado adequadamente. A possibilidade de os réus aguardarem o trânsito em julgado dos recursos especial e extraordinário em liberdade para então iniciar a execução da pena enfraquece demasiadamente a tutela de bens jurídicos resguardados pelo direito penal e a própria confiança da sociedade na justiça criminal. Ao se permitir que a punição seja retardada por anos e mesmo décadas, cria-se um sentimento social de ineficácia da lei penal e permite-se que a morosidade processual possa conduzir à prescrição dos delitos.”

É aqui que o debate fica bloqueado. Com a decisão do STF aplicada a Lula da Silva, a tentação da politização do debate e, consequentemente, da justiça é grande. Há quem acuse a justiça brasileira de estar a agir politicamente contra o ex-Presidente brasileiro, tentando impedi-lo de se recandidatar à liderança do país – um pouco à semelhança do que fez José Sócrates quando afirmou que a investigação de que é alvo pretendeu afastá-lo da corrida às presidenciais de 2016. Por outro lado, há quem lamente a morosidade da justiça, a proliferação de mecanismos de defesa, muitas vezes utilizados com intenção manifestamente dilatória, alertando para o crescimento dos sentimentos de impunidade junto da população quando estão em causa arguidos poderosos. Discutir todo este caso sem querer passar por aqui é ignorar o que realmente se passa.

Que exemplos temos lá fora?

Pensando no caso português, é perceptível a diferença: por cá, a prisão apenas se efectiva após decisão em última instância e o respectivo trânsito em julgado – atendendo à regra da dupla conforme e do efeito suspensivo de alguns recursos. Ora, diferentes modelos lidaram de forma diferente com este desafio de definir o momento a partir do qual se aplica a prisão.

Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Os países anglo-saxónicos, pais dos direitos dos cidadãos contra os abusos do Estado, não interpretam o princípio da presunção de inocência de forma absoluta. Afinal, ele decorre, por exemplo, do Código Penal americano e das 5.ª, 6.ª e 14.ª Emendas à Constituição dos EUA. Mas nos ordenamentos anglo-saxónicos há um respeito muito grande pelas decisões proferidas pelos tribunais de primeira instância, já que, regra geral, as penas são cumpridas imediatamente a seguir àquelas. Ou seja, um condenado em primeira instância começa a cumprir a sua pena de prisão efectiva independentemente do facto de tal decisão poder vir a ser alterada por um tribunal de segunda instância.

Alemanha. Um país que viveu o nazismo não podia deixar de ter na presunção de inocência um princípio inabalável. No entanto, nem na Alemanha tal princípio é absoluto, já que a sua lei processual penal não prevê efeito suspensivo para todos os recursos. O que significa que, também na Alemanha, nem em todos os casos em que ainda seja possível recorrer isso se traduz em suspensão do cumprimento da pena de prisão.

França. A pátria da Declaração de 1789 assegura que todas as pessoas são inocentes até serem declaradas culpadas. No entanto, o Código de Processo Penal francês não deixa de prever hipóteses em que o tribunal pode emitir mandado de prisão ainda que estejam pendentes recursos.

Nos países anglo-saxónicos, um condenado em primeira instância começa a cumprir a sua pena de prisão efectiva independentemente do facto de tal decisão poder vir a ser alterada por um tribunal de segunda instância.

O que importa perceber

A decisão do Supremo Tribunal Federal de fazer executar provisoriamente a pena de prisão a Lula da Silva não é inédita, por um lado, e não colide, por outro, de forma frontal com o já famoso artigo 5.º da Constituição brasileira. Há um histórico de interpretação do STF neste sentido, e há pelo mundo, nomeadamente na comunidade anglo-saxónica, uma prática de fazer cumprir as penas de prisão sentenciadas em primeira instância, independentemente da pendência de recursos.

O que o Brasil está a fazer é aproximar-se da tendência anglo-saxónica, mesmo garantindo o direito a uma segunda decisão que confirme a primeira antes de decidir executar a pena de prisão. O erro, em Portugal, tem sido o de olhar para o caso com a lente do ordenamento jurídico português, interpretando-se, muitas vezes, a lei brasileira como se ela fosse a portuguesa. Na verdade, o entendimento no Brasil não é imune à divergência, mas esse é um problema do Direito um pouco por todo o mundo e não depende de casos concretos. A decisão aplicada e que está a ser posta em causa por Lula da Silva e pelo PT (e por muitos em Portugal) é admissível à luz do Direito brasileiro. Portanto, fica a pergunta: se está a haver, como se diz, um golpe contra a democracia no Brasil, o que dizer de um condenado em duas instâncias que se recusa a cumprir uma decisão judicial?

Chegados aqui, nas sociedades contemporâneas, marcadas por casos de corrupção que envolvem políticos e empresários poderosos, o que importa discutir é isto: de que forma se compatibilizam os direitos dos arguidos, nomeadamente o princípio da presunção de inocência, com a complexidade da corrupção moderna e com o combate aos sentimentos cada vez mais crescentes de impunidade quando se fala de gente poderosa? E não é isto que estamos a discutir.

Nuno Gonçalo Poças é advogado e foi assessor no XIX Governo. Escreve no Observador sobre o sistema político e a justiça.

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