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Natalia tem 25 anos e mora há anos no Reino Unido. Voltou para São Petersburgo em janeiro, para tratar do pai, que está doente. Um mês depois foi surpreendida pela invasão da Ucrânia
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Natalia tem 25 anos e mora há anos no Reino Unido. Voltou para São Petersburgo em janeiro, para tratar do pai, que está doente. Um mês depois foi surpreendida pela invasão da Ucrânia

Natalia tem 25 anos e mora há anos no Reino Unido. Voltou para São Petersburgo em janeiro, para tratar do pai, que está doente. Um mês depois foi surpreendida pela invasão da Ucrânia

"Primeiro baniram a palavra 'guerra', agora também não podemos dizer 'paz'." Natalia fez-se TikToker para mostrar a Rússia ao resto do mundo

Natalia, 25 anos, faz vídeos no TikTok a partir de São Petersburgo e já teve de mudar de casa. Diz que há uma novilíngua em vigor mas que nem tudo o que chega ao Ocidente sobre a Rússia é verdade.

Quando, no dia 6 de março deste ano, o TikTok anunciou que ia proibir a publicação de novos conteúdos a partir da Rússia para proteger a empresa e os seus utilizadores da nova lei das “fake news” instituída no país, Natalia constatou, com surpresa, que a rede social no país se tinha enchido de conteúdos a favor da guerra literalmente do dia para a noite.

Com a remoção de todos os vídeos publicados a partir de contas estrangeiras e com a proibição dos live streams, de cada vez que esta russa, de 25 anos, abria a aplicação começavam a rodar conteúdos pró-Putin e pró-Kremlin, quase todos iguais, com as mesmas músicas, as mesmas hashtags e os mesmos argumentos contra a Ucrânia e o Ocidente.

“Claro que o TikTok diz que está a fazer isto para nos proteger, para nos ajudar a parar de espalhar informação falsa. Mas, surpreendentemente, depois de ter sido limitado, o TikTok russo tornou-se assustadoramente patriótico”, analisou a editora de vídeo em meados de maio ao Observador, numa conversa por telefone, entre Lisboa e São Petersburgo.

A partir de uma conta nova, começou a relatar aquilo que se passa para lá daquela a que chama a nova cortina de ferro da Europa. Em apenas dois meses angariou mais de 33 mil seguidores e já ultrapassou as críticas dos que a acusavam de não ser russa — o sotaque em inglês, depois de anos a viver no Reino Unido, não será condizente com o que se espera de alguém daquele país

“Antes disto não tinha visto uma única pessoa a dizer que apoiava a guerra e o governo, só havia movimentos anti-guerra. Dias mais tarde, começaram a surgir uma série de utilizadores novos que postam conteúdos muito patrióticos e dizem que a Ucrânia está cheia de nazis. E é tudo partilhado no mesmo dia, com legendas que dizem o mesmo, vê-se claramente que é uma coisa organizada e que alguém está a ser pago para publicar estes conteúdos”, acusa Natalia. A editora de vídeo acabou por corroborar in loco e com conhecimento de causa as conclusões de uma investigação publicada a meio desse mês pela revista Vice, que revelou a existência de “uma campanha coordenada para pagar aos influencers russos do TikTok para publicarem vídeos com narrativas pró-Kremlin sobre a guerra na Ucrânia”, ultrapassando com VPN’s as restrições impostas pela ByteDance, a empresa chinesa de media que detém a aplicação.

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Mais de 33 mil seguidores em dois meses e quase 321 mil visualizações no vídeo inaugural

Farta de ver vídeos de influencers russos a idolatrar Vladimir Putin e a glorificar a invasão da Ucrânia, Natalia, que diz que até só usava a rede social para “ver vídeos de gatinhos e de receitas”, decidiu um dia ligar o seu smartphone inglês para perceber se, através dele, conseguiria aceder à aplicação com os conteúdos carregados no mundo inteiro.

Resultou. E, durante uns dias, a jovem — que até janeiro deste ano viveu no Reino Unido (daí o smartphone) e só regressou a São Petersburgo para tratar do pai, doente em fase terminal — voltou aos vídeos do costume. “Mas depois comecei a ver que ninguém estava a contar aquilo que estava a acontecer na Rússia. Muitos criadores ucranianos queixavam-se de não fazerem ideia de o que estava a acontecer aqui, o que é que as pessoas pensavam, o que estavam a fazer, porque toda a imprensa tinha sido banida também e só ficou a imprensa estatal”, recorda Natalia, que no Reino Unido trabalhava em edição de vídeo e branded content para influencers.

@ironcurtainlyf always been behind the camera so this is new. sorry in advance.#warinukraine #russia #putin #ukraineinvasion #???????? ♬ original sound - Natalia????

“Durante uns dias continuei a fazer scroll, à procura, achava que tinha de existir alguém. Mas não havia ninguém, por isso decidi fazer um pequeno vídeo. Pensei ‘Se as pessoas se interessarem, posso fazer mais’. Foi imediato, tive tantas visualizações, tantos comentários, houve tantos criadores ucranianos que vieram dizer-me que era a primeira pessoa que viam: ‘Sabemos que têm de existir pessoas que não apoiam isto, mas não sabemos quantos são e o que está a acontecer’.”

Desde então, a partir de uma conta nova, Natalia começou a relatar aquilo que se passa para lá daquela a que chama a nova cortina de ferro da Europa. Em apenas dois meses, em @ironcurtainlyf, angariou mais de 33 mil seguidores e já conseguiu ultrapassar as críticas dos que a acusavam de não ser russa — o sotaque em inglês, depois de anos a viver no Reino Unido, onde estudou cinema, não será condizente com o que se espera de alguém daquele país.

“Há uma série de assunções na imprensa ocidental do que se está a passar aqui que não são reais, porque simplesmente é difícil falar com alguém, é difícil fazer fact-checking. Há tempos diziam que não tínhamos açúcar, vi uma reportagem em que diziam que a Rússia estava tão pobre que tinham começado a por alarmes em alguns alimentos no supermercado, mas na verdade isso é uma coisa que acontece há dez anos. As pessoas roubam muito — mas em Inglaterra também e também há alarmes nas embalagens das carnes mais caras, por exemplo"
Natalia, influencer russa

O primeiro vídeo que publicou, a apresentar-se como “uma das poucas pessoas da Rússia que ainda tem acesso ao TikTok estrangeiro”, já foi visto quase 321 mil vezes. Nele, como em todos os outros que partilhou desde então, dá a cara, mas não detalhes específicos sobre a sua localização (sabe-se apenas que é uma de entre os cinco milhões de habitantes de São Petersburgo) ou sobre a sua vida passada. Aliás, antes de começar a publicar na nova conta, apagou toda a sua pegada digital que, essa, sim, poderia denunciá-la rapidamente, através dos locais que frequentava no Reino Unido, dos amigos que tinha lá e na Rússia, e dos locais onde estudou e trabalhou.

“A informação que chega ao Ocidente é muito, muito limitada”

Apesar de, em teoria, os seus vídeos só poderem ser vistos a partir do exterior, não esconde que tem medo — no dia em que o carteiro lhe bateu à porta, diz que o seu coração quase parou, com receio de que a polícia russa tivesse descoberto o seu paradeiro —, mas que não é por isso que vai deixar de contar ao resto do mundo o que se passa no país. Alguém tem de o fazer, justifica-se ao Observador, garantindo que muito do que passa para este lado não corresponde à realidade.

“A informação que chega ao Ocidente é muito, muito limitada. As pessoas começaram a fazer-me perguntas e algumas delas mostram como o que chega aí não é real. Perguntaram-me se era verdade que estávamos a passar fome, por exemplo. Não estamos, não mais do que antes da guerra, pelo menos”, diz.

“Há uma série de assunções na imprensa ocidental do que se está a passar aqui que não são reais, porque simplesmente é difícil falar com alguém, é difícil fazer fact-checking. Há tempos diziam que não tínhamos açúcar, vi uma reportagem em que diziam que a Rússia estava tão pobre que tinham começado a por alarmes em alguns alimentos no supermercado, mas na verdade isso é uma coisa que acontece há dez anos. As pessoas roubam muito — mas em Inglaterra também e também há alarmes nas embalagens das carnes mais caras, por exemplo.”

“Só não há manifestações porque a repressão aumentou ainda mais. No Dia da Vitória houve pessoas presas por terem rosas brancas nas mãos. Há um movimento feminista anti-guerra, inspirado num movimento israelita dos anos 1980, que consiste em manifestações silenciosas, basicamente são mulheres vestidas de preto com rosas brancas. No Dia da Vitória, aqui em São Petersburgo, várias pessoas foram presas"
Natalia, influencer russa

Apesar de as manifestações, que nos primeiros dias da invasão da Ucrânia até eram frequentes, quase terem parado, Natalia garante que se começam a ouvir, nos cafés e nas ruas, cada vez mais pessoas que são contra a guerra.

“Só não há manifestações porque a repressão aumentou ainda mais. No Dia da Vitória, houve pessoas presas por terem rosas brancas nas mãos. Há um movimento feminista anti-guerra, inspirado num movimento israelita dos anos 1980, que consiste em manifestações silenciosas, basicamente são mulheres vestidas de preto com rosas brancas. No Dia da Vitória, aqui em São Petersburgo, várias pessoas foram presas”, conta, recordando o 9 de Maio deste ano, que contou com paradas militares em todas as principais cidades do país, São Petersburgo incluída.  “E depois também temos, há mais de um mês, uma linha direta para denúncias, em que basta alguém ligar e dizer que alguém é contra o governo e eles vêm prender-te.”

Um “Z” desenhado na porta, uma mudança de casa e o medo das revistas aleatórias na rua

Apesar de acreditar que não tem seguidores suficientes para fazer soar os alarmes do Kremlin — que, diz também, estarão muito mais direcionados para quem faz oposição para o interior da Rússia e em russo —, a agora influencer diz que há certos cuidados que não descura, e não apenas para sossegar o pai que, apesar de orgulhoso do trabalho da filha, já lhe disse várias vezes que um dia “ainda a levam para o gulag”. Aliás, já teve mesmo de mudar de casa, depois de ter acordado um dia para um “Z”, o símbolo de apoio à invasão russa da Ucrânia, desenhado na sua porta.

Além de nunca sair à rua com o telefone inglês, Natalia faz questão de não ter, no aparelho com cartão russo, nenhum grupo de Telegram conotado com a oposição ou qualquer outro conteúdo que a possa denunciar como anti-governo.

Desde 2020 e após a onda de protestos programados para uma série de cidades do país pela oposição encabeçada por Alexei Navalny, passou a ser “muito comum” na Rússia ser-se parado pela polícia na rua e ter de entregar passaportes e telemóveis, diz Natalia

Também anda sempre de máscara — a pandemia de Covid-19 a ajudar, por uma vez —, e faz por evitar os pontos de reconhecimento facial espalhados pela cidade. “É muito fácil, porque todos sabemos exatamente onde estão, e a tecnologia também é muito antiga, portanto não funciona assim tão bem. Mais complicadas são as revistas aleatórias, que às vezes eles fazem, sobretudo no centro da cidade e às pessoas mais novas, que são mais anti-guerra do que os mais velhos”, revela, para depois explicar que, desde 2020 e após a onda de protestos programados para uma série de cidades do país pela oposição encabeçada por Alexei Navalny, passou a ser “muito comum” na Rússia ser-se parado pela polícia na rua e ter de entregar passaportes e telemóveis.

Nos vídeos que partilha, saltam à vista os fortes contingentes policiais e militares nas ruas, em dias aparentemente “normais” e até no meio das procissões da Páscoa Ortodoxa, lado a lado com padres e até a carregar estandartes religiosos. E as bandeiras russas hasteadas em casas particulares e estabelecimentos comerciais, algumas com o “Z” pintado a meio, símbolo que até nas pastelarias passou a ser comum, a decorar bolos de aniversário e afins.

@ironcurtainlyf editing a big vlog for you guys about this year’s ‘celebration’ but for now enjoy this cringefest of people i saw during the Immortal Battalion Parade today #ironcurtain #Z #ZaRossiy #ZaMir #Zalupa #censorship #gulag #putin #kremlingremlin #victoryday #НаБерлин #МожемПовторить ♬ 아무노래 - ZICO

Nem tudo o que parece é realmente, garante ao Observador, exemplificando com o Dia da Vitória, que documentou em vídeo, pelas ruas de São Petersburgo. “Toda a gente achava que ia ser uma festa, mas o que se viu foi uma tristeza absoluta, as pessoas estavam muito tristes, tivemos pessoas que foram pagas para andar ao longo do desfile e animar as pessoas que estavam a assistir, para as fazerem cantar e aplaudir e gritar ‘Força, Rússia!’, porque ninguém o estava a fazer voluntariamente”, diz Natalia, garantindo que, tal como foram colocados anúncios na rede social Telegram para fazer TikToks a apoiar a guerra a troco de dinheiro, também antes do feriado aconteceu o mesmo.

“Havia um anúncio no Telegram à procura de pessoas para fazerem parte do Regimento Imortal [a marcha em que se homenageia os combatentes russos da Segunda Guerra Mundial] e entrarem na parada”, revela a influencer, ao telefone com o Observador. “Era muito pouco dinheiro, acho que uns três euros por hora, o que até para a Rússia é muito pouco. O anúncio dizia que procuravam alguém jovem e enérgico para cantar canções de guerra e animar a multidão. Já fui a alguns desfiles do Dia da Vitória na minha vida, e antes as pessoas tinham orgulho, orgulho nos feitos dos seus antepassados e das pessoas que lutaram na Segunda Guerra Mundial, mas este ano foi só triste.”

"Baniram a palavra 'guerra' e agora baniram também a palavra 'paz', portanto, pessoas que se manifestam silenciosamente, ostentando a palavra paz, também estão a ser presas. Temos uma celebração no 1.º de Maio cujo slogan é 'Paz, Trabalho, Maio' mas este ano, em vez de 'Paz', os cartazes diziam 'Desporto', 'Felicidade' ou coisas do género. Está a tornar-se cada vez mais absurdo" 
Natalia, influencer russa

Por entre toda a desinformação sobre a Rússia e os russos que chega ao Ocidente, garante Natalia, que pede reserva do seu apelido, uma coisa está correta: por ordens do governo do país não se pode mesmo escrever nem dizer publicamente a palavra “guerra”. Pior do que isso, a realidade está a imitar de tal forma a ficção que em vigor começa a estar uma espécie de novilíngua orwelliana, em que “ignorância” ainda não é “força”, mas pouco parece faltar.

“Há tanta gente processada por ter escrito ‘guerra’ no Twitter ou no Instagram… Baniram a palavra ‘guerra’ e agora baniram também a palavra ‘paz’, portanto, pessoas que se manifestam silenciosamente, ostentando a palavra paz, também estão a ser presas”, revela a TikToker, para depois dar mais um exemplo desconcertante. “Temos uma celebração no 1.º de Maio cujo slogan é ‘Paz, Trabalho, Maio’ mas este ano, em vez de ‘Paz’, os cartazes diziam ‘Desporto’, ‘Felicidade’ ou coisas do género. Está a tornar-se cada vez mais absurdo.”

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