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É difícil perceber se é o mundo que está pior ou se são os media que estão melhores – “melhores” no sentido de mais eficazes, colocando-nos instantaneamente a par de qualquer tumulto de rua, escândalo de corrupção, destituição de ministro ou sobressalto bolsista que ocorra no lugar mais remoto do planeta. Pouca importa se a percepção é real ou se resulta da sobrecarga de informação e do déficite de memória dos consumidores de informação, o que é certo é que a maioria das pessoas tem a sensação de viver “em tempos excepcionalmente instáveis”, como escreve John Scarlet, ex-director do MI6, no prefácio a Prisioneiros da geografia. Essa sensação angustiante de sentir o chão a fugir debaixo dos pés desencadeia manifestações de saudade pelos velhos tempos em que o mundo era, supostamente, estável e previsível, e um extraordinário apetite por sábios e oráculos capazes de elucidar todo o “som e a fúria” do mundo actual em cinco minutos e dois gráficos – como se existissem respostas simples para questões complexas – e de prever a sua evolução no futuro próximo.
Daí que os politólogos e os analistas de política internacional se tenham tornado muito requisitados pelos canais de televisão e as livrarias se tenham visto invadidas por livros sobre geopolítica global. Por cá, onde continuam por traduzir tantas obras de referência da divulgação da história do passado, têm sido prontamente publicados os livros de “história do futuro” de George Friedman, o guru da prospectiva geopolítica: o francamente lunático e mórbido Os Próximos 100 Anos: Uma previsão para o século XXI (The next 100 years: A forecast for the 21st century, de 2009), que se deleita a imaginar com minúcia macabra e pueril um ataque traiçoeiro do Japão aos EUA (“Pearl Harbor parte 2”); o superficial e presunçoso A próxima década: Onde temos estado e para onde nos dirigimos (The next decade: Where we’ve been and where we’re going, de 2011); e o medíocre e pouco rigoroso Focos de tensão: Os choques geopolíticos que ameaçam o futuro da Europa (Flashpoints: The emerging crisis in Europe, publicado originalmente em 2015). Todos eles enfermam de uma perspectiva americanocêntrica e de uma doentia concepção do mundo como tabuleiro de jogo de guerra entre nações hiper-militaristas e ultra-maquiavélicas; para maior descrédito do autor, nada do que de inesperado aconteceu no mundo desde que foram publicados – as “Primaveras Árabes” ou a deriva de países-membros da União Europeia para a extrema-direita, por exemplo – faz parte das “previsões” destes três livros.
Bem mais válido é Os grandes conflitos mundiais: Uma análise estratégica sobre as zonas mais perigosas e as ameaças à estabilidade do nosso mundo (The world in conflict: Understanding the world’s troublespots, de 2015), de Andrew Davis, que fornece de forma clara e esquemática os elementos indispensáveis para começar a compreender o que se passa por trás dos fragmentos incongruentes de informação sobre política internacional despejados pelos telejornais.
Ainda superior, em clareza e poder de síntese, a Os grandes conflitos mundiais é este Prisioneiros da geografia: Dez mapas que lhe revelam tudo o que precisa de saber sobre política internacional (Prisoners of geography: Ten maps that tell you everything you need to know about global politics) editado originalmente em 2015 e que chega agora a Portugal pela mão da Desassossego, com tradução de Sónia Maia.
A geografia como destino
O ponto de partida de Tim Marshall em Prisioneiros da geografia é reducionista – não haveria forma de compactar boa parte da complexidade do mundo de hoje em apenas 250 páginas se não o fosse. A sua perspectiva assenta no primado da geografia: “A tecnologia pode parecer ultrapassar as distâncias […] e é fácil esquecer que [as escolhas dos líderes políticos] serão, em certa medida, sempre influenciadas pelos rios, montanhas, desertos, lagos e mares que nos rodeiam a todos – como sempre o foram”.
O pressuposto de Marshall é discutível: é verdade que, em Armas, germes e aço: Os destinos das sociedades humanas (Temas & Debates), Jared Diamond argumentou convincentemente em favor da geografia e da biogeografia como factores mais relevantes para a explicação das diferenças de desenvolvimento civilizacional em diferentes partes do globo (ver As zebras não são cavalos com riscas). Porém, Diamond usa a explicação geográfica apenas para o período que vai do início da agricultura, c. 13.000 aC, até ao ano 1000 dC, um período em que o desenvolvimento tecnológico era ainda demasiado incipiente para superar as condicionantes impostas pelo mundo físico. Para compreender a evolução da sociedades humanas nos últimos 500 ou 1000 anos é preciso somar à geografia muitos outros factores, como têm feito autores como David S. Landes, Jack Goldstone, Kenneth Pomeranz, Charles C. Mann, Niall Ferguson e Ian Morris, para citar só nomes consagrados nesta área que foram publicados em Portugal nos últimos anos.
Um dos mais interessantes para a colocação em contexto de Prisioneiros da geografia é Porque falham as nações: As origens do poder, da prosperidade e da pobreza (Why nations fail: The origins of power, prosperity and poverty), de Daron Acemoglu & James A. Robinson, publicado originalmente em 2012, pois tem visão oposta à de Marshall: as condicionantes de natureza física – topografia, hidrografia, recursos minerais – não bastam para explicar o sucesso ou fracasso das nações e as justificações de cariz estritamente cultural – como o credo religioso – também não. O que conta, no longo prazo, dizem-nos Acemoglu & Robinson, é a existência de instituições inclusivas (por oposição às instituições extractivas), que privilegiam o primado da lei, o pluralismo, a igualdade de oportunidades e a liberdade de escolha. Será pois profícuo contrabalançar a leitura de Prisioneiros da geografia com a de Porque falham as nações.
O mundo da realpolitik: Rússia
A visão do mundo oferecida por Marshall não se prende ao que deveria ser, ao que seria justo, mas à realpoltik, pura, dura e cínica. Não é um maior ou menor apreço pela democracia liberal, pelos direitos humanos e pela liberdade de expressão que dita as diferentes posturas oficiais das nações europeias face à Rússia, diz-nos, mas a proximidade geográfica a Moscovo e a sua dependência do gás russo: “metade do gás consumido na Alemanha vem da Rússia, o que […] é, em parte, a razão por que os políticos alemães tendem a ser mais lentos nas críticas ao Kremlin pelos seus comportamentos agressivos do que a Grã-Bretanha, que não só tem 13% de dependência, como possui, também, a sua própria produção de gás, incluindo reservas capazes de garantir até nove meses de abastecimento”. Poderia introduzir-se aqui outro aspecto das condicionantes geográficas: um país meridional como Portugal, onde o aquecimento no Inverno é sobretudo uma questão de conforto, estará menos preocupado em não melindrar o seu principal fornecedor de gás, do que outro país mais setentrional, onde o aquecimento no Inverno é uma questão de sobrevivência.
Marshall não alimenta ilusões em relação ao destino da Crimeia: apesar da ilegitimidade da Rússia perante a lei internacional para tomar controlo da Crimeia, ela nunca abrirá mão deste território, pois nele se situa o seu único grande porto livre de gelo durante 12 meses por ano (Sebastopol) e vivem lá milhões de russos étnicos, que representam 60% da população. É certo que, do ponto de vista formal, em 1954, Nikita Khrushchev transferiu a Crimeia para a jurisdição da República Socialista Soviética da Ucrânia, mas fê-lo como acto simbólico e não imaginando que a URSS iria implodir dentro de 37 anos e que a Ucrânia se tornaria num Estado autónomo com interesses mais alinhados com a União Europeia do que com Moscovo. Face à geografia e à história, argumenta Marshall, Putin sentiu-se obrigado a recuperar a Crimeia para a Rússia e não é provável que possa ser demovido. Compreendem-se as motivações de Putin, mas a verdade é que, quando da implosão da URSS e a independência da Ucrânia, a Rússia teve oportunidade para questionar a “oferta” de 1954 e não o fez, contentando-se em fazer a divisão da antiga frota soviética do Mar Negro e em assegurar o uso da base naval de Sebastopol – um facto relevante que Marshall omite.
Marshall também nada diz sobre como a Crimeia foi englobada na esfera russa. Acontece que, se as reivindicações históricas se sobrepuserem ao direito internacional, a Crimeia não deveria ser russa nem ucraniana, mas um estado independente. Os tártaros – um povo de língua turca proveniente da Ásia Central – estabeleceram-se na península da Crimeia no século X, converteram-se ao Islão no século XIV e entre os séculos XV e XVIII constituíram-se como uma nação, o Canato da Crimeia, um estado vassalo do Império Otomano. Após a derrota dos turcos na Guerra Russo-Turca de 1768-74, a Crimeia viveu um breve período de independência, sendo anexada pelo Império Russo em 1783. Até então, a Crimeia albergara, além dos tártaros, minorias gregas, arménias, circassianas, judias, venezianas e genovesas, mas não russas.
A anexação russa deu início a uma sucessão de episódios que levaram à eliminação da população tártara e à sua substituição por russos étnicos. Uma vez que os tártaros nunca deixaram de anelar pela independência – uma aspiração tão legítima como a dos polacos – os sucessivos governos russos encararam-nos sempre com suspeição – ou rotularam-nos mesmo como “traidores” – e promoveram a sua repressão, perseguição e deportação, usando como pretexto os conflitos internacionais com implicações na Crimeia. Foi assim com a invasão da Rússia por Napoleão, a Guerra da Crimeia (1853-56) e a Guerra Russo Turca de 1877-78.
Centenas de milhares de tártaros foram deportados ou morreram na tentativa de escapar aos conflitos, mas, ainda assim, restava-lhes identidade e ânimo suficientes para proclamar a Crimeia como república independente a 26 de Dezembro de 1917, na sequência das convulsões da revolução de Outubro. A república durou menos de um mês, acabando por cair sob o domínio dos bolcheviques, que retomaram, com energia redobrada, a “limpeza étnica” dos povos da península: uns morreram em resultado das fomes de 1921, outros nas colectivizações de 1928-29 e outros na fome imposta à Ucrânia por Stalin em 1931-33, outros buscaram refúgio em países limítrofes. Estima-se que dos 300.000 tártaros que habitavam a Crimeia em 1917, apenas restassem 150.000 em 1933. Mas ainda estava por desferir o golpe mais brutal: em 1944, Stalin determinou a deportação de toda a população de tártaros da Crimeia para a Ásia Central, como punição por alegada colaboração com o invasor alemão. A deportação foi feita em condições desumanas e muitos tártaros morreram na viagem ou no exílio. daqui resultou que a percentagem de tártaros na população da Crimeia tivesse declinado de 34% em 1897 para 2% em 1959. Alguns dos deportados regressariam pouco a pouco à Crimeia, de forma que os tártaros representam hoje 10% da população da península. Putin justifica a anexação da Crimeia com o facto de 68% da população ser russa, mas omite que tal resulta de dois séculos de políticas activas de limpeza étnica e colonização.
China
Marshall vê na ocupação do Tibete pela China uma inevitabilidade geopolítica análoga à da ocupação da Crimeia pela Rússia: o facto de o Tibete já ter sido território chinês, a possibilidade de a Índia, rival da China, assumir o seu controlo (aquilo a que Marshall chama “a geopolítica do medo”) e o facto de o Tibete funcionar como “a torre de água da China” (os seus três maiores rios nascem lá), faz com que a China esteja determinada a manter-se na posse do Tibete, por muito que tal contrarie o direito internacional. “O actor Richard Gere e o movimento Tibete Livre continuarão a denuncias as injustiças da ocupação, hoje colonização, do Tibete pelos chineses Han; mas numa batalha entre o Dalai Lama, o movimento para a independência do Tibete e estrelas de Hollywood e o Partido Comunista Chinês […] haverá apenas um vencedor”.
No capítulo sobre a China, Marshall faz uma afirmação contestável quando, evocando a tradição marítima chinesa, escreve que as expedições do almirante Zheng He no início do século XIV iam “em busca de lucro”. Os historiadores continuam a discutir acesamente qual terá sido o propósito das sete “viagens do tesouro”, realizadas entre 1405 e 1433 sob o comando de Zheng He, que chegaram ao Golfo Pérsico, ao Mar Vermelho e á costa oriental de África e envolveram frotas gigantescas. Embora não seja de excluir que o empreendimento pudesse ter uma componente comercial, vários especialistas defendem que visava afirmar o prestígio e poderio do Império Chinês, obter a submissão formal dos “povos bárbaros” (que ficariam esmagados perante tamanha demonstração de superioridade tecnológica e cultural) e reforçar os vínculos com os estados tributários do império. Seja como for, é curioso contrastar que a China, após ter possuído no século XV uma frota com um poderio esmagador por comparação com qualquer outro estado asiático ou europeu e de ter mostrado cabalmente que era capaz de “projectar a sua força”, para usar a expressão do léxico bélico de hoje, tenha feito uma precipitada marcha-atrás neste domínio e se tenha, deliberadamente, tornado irrelevante como potência marítima nos cinco séculos e meio seguintes – uma situação que a China do século XXI parece querer inverter rapidamente.
EUA
O capítulo sobre os EUA deixa claro que a emergência deste país como a nação mais poderosa e rica do continente americano estava longe de ser uma inevitabilidade quando, em 1776, as 13 colónias na costa Leste da América do Norte proclamaram a independência (ver Esta estrada leva a Clintonville ou a Trump City?). No início do século XIX, a França detinha a Louisiana, nome que então designava os vastos territórios interiores entre o Canadá e o Golfo do México – ainda que apenas formalmente e com uma presença humana ultra-rarefeita – e a Espanha era detentora de boa parte do que é hoje o Sul dos EUA, da Flórida até à Califórnia.
Qual teria sido a história dos EUA se, em 1803, a França não tivesse acedido em vender a Louisiana e Espanha não tivesse cedido, em 1819, as Flóridas Oriental e Ocidental? Os EUA nem sequer teriam acesso ao Golfo do México… Se a Revolução do Texas, em 1835-36 não tivesse subtraído este território (que compreendia também parte do que são hoje os estado do Novo México e do Colorado) e se a guerra americano-mexicana de 1846-48 não tivesse terminado com a vitória americana, o México seria a mais vasta nação na América do Norte. A improvável expansão dos EUA até às fronteiras que lhe conhecemos hoje – fixadas definitivamente em 1867, com a aquisição do Alaska à Rússia, e em 1898, com a anexação do Hawaii – mostra que a geografia não comanda a história e que muitos desenlaces dependem de alguns caprichos de indivíduos e do jogo do acaso.
Quando Marshall escreve que “em 1903, a América assinou um contrato arrendando os seus direitos exclusivos sobre o Canal do Panamá” está a contar apenas uma pequena parte da história. O Canal do Panamá é um bom exemplo da forma como os EUA encararam o continente americano como se fosse o seu quintal. O Panamá fez parte da Colômbia até 1903 e, embora existissem pulsões independentistas no istmo, os EUA comprometeram-se por um tratado assinado em 1846, a manter-se neutros quanto à questão panamiana. Porém, em 1885, usando como pretexto a pacificação de um surto de tumultos independentistas, os EUA tentaram colocar o Panamá sob o seu controlo. Em 1903, os EUA adquiriram os direitos da companhia francesa que iniciara a construção do Canal do Panamá e celebraram com a Colômbia o Tratado de Hay-Herrán, que concessionava o canal por 100 anos aos EUA. Quando o senado colombiano se recusou a ratificar o tratado, os EUA responderam apoiando com dinheiro e armas uma revolta separatista panamiana. O exército colombiano foi incapaz de sufocar a rebelião, o Panamá proclamou a independência e o primeiro país do mundo a reconhecê-la foram os EUA, que se apressaram a assinar com o novo governo panamiano um tratado em tudo idêntico ao que o Senado colombiano rejeitara.
Marshall conclui o capítulo sobre os EUA realçando que “durante 30 anos esteve na moda prever-se o declínio iminente ou em curso dos EUA. Isto é tão errado agora como foi no passado. O país mais bem-sucedido do planeta está prestes a tornar-se auto-suficiente em energia, continua a ser a potência económica preeminente e gasta mais em investigação e desenvolvimento para as suas forças armadas do que os orçamentos militares gerais de todos os outros países da NATO somados. A sua população não está a envelhecer como a da Europa e a do Japão” e o ranking mundial de universidades elaborado pela Universidade de Xangai tem 17 universidades americanas nos 20 primeiros lugares.
Isto foi escrito em 2015 e é um retrato realista da pujança dos EUA no final do segundo mandato de Barack Obama – todavia, um ano depois, Donald Trump fez-se eleger vendendo aos seus crédulos eleitores um cenário tremendista e apocalíptico, com uma América humilhada, desacreditada, enfraquecida e empobrecida, que ele prometia tornar “grande outra vez”. E assim se conclui que ter 17 universidades entre as 20 melhores do mundo e uma das mais elevadas percentagens de população que concluiu o ensino superior (44%, o dobro de Portugal) não garante que um povo possua discernimento suficiente para não ser iludido por atoardas e manipulações grosseiras.
Europa Ocidental
Ter uma “teoria de estimação” que serve para tudo é como quando, nas palavras de Mark Twain, se tem como única ferramenta um martelo: todos os problemas são tratados como pregos. Como a mundividência geopolítica de Marshall assenta na geografia, tenta justificar o menor desenvolvimento da Península Ibérica por comparação com a Europa setentrional por “o comércio com a Europa Ocidental [ser] prejudicado pelos Pirinéus”. Os Pirinéus terão sido um obstáculo às deslocações até ao início do século XX, mas, em 2017, o facto de a bitola do caminho-de-ferro ibérico não ter a mesma largura da bitola em uso no resto da Europa é certamente um obstáculo mais relevante do que os Pirenéus, por muito imponentes que estes continuem a ser. E o facto de Portugal e Espanha nada terem feito durante todas estas décadas para acertar carris com a Europa talvez seja sintoma de atitudes e predisposições psicológicas ainda mais difíceis de transpor do que os Pirinéus.
Já a visão de Marshall sobre a União Europeia merece ser retida, sobretudo neste tempo que tende a desprezar os méritos do projecto europeu: “Esgotados pela [II Guerra Mundial] e com a segurança garantida pelas forças armadas americanas, os europeus iniciaram uma experiência espantosa. Foi-lhes pedido que confiassem uns nos outros. O que hoje é a União Europeia foi concebida de forma a que a França e a Alemanha pudessem abraçar-se tão estreitamente que nenhuma delas tivesse um braço livre para bater na outra. Tem funcionado brilhantemente, criando um enorme espaço geográfico que, actualmente, contém a maior economia do mundo”.
Médio Oriente (e África)
As fronteiras nesta região foram, em boa parte, traçadas a régua e esquadro por burocratas e políticos europeus, no início do século XX, tendo em vista apenas o interesses das suas próprias nações e com absoluto desprezo pela geografia, pelas divisões étnicas e religiosas e pelos interesses de quem lá vivia, e isso explica o tumulto constante e sangrento em que a região tem vivido.
Das linhas traçadas na areia nasceram países artificiais, que apenas se mantêm coesos sob a mão de ferro de um ditador – o Iraque de Saddam Hussein, a Síria dos Assad, a Líbia de Kadhafi. Assim que o ditador cai ou afrouxa a repressão, as lutas entre credos religiosos e tribos reacendem-se. Sim, foram as intervenções desajeitadas do Ocidente que derrubaram Saddam Hussein e Kadhafi, mas se eles tivessem morrido num atentado ou de morte natural, é provável que a situação no Iraque e na Líbia não fosse melhor do que é hoje.
De nada servem negociações, apelos à paz, intermediações e proclamações de princípios generosos – mais valia reconhecer que Iraque, Síria, Líbia ou Líbano são verdadeiros “sacos de gatos”, nascidos de trágicos erros de concepção, e pensar num novo desenho de fronteiras que tenha alguma fundamentação histórica e geográfica e minimize atritos entre os povos que ficam fechados dentro delas.
América Latina
As análises de Marshall sobre o Brasil e a Argentina acabam, involuntariamente por desacreditar a sua própria teoria. Faz umas tentativas débeis de pintar o retrato de um Brasil limitado pela geografia, mas acaba por reconhecer que ao país, que tem quase a dimensão dos EUA, “faltam-lhe as infra-estruturas para ser igualmente rico”. “O centro agrícola do Sul tem, aproximadamente, a mesma dimensão de Espanha, Portugal e Itália juntos […] é muito mais plano que o resto do país [e] é relativamente bem irrigado, mas […] faltam-lhe vias de transporte devidamente desenvolvidas”.
A inacreditável sucessão de escândalos de corrupção que tem abalado a política brasileira nos últimos anos invalida o determinismo geográfico de Marshall e acaba por dar razão a Acemoglu & Robinson: o que determina o progresso das nações é a existência de instituições que asseguram o primado da lei, o pluralismo, a igualdade de oportunidades e a liberdade de escolha.
Algo de semelhante se passa com a Argentina que, diz Marshall, eufemisticamente, “não aproveitou sempre as suas vantagens ao máximo”. “Há cem anos estava entre os dez países mais ricos do mundo, à frente da França e da Itália, mas a falta de diversificação, a sociedade estratificada e injusta, o mau sistema de ensino, uma sucessão de golpes de Estado e a grande variação das políticas económicas durante o período democrático dos anos 30 implicaram um declínio acentuado no estatuto da Argentina”. Um declínio que tem tudo a ver com instituições – ou melhor, com a sua falta – e nada com geografia.
Um ano de adendas
No tempo escoado desde a publicação do livro, em 2015, deram-se mudanças muito relevantes no cenário geopolítico esboçado por Marshall.
Marshall mostra a Turquia em 2015 como estando na encruzilhada da história – já lá não está, pois, sob a liderança cada vez mais autocrática de Recep Tayyip Erdoğan, tomou um caminho que a afasta da Europa e do modelo das democracias liberais, usando uma tentativa de “golpe de Estado” (que Erdoğan admitiu ser uma bênção caída do céu) para prender opositores, cercear liberdades cívicas, fechar jornais, propor o regresso da pena de morte, estrangular a liberdade de expressão e promover alterações legislativas e constitucionais que concentram o poder nas suas mãos (ver Turquia: Sete séculos entre sonhos e pesadelos e Turquia: De terror do mundo a doente da Europa). Para compensar o esfriamento das relações com a Europa, a Turquia aproximou-se – poucos dias antes da tentativa de golpe de Estado (quem quiser que acredite em coincidências) – do seu mais antigo rival, a Rússia, que, como a Turquia, é, sob a capa formal da democracia (há eleições, é certo…) é uma autocracia governada por um homem forte providencial.
Marshall dá conta do aparecimento de “rachas no “edifício da família Europa”, mas foi incapaz de adivinhar que, um ano depois, o Reino Unido estaria, por escolha dos seus cidadãos, a abandonar a União Europeia e que a Polónia e a Hungria estariam a derivar em direcção ao totalitarismo, puxadas por governos nacionalistas de extrema-direita empenhados em pôr fim ao pluralismo e à separação de poderes e que põem em causa os valores fundamentais da União Europeia.
O exame relativamente detalhado que Marshall faz do perigo militar representado pela Coreia do Norte ficou desactualizado pela sucessão de ensaios com mísseis balísticos intercontinentais empreendidos pelos norte-coreanos nos últimos meses. Na lista de alvos potenciais para a agressividade de Kim Jong-un, Seul e Tóquio ganharam a companhia de Los Angeles e São Francisco.
Se juntarmos a estas alterações a eleição para a presidência dos EUA de Donald Trump, um narcisista patológico ignorante da história e geografia do mundo e intimamente vinculado a interesses empresariais divergentes do bem público (e que se fez rodear por uma corte de assessores, conselheiros e porta-vozes de perfil similar), conclui-se que, decorrido um ano, o panorama global esboçado por Tim Marshall se tornou bem mais imprevisível e preocupante.