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"Até no próprio dia 25 de abril a censura trabalhou. Foi de 1926 até esse dia. E atuaram mais ou menos da mesma maneira durante 48 anos", conta Pacheco Pereira, o curador da exposição
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"Até no próprio dia 25 de abril a censura trabalhou. Foi de 1926 até esse dia. E atuaram mais ou menos da mesma maneira durante 48 anos", conta Pacheco Pereira, o curador da exposição

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Até no próprio dia 25 de abril a censura trabalhou. Foi de 1926 até esse dia. E atuaram mais ou menos da mesma maneira durante 48 anos", conta Pacheco Pereira, o curador da exposição

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Proibido por Inconveniente". Uma exposição que mostra "um país imaginado pela censura" em Portugal

"A instituição mais eficaz do Estado Novo foi a censura. Continuou no pós 25 de Abril", diz Pacheco Pereira. Exposição com arquivo da Ephemera inaugura esta quinta-feira em Lisboa.

No tempo do Estado Novo, a censura era tão complexa e profunda que nem os homens do lápis azul, maioritariamente militares reformados que queriam fazer mais uns trocos, tinham tempo e disponibilidade para ver tudo. Peças de teatro, filmes, anúncios de publicidade, jornais locais. Muito para cortar, mandar para trás ou deixar passar, nem que fosse com um aviso para não ser comercializado em bibliotecas operárias, por exemplo. O Grémio, associação dos empresários do Cinema, responsável por várias distribuidoras de filmes em Portugal, não gostava desta falta de tempo porque precisava de fazer dinheiro.

Era o tempo do respeito bonitinho pelo poder e pela autoridade, do país pacífico, bem comportado, conservador e religioso, mas havia quem, por ousadia, ou por necessidade, quisesse amansar a censura. “Havia distribuidoras que tinham de esperar semanas para saber se podiam exibir em Portugal. Os censores respondiam: o que é que vocês querem? Não temos mais gente, só às terças-feiras à noite é que nos reunimos para ver os filmes”. A história, contada entre um misto de risos e surpresa, é partilhada por Carlos Simões Nuno, um dos curadores da exposição “Proibido por Inconveniente”, comissariada por José Pacheco Pereira, que reúne materiais da censura do Arquivo Ephemera, que inaugura esta quinta-feira no edifício do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade.

Praticamente tudo o que está nesta exposição, visto aos olhos de hoje, pode parecer anedótico de tão obssessivo que se tornou da parte de quem queria esconder o país real para dar aos portugueses uma lição de bons costumes. Um disco de José Afonso em que a capa foi vendida com uma cara cortada por se tratar de um militante do MPLA. Obras de autores como António Pinho, que nunca pôde usar o próprio nome. Pequenos panfletos com textos sobre a segunda guerra mundial, mas com capa diferente, inspirados em materiais do Partido Comunista Alemão. Um artigo em manchete escrito e assinado por um tal de Clain D’ Estaing, ou vá,  Mário Soares, exilado, publicado um dia antes da revolução de 25 de Abril. O livro Julieta das Minhocas, de José Vilhena, o “homem que mais irritava os censores” que usava todos os “ingredientes de falta de respeito”, segundo Pacheco Pereira, que contava a história de uma prostituta que vivia num bairro de lata. Por vezes, e só meramente “por princípio”, o cartoonista via as suas obras vedadas ao público, tal era o lastro de irritação que deixava no Secretariado Nacional de Informação, organismo que, a partir de 1944, centralizou todo e qualquer tipo de censura no país.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ou mesmo obras escritas e idealizadas por mulheres, de Natália Correia às famosas Três Marias, autoras das Novas Cartas Portuguesas, pelo “perigo” de se mostrarem como livres perante a sociedade portuguesa. Quem se atrevia a mexer no guião do regime, arriscava-se a ficar na escuridão. Porque, em pleno Estado Novo, queria-se celebrar o regime, estreitar o debate, limitar opiniões e arrefecer ou proibir a liberdade de expressão. “Chegava-se ao ponto de se censurar anúncios a padarias ou retrosarias. Nestes 48 anos de ditadura, não houve um dia em que um escritor, um pensador, encenador ou cineasta não soubesse que tinha a censura a ver o que faziam”, conta Carlos Simões Nuno.

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São, por isso, dezenas de panfletos, boletins, despachos e outros tantos materiais, como livros, jornais nacionais e locais, discos ou guiões, que estarão expostos e que podem ser visitados gratuitamente até ao próximo dia 27 de abril. Mas tal como a estrutura organizativa da censura, também nesta exposição “pedagógica” somos encaminhados a conhecer as várias fases desta instituição, quer no seu início, no idos de uns tenebrosos e controladores anos 30 — com várias instituições a colaborar na censura, como a Mocidade Portuguesa –, quer durante a Segunda Guerra Mundial ou mesmo já na Guerra Colonial. Ou seja, até ao derrube do regime, este trabalho nunca parou. “Até no próprio dia 25 de abril a censura trabalhou. Foi de 1926 até esse dia. E atuaram mais ou menos da mesma maneira durante 48 anos”, conta Pacheco Pereira.

“Tudo o que faltasse ao respeito, era cortado”, conta Pacheco Pereira

Na sala que recebe “Proibido por Inconveniente” (no antigo edifício do Diário de Notícias, em Lisboa), quem olha para cima é recebido por um friso de Almada Negreiros, que conta os vários passos da produção de um jornal, onde só falta mesmo a parte da censura. Por ironia, ou por conveniência, esta exposição quer também destapar essa vontade da ditadura em tornar invisível o seu próprio processo de censura. “Só existe aquilo que o público sabe que existe”, diria António de Oliveira Salazar.

"Há vários exemplos dessa permanência [da censura]: desvalorização da política, dos partidos, da própria democracia, a ideia de que o normal é o consenso e não a diferença, a ideia de que o que é bom para o país é que todos nos entendemos. Esse fundo não desapareceu e hoje é reanimado por um certo populismo e pelas redes sociais", comenta Pacheco Pereira.

De olhos novamente orientados para o horizonte, encontram-se vários expositores. Faltam ainda algumas legendas, ultimar detalhes para que o público não se perca. A ideologia política, onde várias obras socialistas e de extrema esquerda eram cortadas ou censuradas. A literatura, os romances, de Miguel Torga a Alves Redol, mas também de Ferreira de Castro, autor de sucesso nacional e internacional, que tinha a benevolência do Estado Novo por causa da sua popularidade. As trocas, entre despachos, dos homens que trabalhavam com o lápis azul e que muitas vezes nem concordavam com as decisões tomadas sobre determinadas obras. A contestação — e a clandestinidade como forma de combate — à própria censura, tal como o Grémio e os seus empresários. A colaboração entre as várias instituições, do Ministério da Educação, da Pide às iniciativas individuais para que determinados livros não fossem postos a circular. “Temos também a visão do censor em relação à sociedade portuguesa, da proteção das massas face à elite, uma visão paternalista. A censura não tinha uma única forma de olhar para as obras. Aprecia o autor, a sua influência o meio, havia estratégias distintas”, diz Júlia Leitão de Barros, historiadora, e outra das curadoras da exposição.

Mas mesmo nessa obsessão de impedir que os portugueses levantassem ondas ou que pusessem em causa o tal respeitinho, houve falhas. Uma delas foi descoberta por Pacheco Pereira nas “Seleções do Reader’s Digest”, revista norte-americana publicada dez vezes por ano. “A censura queria apagar os seus traços, permanecer invisível. Descobrimos há pouco tempo uma em que não aparece assim, de uma revista da Reader’s Digest, no tempo da segunda guerra mundial. Foi um número que saiu em Portugal e no Brasil, produzidos da mesma forma, tem artigos cortados lá dentro. E claro, são artigos contra os nazis”, comenta Pacheco Pereira. Também esta peça estará disponível na exposição. “É uma exceção”, exalta Júlia Leitão de Barros. Essa invisibilidade começou a ser delineada logo em 1926, com o golpe de Estado que deu início aos 48 anos de ditadura, foi tomada uma primeira medida para proibir que os jornais saíssem com espaços em branco, sem marcas da censura, ao contrário do que acontecia na Primeira República contra a Igreja ou na primeira guerra mundial para prevenir a passagem de informação ao inimigo.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Outra das partes mais importantes da exposição está virada de frente para quem entra, no fundo da sala. “O lado burocrático” de toda esta operação salazarista. Os curadores escolheram o ano de 1934 para mostrar como a censura, a certa altura, começou a fabricar boletins internos de cortes. Uma espécie de diário que percorria o país inteiro, das comissões de norte a sul, para dar conta do que era cortado, porquê, em que setor, em que jornal.

Um ano de arranque para detalhar a repressão e a ditadura, com recomendações, instruções e indicações para todo o país. “É uma possibilidade das pessoas terem uma atitude ativa a ver a exposição. Nestas gavetas vão estar indicações sobre ações subversivas, assuntos relacionados com Salazar, boletins que cobriam o país inteiro. Para se mostrar como, de alguma maneira, se estava a construir um país imaginado, sem prisões, sem miséria, sem nada. Um país limpo, para também mostrar como a censura atuava nos jornais. Foi o primeiro passo propagandístico”, explica Júlia Leitão de Barros.

Quanto à imprensa, outra das vítimas mais visíveis, onde um corte à última hora obrigava a redefinir as páginas dos jornais e a substituir espaços com fotografias ou poemas, é importante não esquecer que a censura atingia também os jornais locais. Mais uma vez, o controlo chegava aos mais pequenos pormenores. Tirar a palavra “chamado” de “chamado Estado Novo” ou tirar o número 600 na notícia “600 mineiros em Aljustrel pedem trabalho”. De vigiar, durante a guerra civil espanhola, qual dos lados era favorecido, se republicano, se nacionalista, num determinado artigo a partir do tamanho da letra. Virando a agulha para os jornais de província, a preocupação censória era mais para críticas a “hospitais que funcionavam mal” ou mesmo a acusações de nepotismo. “Era tudo cortado, temas como a corrupção ou o nepotismo. A notícia de um fulano que tinha obtido um cargo político só porque era sobrinho do presidente da câmara? Cortado”, disse Carlos Simões Nuno. A “sorte” é que maior parte destes jornais, como a Voz de Cantanhede ou o Democracia do Sul, não eram diários. Havia, portanto, ainda uma margem para corrigir.

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Ainda assim, ninguém escapou. A estrutura foi sendo aperfeiçoada para acompanhar a evolução dos tempos. Expandiu-se. Se era preciso promover a neutralidade na Segunda Guerra Mundial, promovia-se. Se era preciso defender a missão ultramarina e evitar que resistência por parte das colónias chegasse a território nacional, defendia-se. Mas quem eram as pessoas por detrás de tudo isto? “Eram burocratas, fáceis de enganar no plano político. Eu próprio os enganei. Mas eram muito bons numa coisa: tudo o que parecesse falta de respeito, tocava uma campainha lá dentro [da cabeça] e aí eram bons. Não precisavam de ser cultos ou cosmopolitas. Bastavam pequenas frases em fados censurados, por exemplo, onde consideravam uma letra porca”.

A censura que ainda permanece, das redes sociais ao vizinho do lado

Deixando o passado ser protagonista da exposição, será importante perceber a influência de quase 50 anos de censura nos dias de hoje. Logo agora que se fala de ditadura do gosto, politicamente correto, redes sociais, estalos de celebridades de Hollywood porque não gostaram de uma piada durante os Óscares. Portanto, faltará perceber o que pensam os curadores e o comissário desta exposição sobre as marcas deste aparelho num país que vive agora há mais tempo em democracia. “Queríamos por em causa a imagem de um país pacífico como esse Portugal, não é o que vão encontrar aqui. Mas o salazarismo ainda está presente fruto desta capacidade que teve de tirar o inconveniente”, diz Júlia Leitão Barros.

Para Pacheco Pereira, não há dúvidas de que a censura continua visível no país, mas agora mais ligada a questões de identidade. Deixou, por isso, uma herança com um rosto diferente. Nem que seja porque esta foi a instituição “mais eficaz” do Estado Novo porque se prolongou para lá da revolução dos cravos. Continua, por isso, presente na cabeça das pessoas. “Há vários exemplos dessa permanência: desvalorização da política, dos partidos, da própria democracia, a ideia de que o normal é o consenso e não a diferença, a ideia de que o que é bom para o país é que todos nos entendemos. Esse fundo não desapareceu e hoje é reanimado por um certo populismo e pelas redes sociais”, comenta Pacheco Pereira. Há por isso uma censura que apanhou “esta cama”, que vai do politicamente correto à linguagem, da direita à esquerda. “Essa ideia de controlar as palavras já vem desde o George Orwell: ‘quem manda nas palavras, manda nas pessoas’ “.

Há uma parede pintada, a tinta branca, com algumas das anotações dos censores. "É um libelo contra a ditadura, cheio de ódio e má fé"; "Imoral. Contos de misérias sociais e em que o aspeto sexual ase revela indecorosamente"; "O livro em epígrafe é todo ele um diatribe contra o governo da nação".

E como vivemos agora numa sociedade portuguesa onde “as pessoas deixaram de ler jornais”, não recebendo informação editada, a sua atenção mediática virou-se para as redes sociais. “As pessoas querem-se ver ao espelho, gostam daquilo que corresponde ao que pensam. Há um narcisismo coletivo e uma ascensão da ignorância atrevida enorme. É mau para a democracia porque ela vive de debate, da diferença”, concluiu Pacheco Pereira.

Fica então uma possível solução: vir conhecer a máquina propagandística que queria silenciar do velho regime através da sua censura. Um ato pedagógico que permita resolver o lastro daquele tempo, incentivando a discussão política, mano a mano, e o conhecimento. Não se assuste quando chegar, porque verá uma parede pintada, a tinta branca, com algumas das anotações dos censores. “É um libelo contra a ditadura, cheio de ódio e má fé”; “Imoral. Contos de misérias sociais e em que o aspeto sexual ase revela indecorosamente”; “O livro em epígrafe é todo ele um diatribe contra o governo da nação”.

Esta exposição está patente neste mês de abril, mas, dentro das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, seguir-se-ão mais, sobretudo sobre o funcionamento da democracia. “Faltam os livros, Carlos!”, avisa Júlia Leitão Barros ao outro curador, que se entusiasmou a falar com o Observador. É hora de saída, já chega a inconveniência de 48 anos de ditadura.

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