Quando Mavanda (nome fictício, por razões de segurança) entrou na grande marcha de protesto na quinta-feira em Maputo, sabia que corria riscos. Mas nunca pensou acabar de cócoras no chão, contra um canto, com mais 14 pessoas, uma Kalashnikov apontada e a raiva no gatilho: “Vocês vão todos morrer! Ninguém sai daqui”. Nesse dia à tarde, percebeu o peso da cor da pele: “Uma bênção e uma maldição”.
Moçambicana, residente na capital, defensora da democracia, partilhou o seu testemunho de sete minutos numa gravação nas redes sociais, “com esforço, levada pelo sentimento do momento”. Porque acredita que está a mostrar ao mundo um pouco do que se passou na manifestação convocada pelo candidato independente às eleições presidenciais que diz que ganhou nas urnas, apesar de a Comissão Nacional de Eleições dar a vitória a Daniel Chapo, o candidato da Frelimo, o partido no poder há 49 anos. “É por uma boa causa, para ir para comissões de direitos humanos e afins”, diz ao Observador a partir de Maputo.
Momentos antes de atender a chamada de Portugal, recebeu outro telefonema, de Nampula. Era o de um jovem que tinha sido baleado no pénis e pedia ajuda. “Ele e mais dois jovens ajudaram um que tinha sido baleado numa marcha de protesto. Levaram-no ao hospital, entregaram-no aos médicos e ficaram a aguardar numa zona de espera. Entrou o comandante da polícia de Nacala Porto, deu uns tiros na nádega de um, disparou para o pénis de outro e ainda atingiu no peito um menor de 17 anos”, explica de rajada ao Observador.
Isto não se passou na quinta-feira, dia 7, foi no dia 31 de outubro, o primeiro dos “Sete dias de libertação de Moçambique do colono preto”, marcada por Venâncio Mondlane, que culminaram ontem na “Manifestação contra o assassinato do povo moçambicano”. De quinta-feira, Mavanda tem outra história para contar, assim como Paulo (outro nome fictício) que estava ao seu lado quando ficaram encurralados num beco de Maputo.
Maputo viveu cenário de guerra mas não sabe o que vai ser o dia seguinte
Eram 13 horas quando Mavanga saiu de casa, para se juntar à marcha. “Consegui chegar próximo de uma das margens ali da zona da OMM [uma das praças mais conhecidas de Maputo, em honra ao Movimento da Mulher Moçambicana]”, conta. “Estava completamente barricada em três sentidos a partir da OMM só a da Kaunda é que não, e eu e os meus amigos tentámos ir para aquela que ia da OMM até ao Alto Mae. Metemo-nos ali por uns becos, porque a Vladimir Lenine estava barricada, e quando estávamos para virar vem um grupo a gritar ‘Fujam, fujam, fujam, estamos a ser perseguidos”.
Ela e uns amigos, como Paulo, que estava na marcha desde as sete da manhã, juntaram-se então a esse grupo e andaram calmamente em direção à avenida Joaquim Chissano. “Às tantas chegámos a uma zona que ou íamos para a direita ou para a esquerda, uns queriam ir para a direita mas uma vizinha impediu-nos”.
Paulo recorda que o grupo fazia muito barulho, mas que ele se apercebeu de uma senhora por trás da janela, a meter a mão de fora e a fazer sinal para irem para outro lado. Perguntou-lhe o que se se passava. “Não vão para aí, que é uma armadilha”, avisou-os. A direção que estavam a tomar tinha sido indicada “simpaticamente por uns polícias que diziam ‘vão por aqui'”, lamenta Mavanda.
“Fomos por outro lado, estávamos a andar calmamente, e de repente começou tudo a correr, começámos a ouvir tiros, caiu um gás lacrimogéneo mais ou menos a cinco metros de mim, o grupo dispersou-se por todos os lados e eu acompanhei uma amiga que estava comigo, escolhi caminhar ao longo de um muro para me proteger, porque estava a sentir os tiros atrás de mim”. Mas curvada, porque o muro não era muito alto e Mavanda é alta.
“Seguimos esse muro e fomos dar a um beco”. Pensavam que estavam seguros, mas outros manifestantes correram para lá também. Foi quando Paulo viu o carro da polícia em grande velocidade, com a esperança de que passasse e não parasse. Mas não. “Ele virou para a nossa rua e estacionou à entrada do beco”, continua Paulo.
“Éramos 15 pessoas deitadas, de cócoras, eu tinha a minha amiga em cima de mim, era mesmo um beco, para aí de dois metros, estávamos no chão”. E surgiu uma “coincidência dos deuses”, frisa Paulo.
“Uma das moças que eu acompanhei desde o princípio, ao sair de casa até chegar à OMM — que até me tinha dado o número de telefone dela porque queria ir a casa, os pés estavam a doer-lhe muito, queria trocar de sapatos e por isso se tinha afastado — por sorte percebeu que o grupo estava a ir em direção à casa dela e foi connosco. Eu não sabia, mas aquele beco onde a gente se meteu era a casa dela. Aquilo era um descampado com três mangueiras e nós todos que seguimos o muro acabámos por ficar a cinco metros da casa dela, da porta da entrada”, descreve Mavanda.
“Bem, estamos 15 pessoas num canto de dois metros uns por cima dos outros quando começámos a ouvir umas vozes, eram polícias a chegar, aparece um fulano vestido à civil com uma AK47, nós parecíamos 15 galinhas contra um canto. O homem aponta para nós com uma raiva danada que eu juro que pensei que íamos os 15 ser assassinados ali”.
Paulo diz que devia ser um elemento dos esquadrões da morte, que “andam à paisana e recebem ordens ilegais de pessoas do Estado para cometer atrocidades, como explicou ao Observador Adriano Nuvunga, do Centro para a Democracia e os Direitos Humanos. “Ele espumava da boca, devia estar drogado, como sempre andam”, refere Paulo.
Não vamos morrer de AK47 vamos morrer do gás
Começou a gritar com a Kalashnikov apontada: “Ninguém sai daqui, vocês vão todos morrer!”. Entretanto, “a miúda disse que aquela era a casa dela” e Paulo tremeu: “Disse para mim, ‘não faças esse bluff que ainda vai ser pior'”.
“Estávamos todos em pânico, quando aparece um da UIR (Unidade de Intervenção Rápida) com uma arma de gás lacrimogéneo a apontar para nós e eu a pensar, ‘pronto, não vamos morrer de AK47 vamos morrer do gás, vai meter aqui gás até nós irmos embora'”, relata Mavanda.
Surgiu depois “um polícia vestido de azul escuro e começam os três a gritar connosco, a ameaçar-nos: ‘Vocês querem morrer? Vocês vão todos morrer’, diziam este género de coisas”. O homem da AK47 “era o pior, parecia mesmo dos esquadrões da morte, mas de vez em quando saía dali, ia perseguir outros, atrás de outras pessoas”.
Paulo recorda-se perfeitamente de o ouvir dizer “eu quero aquele branco” e foi a vez de a namorada desse alvo tremer. Ele tinha-se dispersado do grupo, e não sabiam se o homem o estava a perseguir ou não.
“O da UIR andava a mandar gás lacrimogéneo para o ar, para ir parar às casas dos vizinhos e o polícia entretanto começa a dar bofetadas na cara de um dos moços que estava connosco. Deu-lhe para aí umas cinco bofetadas bem dadas a ponto de o rapaz se atirar ao chão com a cara para baixo, para se proteger, e nós todos a assistir a isto”, conta Mavanda.
“O homem da AK47 voltou outra vez, e apontou outra vez a arma, mas o facto de eu e mais duas pessoas sermos brancas talvez tenha feito com que ele tivesse algum respeitinho algum medo, algum receio de poder estar a ferir estrangeiros ou qualquer coisa, e não lançou nenhuma bala”.
Paulo esclarece que só 0,5% da população é branca e em geral pensam que são estrangeiros. Não é o caso dos dois: são moçambicanos.
No beco, o cenário piorava. A jovem dona da casa “começou a gritar-lhe ‘isto é a minha casa, eu estou a ir para casa, estão aqui as chaves’, e ele virou-se para ela e deu-lhe um tiro”. Só que nada aconteceu e ninguém sabe o que aconteceu. Paulo tem a certeza de o ter visto disparar, Mavanda também. Um dos jovens disse depois que podiam ser “balas falsas” ou então “ele falhou o tiro, porque senão tinha-lhe acertado nas costas”.
O homem da AK47 afastou-se de novo. “Cada vez que ele saía, nós começávamos a dizer só queremos ir para casa, aliás sempre que ele se afasta, nós conseguimos babar [tentar convencer] um bocado os dois que ficam”, diz Mavanda. A dona da casa não parava de gritar: “Eu estou na minha casa, eu estava a ir com os meus amigos!”.
Entretanto o homem mais perigoso não voltou mais, “fez para aí três investidas com a arma dele mas depois desapareceu, foi atrás de alguém e nós tentámos babar o da UIR”. Foi quando ele disse: “Então mostra lá a tua casa, vai lá abrir a porta”. Ela pegou nas chaves e abriu a porta da casa. E ele perguntou: “Então e quem são os teus amigos?”
Mavanda nunca mais vai esquecer a resposta: “São os brancos”. Tinham-se conhecido nesse dia na marcha e tinham feito muitos quilómetros juntos, pelo menos 12.”Claro que eu e os meus amigos brancos, até hoje, e acho que para o resto da vida, vamos carregar esta culpa, esta injustiça”.
A benção e a maldição
Foram chamados para ir lá para casa. “Quando nos levantámos tentei dar uma força aos outros que ficaram ali apavorados a olhar para nós e a pensarem ‘porque é que não somos brancos também?’. Quando passámos pela polícia rogámos que os deixassem partir. Disseram-lhes: “Eles só querem ir para casa, por favor, somos irmãos, deixem-nos ir para casa, eles têm família, eles querem ir para casa”.
E os dois agentes das forças de segurança ouviram-nos. “Entretanto entrei na casa com os meus amigos todos a tentarmo-nos esconder, e comecei a ver que eles estavam a ser libertados. Os 15 que íamos sendo mortos ou gaseados ou batidos ou presos, detidos, não sei o que nos ia acontecer, passou-me tudo pela cabeça, acabámos todos por sair”, conclui.
“Fui salva por ser branca”, diz ao Observador. Mas isso, concordam Mavanda e Paulo, “é uma bênção e uma maldição”. Bênção quando os tira de “momentos aflitivos” como os que passaram, maldição “quando somos um alvo preferencial de perseguição, quando é o ser branco que os faz virem atrás de nós”.
Paulo conta que quando se juntou à marcha , alguns manifestantes estranharam por ser branco. Mas em cinco minutos perceberam que era um deles. “Éramos todos iguais”. Diz que “viu muita coisa”. A polícia a partir a montra de uma loja e a lançar gás lacrimogéneo para dentro, acabando por a incendiar e colocar em risco todo o quarteirão. “O pior não aconteceu porque o guarda e outros que se juntaram apagaram o fogo”.
Viu os jovens “a apanharem da polícia durante várias horas”. Os agentes de segurança “não fazem qualquer aviso, estão a caminhar ao nosso lado e de repente viram-se e disparam para o corpo dos manifestantes, não sabem como fazer, as instruções que veem nas cápsulas dizem mesmo que não podem ser dirigidas contra as pessoas, mas eles ou não sabem ou não querem saber”.
E há um ponto que quer destacar. “Todos os atos de suposta violência dos manifestantes é uma reação espontânea de pessoas que estavam a apanhar há três horas com balas de borracha e gás lacrimogéneo. Saltou-lhes a tampa quando, depois de tanto tempo a apanhar, viram a polícia lançar gás lacrimogéneo para os prédios onde as pessoas os apoiavam com o ‘panelanço’ [bater de panelas], sempre sem parar, horas a fio. Aí disseram ‘basta’. E então atiraram pedras, garrafas, paus, etc, incendiaram pneus e contentores do lixo”. Mas não, não “são vândalos nem arruaceiros, pode ter havido alguns claro, mas até “, assegura.