“Este vai ser o meu último ‘special’ durante uns tempos” anuncia Dave Chappelle no inicio de “The Closer”, o seu sexto espetáculo de stand up comedy a solo lançado na Netflix e que fecha, por agora, a colaboração que começou com o gigante do streaming em 2017.
Na indústria do entretenimento não há carreiras similares ou comparáveis, mas a de Dave Chappelle é particularmente única. Começou a fazer comédia em clubes ainda adolescente e cedo chamou a atenção tanto dos manda-chuvas da televisão como de autores renomados. Com apenas dezanove anos conseguiu um papel no clássico de culto de Mel Brooks “Robin Hood: Men in Tights”, bem como participações recorrentes nos talk shows de David Letterman, Conan O’Brien e Howard Stern. Apareceu ainda em “Con Air Fortaleza Voadora” e foi-lhe oferecido um papel em “Forrest Gump”, que recusou.
Mas foi em 2003, quando o seu programa de sketchs “Chappelle’s Show”, que criou em parceria com o humorista Neal Brennan, foi lançado na Comedy Central que a sua carreira explodiu. A série foi um êxito imediato (pode agora – após muita controvérsia – ser vista na Netflix, que adquiriu os direitos) e Chappelle tornou-se uma estrela no meio. No entanto, depois de assinar um contrato estimado em 50 milhões de dólares para fazer a terceira temporada do programa, Chappelle abandonou as gravações ainda na fase inicial e desapareceu do mapa. Na altura, os rumores de problemas com drogas e doença mental alastraram sem contraponto, só sendo rebatidos pelo próprio muito tempo depois, quando explicou que a sua decisão estava relacionada ao extremo mal-estar causado pelo sucesso do programa e pelas complicadas questões raciais que persistiam em toda a indústria do entretenimento.
[o trailer de “The Closer”:]
Durante os anos seguintes, as suas aparições públicas e em palco foram infrequentes e raramente publicitadas, até 2017 quando a Netflix anunciou os dois primeiros “specials” do comediante em mais de uma década – “The Age of Spin” e “Deep in the Heart of Texas”, filmados nos dois anos anteriores e lançados conjuntamente. Nesse mesmo ano, no último dia aliás, mais dois foram acrescentados à plataforma – “Equanimity” e “The Bird Revelation”.
Em poucos meses, quatro horas de stand up de uma das vozes mais únicas da comédia americana eram partilhadas com o mundo. Com um preço avaliado em cerca de vinte milhões de dólares por cada “special” (uma gigante fatia para o autor, dados os relativamente baixos custos de produção deste tipo de conteúdo), Chappelle era a cara da aposta clara da Netflix na stand up comedy, tornando-se também o special mais visto na plataforma. Arrojado, único nos seus pontos de vista e absolutamente dominante do seu público, Dave estava de volta. Um autêntico mestre na sua arte, Chappelle conta histórias – como as quatro vezes que conheceu Mike Tyson –, confronta a América com as suas complicadíssimas questões raciais e ainda dedica uma hora em que se propunha a subverter a estrutura tradicional da escrita da comédia ao contar logo de início a punchline (a parte final e normalmente inesperada de uma piada) e só depois o setup e ainda assim surpreender o espectador, só porque sabe e pode – e para provar como é, nas suas próprias palavras, “um comediante demasiado bom”).
O que se seguiu foram dois anos muito ocupados a receber prémios e nomeações. “Equanimity” venceu tanto o Emmy como o Grammy (respetivamente para “Outstanding Variety Special” e “Best Comedy Album”) e “The Age of Spin” ficou-se pelo Grammy (tecnicamente levou os de 2018 e 2019).
Em 2019, Dave recebeu ainda o prestigiado Mark Twain Award for American Humor, atribuído pelo Kennedy Institute numa cerimónia que contou com tributos de muitos dos seus pares e lendas da comédia (e que está também disponível na Netflix).
Embora nenhum destes especiais seja exatamente para toda a família e as opiniões e piadas de Chappelle sejam sempre desafiantes e desafiadoras, foi sobretudo com “Sticks & Stones”, lançado em agosto de 2019, que começaram as polémicas mais acentuadas, com acusações de transfobia por parte de ativistas LGBTQ+ (o que ainda assim não impediu o “special” de receber a dobradinha de Emmy e Grammy).
E assim chegamos a este “The Closer”, que até na estrutura é mais uma vez original, com Chappelle a propor-se revisitar e repensar as suas ideias anteriores e analisar algumas das reações que causou nas pessoas nos seus cinco solos para a Netflix. Acaba por ser uma experiência um pouco “meta”, que requer que o espectador conheça o histórico do comediante para acompanhar plenamente.
Parafraseando uma citação atribuída a autores tão diversos quanto E.B. White, Mark Twain e George Bernard Shaw, “analisar o humor é como dissecar um sapo – há pouca gente interessada e o sapo acaba mesmo por morrer”. Em 2021, com tantos infindáveis e pouco úteis debates sobre os limites da comédia, se calhar não haverá assim tão pouca gente interessada, mas a verdade é que o sapo acaba por morrer sempre. Piadas são tiradas de contexto, intenções são mal interpretadas e as posições extremam-se inevitavelmente.
Não será exagero dizer que Dave Chappelle é, mais que um fantástico comediante, um grande pensador. Uma mente com um olhar único sobre o mundo e que alia um domínio das palavras e absoluta mestria em palco com a falta de medo de dizer o que pensa e de deixar o seu público desconfortável.
Dito isto, é fácil considerar a primeira metade deste “The Closer” abaixo do padrão a que Chappelle nos habituou. Algumas piadas, como a do padre que o molestou em criança, roçam o preguiçoso na construção e outras, como a sugestão de que o movimento feminista deveria ser liderado por um homem e que em troca do próprio Dave se chegar à frente para lutar por elas só pede que lhe façam sexo oral é, mesmo ignorando o cariz controverso da premissa, no mínimo estranhamente previsível para um comediante deste gabarito.
Na segunda metade Chappelle acelera a fundo no seu choque com a comunidade LGBTQ+, misturando piadas que podem (e foram) consideradas ofensivas com pensamentos genuinamente profundos e interessantes sobre as questões da interseccionalidade entre os movimentos das causas dos direitos raciais e das identidades de género. Aliás ao longo do espetáculo, o humorista repetidas vezes troca as letras do acrónimo, referindo-se aos LBGTQ (em vez de LGBTQ), num lapsus linguae que para um orador e artesão de palavras como Chappelle dificilmente poderá não ser considerado mais uma farpa no seu oponente.
O resultado foi a maior controvérsia da história relativamente curta da Netflix, sobretudo a nível interno, com um grupo de funcionários da empresa a protestarem contra o que consideraram ser conteúdo transfóbico e que culminou com o despedimento de um dos organizadores (por ter alegadamente publicado informação empresarial confidencial nas redes sociais incluindo os valores pagos pela Netflix a Chappelle pelo último special – 24 milhões de dólares). A 20 de outubro, alguns funcionários da empresa ao redor do mundo organizaram um walkout, abandonando os seus postos de trabalho durante o horário laboral como forma de protesto pela maneira como o processo foi conduzido. Na sua lista de exigências não constava um pedido de retirada do especial da plataforma, mas antes uma maior preocupação em desenvolver conteúdos de teor LGBTQ+ e um reforço das contratações da empresa de pessoas destes grupos nos papéis de criação e decisão. O protesto foi apoiado por diversas caras associadas a projetos de bandeira do gigante do streaming como Jonathan Van Ness (de “Queer Eye”), Jameela Jamil (de “The Good Place”) e da comediante Hannah Gadsby, cujo especial da Netflix “Nanette” foi um dos mais falados e discutidos pela sua abordagem a muitos dos temas que Chappelle ataca em The Closer.
O “special” termina com uma emotiva história sobre a Daphne, uma amiga trans que Chappelle convidou para abrir um espetáculo em San Francisco e que depois de uma atuação terrível se revelou uma excelente comediante nas suas interações com Dave já durante o seu set e nas conversas de backstage. Esta data coincidiu com o lançamento do anterior “Sticks & Stones” e quando as controvérsias desse “special” explodiram no Twitter com a comunidade trans, Daphne foi para as redes defender o seu colega e amigo Chappelle, de certa forma combatendo a sua própria tribo. Meros dias volvidos, Daphne pôs fim à sua vida. É o momento mais forte e emocional do espetáculo (mesmo que com um certo toque de “até tenho amigos que são”) e na verdade de toda a saga do comediante na sua obra na Netflix, fechando o livro de forma introspetiva – tanto o próprio como o seu público.
O grau de apreciação e tolerância de uma pessoa a esta hora e pouco de espetáculo estará sempre dependente da sua posição no espectro que vai de “Uma piada é só uma piada” a “As palavras têm consequências reais nas pessoas e no mundo”, além de termos que decidir em qual dos Dave Chappelle é que acreditamos – o que se apresenta como “O Comediante Transfóbico Dave Chappele” e se diz da equipa TERF ou o que afirma que ser incapaz de ficar indiferente ao sofrimento de outro ser humano e apela a que tenhamos todos mais empatia uns pelos outros?
É provável que muitos espectadores tenham uma imagem de Chapelle e que a mesma permaneça intacta — talvez piore depois deste capítulo na vida do humorista. Mas outros poderão estar perante um diagrama de Venn difícil de posicionar e aqui a postura de quem vê pode ir fluindo ao longo do espetáculo, sendo certo para todos que o desconforto de que aqui se fala é um dos objetivos primordiais do comediante, sempre foi.
“The Closer” não é o melhor “special” de Chappelle na Netflix, talvez até seja o pior dos seis que lançou (a fasquia era assumidamente alta), com piadas que não funcionam (e outras tantas excelentes) e um tom no geral confuso e extremado. Mas se há coisa que podemos sempre contar quando se trata de Dave Chappelle é a arte de ser um interessantíssimo provocador. Esperemos que seja uma questão de “quando” (e não “se”) voltaremos a ouvir do comediante que, nas palavras do próprio, muitos consideram o GOAT (“Greatest of All Time”, “Melhor de Sempre”), até porque os muitos milhões de dólares da Netflix e o seu refúgio nas profundezas do Ohio lhe dão o privilégio de só aparecer outra vez quando sentir que tem mais a dizer. Até já, Dave.
Pedro Silva é comediante