Reportagem do Observador em Monchique
Cruz dos Madeiros, uma aldeia a cerca de 300/500 metros do início da vila de Monchique, e também do Posto de Comando do incêndio que lavra desde sexta-feira, 3. As chamas avançam, embora pareçam ainda muito longe. Mas muitos já perceberam que o fogo vai chegar ali. E não há um carro de bombeiros à vista. Não há GNR. Não há ninguém. Só pessoas às janelas a observar sem saber o que fazer perante o avançar descontrolado das labaredas. O silêncio é de tal ordem que incomoda. Ouve-se apenas o crepitar do lume. “Ela vai-se safar”. “Vamo-nos embora, pai”, escuta-se algures. Depois mais alguém a pedir que para ali fossem bombeiros. São 19h57 de domingo. Ainda há quase uma hora até o Sol se pôr, mas há muito que ele não se vê. O fumo e as cinzas tapam tudo. Fazem os olhos lacrimejar.
“Pedro, f…, anda-te embora. Esta merda vai arder toda”
Maria de Jesus, de 68 anos, era uma das moradoras que observava o fogo, naquela altura ainda longe. Ajudou durante todo o dia os bombeiros, no quartel. Fez-lhes as sandes que iam comendo. Sandes de chourição e queijo e também panados de frango com arroz. “Aos bombeiros, felizmente, não lhes falta comida nem água”. Mas agora tinha uma preocupação acrescida. Uma moínha que não a largava. Um aperto no coração: “O meu marido e o meu filho estão na casa do meu filho a tentar salvar a casa e os bombeiros não vão lá”.
Enquanto descia a estrada de alcatrão em direção ao vale onde estavam as chamas, ninguém a conseguia parar. “A casa do meu filho está em perigo… ele está lá com o meu marido, quero ir ajudar”, dizia insistentemente Maria de Jesus, nascida e criada nesta pequena aldeia à entrada da Vila de Monchique. Madeiros, Cruz dos Madeiros.
Ao descer a rua, a pé, com as chamas ao fundo, vê finalmente surgir o marido, a conduzir uma carrinha grande, branca, daquelas do transporte do pão. Ao seu lado, no lugar do pendura um amigo da família, rapaz novo, pouco mais de 20 anos. Tinham vindo da casa do filho. Atrás deles vinham, em coluna, quatro carros dos bombeiros, seguindo a mesma marcha, como se se fossem embora. “Não os deixem passar, têm de salvar a casa do meu filho”, gritava, ao mesmo tempo que acenava e gesticulava: “É por ali, está lá um homem”. A mulher seguiu com o amigo da família para a aldeia novamente, a pé, enquanto o marido voltou para casa onde estava o filho, sozinho.
José Pedro, de 73 anos, marido de Maria de Jesus, foi fuzileiro especial durante 17 anos e por isso diz não ter medo de nada. Prova disso foi ter andado dezenas de metros numa estrada com fogo dos dois lados para voltar para junto do filho, que tentava proteger a casa. “Ele está lá sozinho. O meu filho não quer sair de lá”.
Uma esperança alimentava José, enquanto conduzia sem medo, numa estrada de terra batida, em direção à casa do filho. “A sorte é o vento, se o vento estivesse de levante esta gente morria toda”. Não estava. Era já 20h37 de domingo e não se sentia nem brisa. Mas viria a ser por pouco tempo.
https://www.facebook.com/ObservadorOnTime/videos/1140242632807076/
José chega à casa do filho e o barulho é ensurdecedor. O som das chamas, das sirenes mas também dos animais que estavam presos — 8 cabras.
— “O seu filho?”, perguntam-lhe.
— “Está ali, espero eu”, responde José enquanto tenta abrir o portão do quintal da casa. É já a única maneira de entrar.
Pedro Miguel, de 46 anos, lá estava. Agachado, de t-shirt vermelha e calças de ganga, a única coisa que o protegia era a enxada que o apoiava, e um pano, fino e sujo, branco a tapar a boca e o nariz, enquanto observava o avançar das chamas. “Uma vida a construir esta casa, a criar os meus animais… Não vou deixar isto arder tudo”, justificava-se.
Mas o vento já soprava e fazia com que as chamas avançassem bastante rápido em direção à casa de Pedro. Antes já passara por outras casas, sem que os bombeiros conseguissem controlar as labaredas de dezenas de metros de altura. Pai e filho viram, impávidos, incrédulos, a casa do vizinho a ser consumida pelas chamas. Ao lado deles, os bombeiros, que nada podiam fazer debaixo daquela chuva de fagulhas e do vento forte da noite.
Pareceram segundos. Foram minutos. Sete. Sete minutos desde que o Observador fotografou a casa do vizinho a começar a ser consumida pelas chamas até ser obrigado, devido ao intenso fumo e ao calor, a sair daquele local. A caminho da carrinha, José parou junto das cabras, encheu um balde preto com água que estava num alguidar grande e azul, e molhou-as. “Seja o que Deus quiser”. Voltou a encher o balde e correu para o fogo que em poucos segundos chegara a um dos terrenos mais próximo dos animais. Um homem, um balde e labaredas de dezenas de metros. Pouco ou nada poderia fazer.
Percebe então que não vale a pena. Grita para o filho, que não tinha ido atrás do pai. “Pedro, foda-se, anda-te embora. Esta merda vai arder toda”. Mas ele fica. Diz que dali não sai. Teima. Insiste. Diz outra vez que aquelas são as suas coisas. SUAS. E não sai mesmo.
Já sem resposta do outro lado do fogo, José desiste e procura a carrinha para fugir. Com o fumo preto e as fagulhas, encontrar uma carrinha branca torna-se numa tarefa quase impossível. Encontra-a já rodeada de chamas dos dois lados, entra, faz a manobra de inversão de marcha e acelera. Pouco mais de dois minutos e encontra um carro de bombeiros.
– “Ficou alguém para trás?”.
– “Sim, caralho. O meu filho, ele não quis vir, está lá sozinho”.
– “Diga-me onde é que ele está?”.
– “Não consegue ir buscá-lo, agora não vale a pena. Ele há-de desenrascar-se”.
– “Ele consegue desenrascar-se?”.
– “Ele vai desenrascar-se”.
José, com a confiança no máximo, fecha o vidro e continua a acelerar em direção à sua aldeia. Cruz dos Madeiros. “Não sei o que vai ser do meu filho, sabe…”, acaba por confessar. Chegado à aldeia, mais um susto. A calmaria que existia uma hora antes, quando de lá saíra, tinha deixado de existir. O relógio marca apenas as 21h22 e já tanto tinha acontecido.
Não dava para contar os carros de bombeiros, da GNR e da Proteção Civil. Todas as pessoas da aldeia estavam a ser retiradas. Havia um rodopio de gente por todo o lado. “Tem de ser o mais rápido possível, o fogo está a vir, muito rápido”, gritava um bombeiro, na esperança que alguém, entre sirenes, o ouvisse.
A GNR retirou toda a gente da aldeia em menos de 10 ou 15 minutos. 200 habitantes, segundo um morador. Agora José tem mais uma outra preocupação: “Onde é que está a minha mulher?”
Já passa das 23h00 quando encontrámos José, junto ao posto de comando, sentado no lancil do passeio, ao lado da mulher e da filha. “A minha mulher tinha ido para casa da minha filha, ali no centro da vila.”
“E o seu filho?”, perguntamos. “Acho que está bem, a minha filha já falou com ele. Mas não sei ao certo”.
Pedro tinha dito que não saía de casa e não saiu. A casa salvou-se. Tudo o resto ardeu. Animais, comida para os animais, os terrenos com cultivo. Tudo.
Mas penas com baldes de água ele conseguiu manter intacta a casa.
“Com 95 anos nunca esperei ver uma coisa destas”
À parte de toda a confusão instalada às portas da aldeia, Dolores e Lurdes, mãe e filha, apresentavam-se bastante calmas, parecia não haver ninguém tão sereno como aquelas duas mulheres. Encostadas a um carro branco esperavam ali pela sua “boleia para ir para um sítio seguro, talvez a escola da vila”, disse ao Observador Lurdes, de 55 anos, filha de Dolores, de 95.
Dolores tinha uma manta sobre os ombros e um lenço na cabeça e observava todas as movimentações com uma calma inexplicável e quase assustadora de assistir. Movia a cabeça ora para a esquerda, ora para a direita, consoante a correria das autoridades das pessoas. Sempre de mão dada com a filha.
Recusaram três boleias. “Querem vir Lurdes?” Perguntou primeiro uma das vizinhas de dentro de um carro. “Não, estamos à espera de um casal amigo, não te preocupes”. A mulher que desde sempre trabalhou no campo, continuava tranquila, mas admitia a gravidade do que se passava. “Com 95 anos nunca esperei ver uma coisa destas. Já houve fogos muito grandes, há muitos anos, mas nunca assim e nunca tão perto da nossa casa”.
Palavras que disse num tom baixo, como que para que a filha não se apercebesse, até porque primeiro não queria deixar a casa. “Fui obrigada pela minha filha e pelo senhor agente. Não queria. O fogo não deve chegar ali perto de casa e eu ficava melhor em casa. Agora vou dormir onde?”. A boleia finalmente chega e dois militares da GNR ajudam Dolores a entrar no carro. Fecham a porta e um dos militares, batendo com a palma da mão no tejadilho do carro, grita: “Rápido, saiam daqui”.
O corrupio de GNR a correr a tentar que toda a gente saísse continuava, cada vez mais sirenes, cada vez mais militares. Corriam tanto e em tantas direções, que quem visse de fora pareceria que não sabiam o que estavam a fazer. “Parecem baratas tontas”, disse um morador, mas o que é certo é que em poucos minutos a aldeia ficou sem ninguém. Mesmo quem não queria sair, saiu. Um homem teve de ser levado a braços, por cinco militares. “Aqui não vai ficar ninguém, c…!”. E não ficou.
“Daqui para aqui está tudo, Santos. Vocês, os senhores?! Fora daqui, JÁ!!!”. Gritava insistentemente, com os olhos vermelhos do fumo, o guarda da GNR José Fonte.
“Sei que neste momento já não tenho casa, amanhã quando vir é só para ter a certeza”
A Escola E.B. 2,3 de Monchique estava cheia ao fim da noite. Foi para lá que quase todas as pessoas das aldeias à volta da vila de Monchique foram levadas. E foi lá que passaram a noite até conseguirem regressar às suas casas. Segundo a Proteção Civil, às 2h da madrugada, havia 84, desde idosos a crianças, com responsáveis também dedicados só aos animais de estimação.
Sentado num banco, no espaço de recreio da escola, estava José Matias, de 61 anos. “Nasci em 56, faço anos daqui a um mês, se lá chegar”. De cabeça baixa, de boina e a rodar a ponta da trela do seu cão, consecutivamente, de forma nervosa. Atrás dele, umas pinturas em tons de laranja e azul. “Nascido, criado e vivido” na aldeia de Montinhos da Serra, dedicou-se a vida toda à madeira e à cortiça: “Desde que me lembro”. Sempre de boina na cabeça. “Nunca ando sem boina, era um hábito do meu pai que me passou. Tenho uma mão cheia delas”.
Estava naquele mesmo local há cerca de três horas, desde que a GNR evacuou a aldeia onde vive. Ele e o seu cão — o Leão — oferecido por um agente da GNR “há coisa de três anos”.
“Porquê ‘Leão’?”. Não, nada de gostos clubísticos. “Então, é assim amarelado e malandro!”, respondeu. Os GNR cortaram a trela ao cão para ele se soltar e fugir enquanto me obrigaram a ir para a carrinha deles, eu já estava lá dentro quando vi o Leão e depois deram-mo e vim com ele para aqui”, explica José Matias.
Lentamente aproximou-se outro homem, também de boina. É José Custódio, tem também de 61 anos. É o melhor amigo ou “o meu grande amigo, vá”, de José. Conhecem-se desde que se lembram e vivem ao lado um do outro em Montinhos da Serra. Cresceram juntos, trabalham juntos e juntos também se dedicaram à madeira e à cortiça. Matias confirma tudo. “É um bom amigo. Digo tudo na frente dele, nunca nas costas, sempre foi assim”.
Já com os dois sentados no mesmo banco, Custódio é mais optimista que Matias: “Pode ser que nada arda, pode ser que o fogo tenha passado só lá ao lado, Zé”. Mas José Matias, sempre de cabeça em baixo e a roda com a ponta da trela de Leão, atira para o ar: “Sei que neste momento já não tenho casa, amanhã quando vir é só para ter a certeza. O que é que quer que faça?! Chego lá e não tenho casa”.
José Matias tinha mais animais, não só o Leão: “Quatro cabras… Isso sabe-se, morreram todas, dois coelhos, um galo e uma galinha… ardeu tudo de certeza”.
Também na mesma escola há espaço para famílias inteiras. Uma de quatro pessoas, os pais e duas crianças, estavam à espera que lhes fosse entregue “um quarto” – as salas de aulas deram lugar a isso mesmo, quartos provisórios.
Sérgio António, de 39 anos, e Gerzura António, de 31, são os pais de Lucas e Tomás, de 5 e 3 anos, respetivamente. O mais novo, Tomás, ao colo da mãe chorava. Tinham acabado de chegar à escola e estavam à espera do seu ‘quarto’. “A nossa casa era a primeira, ardeu de certeza”, explica Sérgio. “Quem nos trouxe para aqui foi a GNR, não queríamos vir, mas com os nossos filhos não podíamos ficar em casa a tentar salvá-la”, justifica o pai.
Gerzura está em Portugal há 7 anos, veio do Brasil de propósito para se casar com Sérgio depois de ser conhecerem quando Gerzura visitou Portugal com amigos. “Nunca pensei ver uma coisa destas na minha vida, não temos esperança nenhuma que a nossa casa esteja de pé…”. A prioridade à atribuição de quartos era dada aos idosos e famílias com crianças e por isso nem 10 minutos passados e a família foi encaminhada para uma das salas de aulas. Será lá a sua casa, ou quarto. Pelo menos por uma noite.
“Trouxe uma mangueira? Puxa, puxa”
Passam 35 minutos da meia noite. Uma das duas frentes do fogo, a do lado norte da vila, devido ao vento, começa a ameaçar as habitações já praticamente no centro da Vila de Monchique. Os habitantes, sem bombeiros por perto naquele momento, vêem-se obrigados a usar os seus próprios meios para controlar o avanço das chamas.
https://www.facebook.com/ObservadorOnTime/videos/1140421749455831/
“Isto está mau, muito mau. Há 50 anos que aqui vivo e nunca vi uma coisa destas à volta da minha casa. Parece o inferno na terra”, gritava Adelino Lourenço, de 78 anos, enquanto pedia mangueiras a vizinhos. “Eu não tenho mangueira, o vizinho de baixo tem mas não está cá, tenho de salvar a minha casa e a dele”.
Adelino acredita que as chamas não cheguem até sua casa mas tem medo das fagulhas e quer molhar a casa por isso mesmo. “As chamas não devem cá chegar”. Vinham vozes de todo o lado. Ninguém sabe onde vão buscar a crença e a coragem: “Vamos buscar, alguém há-de ter”. Foi Andreia Barradas quem trouxe a tão desejada e necessária mangueira ao Sr. Adelino. “Trouxe uma?! Puxem, puxem!”. Andreia tem 22 anos, é estudante, nasceu em Portimão, apesar de toda a sua família ser de Monchique. Explica que veio para a vila para ajudar no que conseguisse. E ajudou.
Depois de um início de noite de inferno às portas da Vila de Monchique, com o cair da madrugada a população começou a recolher às suas casas, deixando a vila praticamente deserta. O nascer do dia, esse, foi o “recomeçar uma vida nova, do zero” depois de um fogo que Monchique nunca tinha visto antes. E que ainda não acabou.