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Não foi há muitos anos que o toque das Avé-Marias mudou. O novo pároco chegou à Igreja de Santo Estêvão e, talvez para mostrar que as coisas iam mudar, trocou o característico “A 13 de Maio” por “A Virgem do Rosário”, melodia que agora se ouve nos sinos da igreja e ressoa até nos mais recônditos becos de Alfama, em Lisboa. Provavelmente, a longa sinfonia soa estranha a um visitante ocasional do bairro, mas para Alcinda não tem segredos, nem podia ter. Dos 67 anos que já tem, 67 foram passados aqui. “Eu nasci na freguesia de Santo Estêvão e fui batizada na paróquia de Santo Estêvão. Sou mesmo alfamista, com muito gosto e muito prazer”.
O mesmo não pode Alcinda dizer dos vizinhos que há uns anos tem no prédio onde sempre viveu, na esquina entre os becos da Lapa e dos Ramos. Raramente param por ali mais do que uma semana, raramente falam português e frequentemente dão dores de cabeça a quem ali mora há já tanto tempo. Alfama é um dos bairros lisboetas onde nos últimos tempos disparou o número de camas para turistas, tanto em hostels como em apartamentos particulares, publicitados através de sites como o AirBnB, o Booking e o HomeAway, entre outros. Esta realidade, que já existia clandestinamente, foi regulada no ano passado através de um decreto-lei que veio tornar mais fácil o acesso às atividades de alojamento local e que, conjuntamente com a nova lei das rendas, mudou a face das cidades.
Em Alfama, uma das equações mais frequentes é relativamente simples: depois de décadas na mesma casa, o inquilino morre, o senhorio faz obras e, pouco depois, começa a arrendar a casa a turistas, que vêm em busca do mais typical que há na capital e não aparece nos guias. Prédios que muitas vezes estavam a cair aos bocados ganham uma nova cara, gente jovem invade o bairro e as lojas de artesanato e souvenirs multiplicam-se. “Nós é que levamos com a merda toda em cima.” A frase de Alcinda talvez não seja a mais eloquente, mas resume o sentimento de muitos moradores dos bairros históricos de Lisboa, que se sentem quase como peças de mobília para inglês ver. No edifício desta alfamista, “é de manhã à noite”, queixa-se: os moradores temporários passam o tempo “a bater com os pés na janela e no chão”, que ainda é de madeira e deixa passar até o mais leve som.
Apesar das muitas caras novas e pouco bronzeadas que se veem por aqui, nestes becos onde não passa um carro ainda vai havendo uma vivência bairrista. Por isso, enquanto fala sentada a uma mesa de fórmica onde uma embalagem de maionese ficou esquecida do almoço, Alcinda vê chegar vizinhos que se juntam à discussão. Um deles, emigrante em França, tem outra visão. “Eu se fosse turista punha era a merda de Alfama toda daqui para fora”, ri-se, argumentando que o aumento de alojamento local veio dar uma nova vida ao bairro e contribuiu para a reabilitação urbana. “Preferia aí ver os prédios todos a cair?”, questiona.
Câmaras municipais não fiscalizam
A noção de “alojamento local” já tem estatuto legal desde 2008, mas só desde o ano passado tem um regime jurídico próprio. Até aí, as regras que se lhe aplicavam eram as dos empreendimentos turísticos, que são bastante exigentes e não incentivavam os proprietários a arrendar dentro da lei. Com o diploma em vigor desde novembro de 2014, quem queira arrendar a casa a turistas e/ou veraneantes só tem de se registar junto da câmara municipal onde se situa o alojamento e voilà, pode começar imediatamente a faturar. Segundo os dados do Registo Nacional do Alojamento Local, já foram legalizados desde então 18.019 alojamentos, entre apartamentos, moradias, quartos, pensões e hostels. Dá uma média de 76 por dia.
O registo de um alojamento local pode ser feito através do Balcão do Empreendedor, uma plataforma virtual especificamente criada para o licenciamento de atividades económicas. O registo é hoje tão fácil que há casos insólitos: na ilha açoriana da Graciosa, por exemplo, há um alojamento local propriedade de um tal “fdhgdfhgdfhg”, que arrenda o apartamento “jghjfghjfg” na localidade “asdfsadf”.
Segundo a lei, a câmara municipal é obrigada a fazer uma vistoria a cada novo alojamento no prazo de 30 dias a contar da abertura do espaço. De acordo com o artigo 8º decreto-lei n.º 128/2014, o objetivo é perceber se o que o senhorio disse no registo se confirma no terreno. Ou seja, se o número de quartos e camas está correto, se o edifício tem condições para alojar turistas e, entre outras coisas, se o nome de quem arrenda está conforme. O Observador questionou a autarquia de Santa Cruz da Graciosa sobre este apartamento, mas até ao momento não obteve resposta.
Em Lisboa existem 2.585 alojamentos locais registados, dos quais 1.451 surgiram já este ano, entre 1 de janeiro e 15 de julho. Ora, segundo o Observador percebeu através de contactos a diversos empresários de alojamento, a Câmara Municipal de Lisboa não tem realizado as vistorias previstas na lei, pelo menos não no período ali definido.
Sofia Pereira é sócia de uma empresa que investiu na abertura de dois apartamentos na zona do Castelo. As Casas d’Almedina estão abertas ao público desde 11 de novembro e a lotação tem estado quase sempre lotada. “Nesta localização não há muito para falhar”, diz, sublinhando que a rua onde o alojamento se localiza não tem trânsito, o que aumenta o interesse dos estrangeiros, sobretudo de famílias. Até hoje, não apareceu ninguém a fiscalizar fosse o que fosse. “Acho que já deveriam ter vindo fazer a vistoria”, sublinha Sofia. “Ponho as mãos no fogo em como está tudo bem, mas deviam vir. Não numa de passar coimas, mas numa de regularizar, numa atitude mais didática.”
O Observador perguntou à autarquia de Lisboa quantos registos de alojamento local existem e quantas vistorias foram realizadas. A câmara respondeu apenas que esses dados “serão divulgados oportunamente”.
A capital não é, no entanto, caso único, como também foi possível perceber junto de proprietários de alojamentos locais noutros concelhos — como o Porto, Tavira e Albufeira — que revelaram nunca terem sido alvo de vistorias por parte das autarquias. Todos estes municípios receberam do Observador questões sobre o tema, mas nenhum deles deu, até hoje, qualquer resposta.
“O grande problema é que as câmaras não têm meios”, afirma Carlos Torres, especialista em Direito do Turismo, secundado por Regina Pereira, especialista em Propriedade Urbana e Arrendamento Imobiliário na sociedade SRS Advogados. “É suposto aparecer uma vistoria da câmara. Mas, na realidade, a câmara não vai”, diz a advogada, que presta aconselhamento jurídico a senhorios na Associação Lisbonense de Proprietários. Para ela, é precisamente aí que a regulação mais falha: “Tudo o que coloca mais responsabilidade nas câmaras municipais não é uma coisa positiva. Acaba por constituir um risco de que as coisas não avancem”.
Não há direito de deixarem aqui a gente num bairro fantasma. Era tudo uma família. A gente queixava-se e vinham acudir. Agora nem burro queres tu água.”
No mesmo artigo 8º (que define a vistoria camarária obrigatória), está estabelecido também que as autarquias podem pedir ao Turismo de Portugal, na sequência das ditas vistorias, que verifique se um alojamento local é mesmo um alojamento local e não um hotel, por exemplo. É que as regras para uns e para outros são diferentes e poderia dar-se o caso de um hotel querer fazer-se passar por hostel. “Até ao momento, ainda nenhuma autarquia solicitou a realização de qualquer vistoria”, esclarece ao Observador a assessoria de imprensa do Turismo de Portugal, lembrando que “as câmaras municipais conhecem a realidade em cada um dos seus municípios”. O organismo diz também que, desde novembro, foram cancelados 208 registos, 4 dos quais no concelho de Lisboa.
A outra entidade a quem compete a fiscalização deste tipo de estabelecimentos é a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE). Segundo as informações disponibilizadas ao Observador, a ASAE “procedeu à fiscalização de 221 operadores económicos a nível nacional [desde novembro] e a 27 operadores no concelho de Lisboa” desde o início do ano. Daí resultaram “48 processos de contraordenação”, relacionados sobretudo com “falta de afixação no exterior da placa identificativa da respetiva classificação, não realização das comunicações prévias exigidas, falta de registo de estabelecimento de alojamento local e oferta, disponibilização, publicidade e intermediação de estabelecimentos de alojamento local não registados ou com registos desatualizados.” Nenhum alojamento foi forçado a encerrar.
“Ai que bom a casa estar arranjada”
Para abrir as Casas d’Almedina, Sofia e os sócios arrendaram um edifício a menos de 50 metros da entrada do Castelo de São Jorge. “O prédio estava muito mau. O senhorio fez obras e eu fiz o acompanhamento de obra”, explica, sentada atrás da secretária onde se recebem os hóspedes. É uma pequena divisão de portas abertas para a rua com mapas afixados nas paredes e onde se ouvem os passos dos turistas sobre o soalho de madeira do andar de cima. Os edifícios contíguos estão à espera de melhores dias. “O feedback que tenho é ‘ai que bom a casa estar arranjada'”, diz Sofia, que tem notado um aumento do número de obras de reabilitação na zona.
Também em bairros como Alfama e o Bairro Alto se nota que há mais obras de recuperação de edifícios. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, apesar de as obras licenciadas e concluídas no campo da reabilitação terem diminuído a nível nacional, na Área Metropolitana de Lisboa registou-se um aumento de 30,4% nos licenciamentos no primeiro trimestre de 2015 face a igual período do ano passado. A câmara tem vários programas de incentivo à reabilitação, que contemplam benefícios fiscais, facilidade de acesso a financiamento e descontos vários.
A Rua da Regueira, outra artéria esconsa de Alfama, é apenas uma das muitas que assistiram a dezenas de obras nos últimos tempos. Sentada numa laje à porta de casa, enquanto apanha ar fresco num dia de muito calor, Maria, “só Maria”, vê passar turistas com malas de rodas para cima e para baixo. Dois andares no prédio dela, todo o prédio em frente, três andares no prédio da esquerda e outros tantos no da direita são para arrendamento temporário. Para ela, é apenas uma questão de tempo até que a própria casa, onde está há mais de 50 anos, seja um alojamento local. Basta morrer. Já aconteceu o mesmo com a casa da irmã, no edifício ao lado.
“A minha irmã teve a infelicidade de morrer”, diz de uma maneira curiosa, sem se perceber muito bem se a voz está a embargar ou se se engasgou momentaneamente. Logo a seguir, “veio o advogado para os pôr na rua”, aos sobrinhos que viviam ali. Depois de umas obras, “a senhoria alugou a outro indivíduo e ele fez lá um apartamento para turistas”. No prédio dela, a história foi semelhante, mas não foi preciso morrer ninguém. “A senhoria começou a embirrar com ele, a embirrar com ele. Eram pessoas impecáveis, ela queria a casa a toda a força. Antes de se ir embora, ele grafitou a casa toda de preto.”
Um dos efeitos da nova lei do arrendamento, em vigor desde 2012, foi o de ter atualizado os valores de rendas que há anos não sofriam alterações. No caso de Maria, a renda passou de 30 para 150 euros mensais. Em muitos casos, os inquilinos não foram capazes de acompanhar o aumento e foram-se mesmo embora. “Muitos proprietários ficaram com as casas que tinham arrendadas nas mãos”, explica Regina Pereira, para quem aquela lei teve mais impacto para a atual realidade do que propriamente o novo regime do alojamento local. “Ao terem as casas nas mãos, os proprietários perguntam: o que é que eu vou fazer a isto?”
“Antes de entrar, já pagaram”
Maria até gosta de ver o edifício fronteiro com a cara lavada. “As casas estão todas limpinhas, novas, bem arrumadas, dá gosto.” O pior não é a fachada, é quem se mete lá dentro. As histórias atropelam-se. Desde os russos que “comiam e bebiam e atiravam as latas de sumo para a rua” aos muitos que “às cinco da manhã cantam, bebem, tocam viola”. Por tudo isto, Maria sente-se abandonada. “Não há direito de deixarem aqui a gente num bairro fantasma. Era tudo uma família: a gente queixava-se e vinham acudir. Agora nem burro queres tu água.”
Não é preciso andar muito para encontrar uma alfamista com uma perspetiva bem diferente. Pelas quatro e meia da tarde, tocam as Avé-Marias em Santo Estêvão e Fátima lava a Calçadinha de São Miguel à mangueirada. Esta artéria lisboeta fica ao lado da igreja com o mesmo nome e é lá que Fátima tem um dos mais famosos restaurantes das redondezas há 30 anos. Ali também há um prédio inteirinho dedicado a arrendamentos temporários. E Fátima resume assim a situação: “Nós não temos petróleo, temos de nos agarrar ao turismo.”
As estatísticas parecem dar-lhe razão. Em 2014, o turismo em Portugal teve um saldo positivo de sete mil milhões de euros e os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística apontam para um aumento de 5,8% nas dormidas em hotelaria, entre maio deste ano e o mesmo mês do ano passado. Também no ano passado, dois milhões de pessoas preferiram ficar em apartamentos, hostels ou moradias durante as férias, o que representa um aumento de 23,2% face a 2013 e um encaixe monetário a rondar os 110 milhões de euros.
“Nós temos de ver as coisas como elas são: isto é uma coisa que tem de ser olhada como um negócio”, afirma Regina Pereira, que diz que este tipo de oferta turística representa um investimento “muito convidativo”. Para a advogada, é disso mesmo que se trata: fazer dinheiro. Um alojamento local acarreta “muito menos riscos” para os senhorios do que um arrendamento de longo prazo, defende, porque os turistas “antes de entrar já pagaram”, uma segurança que nem sempre se tem com um inquilino normal.
Regina Pereira e Vera Pereira partilham o apelido, mas não se conhecem. Vera é senhoria de um apartamento em Cascais e utiliza uma frase quase igual à da advogada: “Sei que quando entram em casa já pagaram”. Há uns meses, Vera decidiu trocar o arrendamento permanente pelo temporário devido a uma má experiência com uma inquilina. “Ela acabou por estar lá oito meses sem pagar um tostão. Desapareceu, o fiador também já não tinha solvência e nunca tive a mais pequena notícia dela. Fiquei a arder com cinco mil euros.” Como já tinha um apartamento para turistas na Rua dos Caetanos, no Bairro Alto, que estava a ter boa saída, tomou a mesma opção em Cascais. O T2 para quatro pessoas está a cargo de uma amiga, que recebe uma pequena comissão por cada estada negociada. Tanto lá como no bairro lisboeta, nunca teve “o mínimo problema”, afirma Vera, que diz ter feito “obras faraónicas” na casa de Lisboa sem o intuito específico de a disponibilizar a turistas. Agora que isso se tornou uma realidade, “tirar algum dinheiro deste mega-esforço é gratificante”.
A prostituição
Regina Pereira acredita que é acima de tudo o risco que leva os senhorios a optarem pelo alojamento local. “O fator risco é o mais importante. Eu faço despejos todos os dias. O número de casos em que as pessoas deixam de pagar a renda é elevadíssimo”, diz a especialista em Propriedade Urbana e Arrendamento Imobiliário. Além disso (e talvez por causa disso), “é caro morar no centro da cidade”, pelo que, acredita, não se deve diabolizar os hostels e semelhantes. “O que nós gostaríamos era de ter uma cidade jovem, mas os jovens não têm dinheiro para arrendar uma casa no centro”.
“”Eu faço despejos todos os dias. O número de casos em que as pessoas deixam de pagar a renda é elevadíssimo.”
André, nome fictício, sabe bem o que isso é. Daqui a não muito tempo, ele e a namorada terão de deixar o apartamento que arrendaram na zona de Santa Engrácia porque a senhoria, que vive fora, quer vender a investidores estrangeiros. E ele está agora a notar que “há um inflacionamento de preços brutal” e que “está a ser um filme” encontrar um novo poiso.
A história de André é fora do comum. Até ao fim do ano passado, morava numa casa arrendada na zona do Chão do Loureiro, a meio caminho entre a Baixa e o Castelo. Com “uma localização incrível, perto das principais praças de Lisboa” e “vista de rio em todas as janelas”, André viu no apartamento uma boa forma de ganhar algum dinheiro extra. Pediu autorização ao senhorio para arrendar a turistas, ele deixou e, pouco depois, percebeu que tinha um filão de ouro nas mãos. “O senhorio percebeu que aquilo tinha corrido bem e começou a pressionar-me para sair da casa, umas vezes dizia uma coisa, outras vezes dizia outra.” André lá saiu, em dezembro, depois de três meses em que todos os dias tinha hóspedes. Agora é o senhorio que está a faturar. “É um maná”, resume o ex-inquilino, que também vê um lado triste na situação. “Conheço uma pessoa que já pôs as coisas nestes termos: é uma prostituição teres de alugar a tua casa para ganhares algum dinheiro.”
As dores de crescimento
Muitos moradores de Alfama queixam-se do barulho que os turistas fazem quando arrastam as malas de rodinhas pelas ruas; queixam-se das horas a que eles entram nos prédios, batendo portas, tocando às campainhas erradas e gritando; queixam-se da falta de segurança que pressupõe a entrega da chave dos edifícios a pessoas estranhas; queixam-se do desgaste e da sujidade a que as zonas comuns são sujeitas; queixam-se de não ter ninguém com quem falar, porque quase ninguém fala português. E, quase sempre, as queixas têm razão de ser.
Para Carlos Torres, especialista em Direito do Turismo, “também em Lisboa se verificam preocupantes efeitos na população residente motivados pela transformação de residências em alojamento turístico, afetando o estruturante e tradicional objetivo das políticas públicas de garantir a ocupação dos centros urbanos por população residente”. Segundo este advogado e professor universitário, há em toda esta situação “uma perversão”: os turistas vêm em busca de coisas típicas, mas o que acontece é “uma perda de autenticidade, a progressiva destruição dos elementos icónicos” dos bairros. Além dos habitantes que saem, sai também o comércio mais antigo e tradicional.
A Rua dos Remédios, em Alfama, é disso um exemplo. Nesta artéria, que é uma das que mais alojamentos locais tem em Lisboa, os últimos meses foram sinónimo de revolução comercial. “Se viesse aqui há um ano isto estava tudo fechado, agora é barzinhos em todo o lado”. Quem o diz é Rita Pinheiro, que trabalha na loja de chás e cafés da mãe, no 69 daquela rua. Há não muitos meses, a Delícia do Ultramar, como se chama a casa, estava num espaço mais abaixo. “O senhorio morreu, os filhos não quiseram e venderam, sempre com a garantia de que ficávamos”, explica Rita. Depois, o novo proprietário mudou de ideias e podia ter sido o fim de mais um negócio típico nos bairros históricos. Acabaram por arranjar um novo local um pouco mais acima, mas não são muitos os que têm a mesma sorte.
Como quase tudo na vida, a realidade não é a preto e branco. Ou, como diz o emigrante do Beco da Lapa, “anda meio mundo a enganar outro meio”. Se a alfamista Alcinda acha que a “merda” lhe cai toda em cima, também é certo que, por alturas do Santo António deste ano, a neta fez um trono ao santo popular que colocou estrategicamente na Rua dos Remédios. “Ganhou montes de dinheiro com os turistas dos tuk-tuk”, ri-se a mulher, explicando que o montante ajudou a pagar a conta da TV Cabo e a fazer face a outras despesas. Também Adília Martins, proprietária de um minimercado próximo, tem pena que Alfama já quase não tenha lisboetas, mas agradece os turistas que a procuram. “Agora só se ouve falar inglês. Mas é com eles que nós vivemos”, afirma, logo depois de aviar uma mulher estrangeira que foi em busca de fruta. “Eu vivo do turismo, sou sincera. Não há aqui mais gente. De clientes minhas, já ‘éne’ morreram, outras reformaram-se e foram para as terras…”
“”Eu vivo do turismo, sou sincera. Não há aqui mais gente. De clientes minhas, já ‘éne’ morreram, outras reformaram-se e foram para as terras…”
Para Carlos Torres, a realidade do alojamento local, tal como está, é “um modelo em que os turistas gastam pouco no destino, geram pouco emprego e comprometem o futuro da atividade pela saturação e descaracterização dos locais”. Esta é uma ideia contracorrente, que contraria a tese de que esta solução de hotelaria é vantajosa para a economia local e nacional. “O dinheiro poupado pelo turista que opta pela locação turística não é compensado com outro tipo de gastos no destino (compras, alimentação, atividades culturais ou de lazer)”, afirma o advogado, que pensa que “uma visão equilibrada disto é muito difícil”. Para ele, a solução é simples: “Os imóveis com utilização habitacional não podem ser afetos a finalidades de alojamento turístico sem que exista a alteração do uso”. Ou seja, ou os prédios são para morar, ou são para arrendar a turistas.
Mas esta não é uma solução consensual. O secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes, pai desta legislação e um defensor da liberalização do mercado, pensa que “o Estado não pode, nem deve, limitar o alojamento local”. Por outro lado, o vereador do Planeamento da Câmara Municipal de Lisboa, Manuel Salgado, admitia há umas semanas que certas zonas da cidade têm “uma concentração excessiva” de alojamentos turísticos. E apelava a que se fizesse “uma reflexão” sobre o tema. Enquanto o debate não avança, as palavras de André parecem particularmente acertadas. “Qualquer cidade que queira evoluir tem de passar por estas dores de crescimento. Entre o Deus-dará e a burocratização excessiva há um meio-termo que Lisboa ainda não alcançou.”