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Quim do rock: a história do bom gigante da noite lisboeta

Porteiro do Rock Rendez-Vous e do Johnny Guitar, homem do boxe e um guia para jovens à procura de um rumo. Amigos e família recordam Joaquim Silveira, que morreu em setembro aos 65 anos.

No início dos anos 90 um grupo de skinheads atormentava as noites de Lisboa. Acabado de abrir na zona de Santos, o Johnny Guitar era bar de paragem obrigatória para bandas, músicos e uma juventude em efervescência, ávida da cultura de rua e das novas bandas de garagem. Muitas tentavam alcançar projeção nacional tocando nos pequenos espaços da capital. À porta do número 175 da Rua da Beneficiência, Joaquim Silveira, pugilista vindo de Chelas, fazia a casa todas as noites. E nesse tempo dos cabeças rapadas, foi ele que tratou de evitar males maiores. “Uma vez disse-me: não quero cá gente dessa”, recorda Kalu, baterista dos Xutos & Pontapés, então sócio com Zé Pedro e Alex Cortez, dos Rádio Macau, do bar que acabaria por lançar dezenas de projetos da cena musical portuguesa.

“Conheci-o nos anos 80, no Rock Rendez Vous (RRV), e tivemos logo uma empatia grande. Até porque os Xutos tocavam muito lá. Era uma espécie de bom gigante que desempenhava muito bem o papel de porteiro”, conta Kalu, o baterista que mais tarde, no inícios dos anos 90, viria a tornar-se sócio do Johnny Guitar. “Foi a experiência que tivemos com ele no RRV – julgo que os Xutos tocaram lá mais de dez vezes — que fez lembrarmo-nos logo dele quando abrimos o Johnny. Tinha um físico bastante imponente, era boxeur, mas também um tipo muito sossegado”, conta Kalu.

Num tempo de ecos da revolução, de espírito libertino, experiências tóxicas e alterações culturais, pródigo em criatividade, foi pela mão de Mário Guia que se inaugurou o RRV. Por ali passaram bandas  e artistas hoje consagrados, como Xutos & Pontapés, Sétima Legião, Mão Morta, GNR, Rádio Macau, Heróis do Mar, Pop Dell’Arte, Sitiados, Ornatos Violeta e Rui Veloso, que inaugurou o clube a 18 de setembro de 1980 com o seu “Ar de Rock”. Todos eles conheciam o gigante da entrada, que nessa noite inaugural tentava conter uma fila de 500 pessoas, enquanto lá dentro ainda se apertavam os últimos parafusos. A multidão em êxtase justificava-se porque na altura jamais existira um clube de rock em Portugal. Um argumento patente no primeiro cartaz do RRV e num anúncio de jornal: “Tal como Londres e Nova Iorque, finalmente em Lisboa um clube de rock’n’roll”

Por esta altura, Joaquim Silveira frequentava o bairro do Rego e treinava num pequeno ginásio da zona chamado Grupo Excursionista Os Económicos, onde calçou pela primeira vez umas luvas de boxe e viria a tornar-se um atleta profissional e treinador de alguns nomes de referência do boxe português, como o pugilista Jorge Pina. Nesse tempo, Mário Rui Souto, hoje produtor musical e de eventos na Câmara Municipal de Lisboa, treinava futebol n’Os Económicos. “Nunca treinei com ele. A arte do Quim era o boxe, mas ele adorava ensinar os miúdos que se inscreviam na modalidade. Tenho amigos que treinaram com ele desde os 11 anos”, recorda o produtor, que recebia sempre o mesmo cumprimento do pugilista: “Então, miúdo?’, perguntava-me. Até na última vez que o encontrei, numa bomba de gasolina da segunda circular, tratou-me por miúdo apesar dos meus cabelos brancos”.

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“Quando tinha 13 anos, longe de ter idade para entrar no RRV, o Joaquim pôs-me às cavalitas e meteu-me lá dentro. Foi a minha peripécia mais marcante com ele, até porque depois comecei a ir lá regularmente e a querer conhecer cada vez mais bandas e nova música. Foi um período tão importante que acabei por fazer uma carreira ligada à cultura”, conta Mário Rui Souto, que trabalhou na Câmara de Almada, EGEAC e CML, sempre ligado à música e aos espetáculos. “Era sempre o miúdo. Acho que se lhe perguntasse o meu nome, ele não saberia dizer.”

“Foi um namoro à antiga, a minha mãe à janela e ele do lado de fora”

Nos tempos do RRV, alguns anos antes da abertura do Johnny Guitar, Joaquim Silveira dividia os seus dias entre o boxe e a porta do mítico espaço lisboeta. Mas foi o amor por uma vizinha que mais havia de marcar a sua passagem pelo Bairro do Rego. “A minha mãe vivia mesmo em frente ao RRV, no número 26 da Rua da Beneficiência, onde abriu então a sala de concertos”, recorda a filha, Andreia Silveira. “Foi um namoro à antiga, a minha mãe à janela e ele do lado de fora. Estiveram assim seis meses e só depois nasceu o meu irmão”, conta, recordando esse ano de 1983, quando os pais decidiram dar o nó. “Casaram a nove de Janeiro e o meu irmão nasceu em novembro desse ano.”

“Ele fazia parte da cultura das bandas e do rock em Lisboa, alguém tão embrenhado no meio e que conhecia muito bem as pessoas, com bastante paciência para comportamentos menos adequados, muito calmo e compreensivo”, Lembra Luís Varatojo.

Localizado no antigo cinema Universal, em Lisboa, ao RRV estaria reservada uma década de concertos e de longas noites, com Joaquim sempre à porta. A certa altura, foi o próprio segurança a lançar uma ideia “estapafúrdia”, nas palavras de Luís Varatojo, dos Peste & Sida. “Organizava os eventos Rock and Boxe. No meio da plateia estava montado um ringue. Depois uma banda subia ao palco e tocava quatro ou cinco músicas nos intervalos dos combates. Era uma combinação bastante improvável, mas que funcionava”, conta o músico, que anos mais tarde lançaria o projeto A Naifa.

Sobre esses tempos, Luís Varatojo recorda: “O RRV e o Johnny Guitar tinham uma coisa em comum que hoje não existe: além de uma agenda preenchida de concertos, com bandas novas e concursos de música, eram também ponto de encontro de dezenas de artistas. Saíamos à noite e encontrávamos sempre malta da música. Lembro-me de como terminavam as noites no Johnny Guitar: o Joaquim tinha colocado uma placa nos dentes e sempre que acabava a música, para arrastar os últimos resistentes, tirava-a da boca e dizia sem dentes: ‘vamos lá pessoal, acabou, está na hora.” Varatojo considera o Quim do Rock, como muitos o conheciam, como “um caso único”. “Ele fazia parte da cultura das bandas e do rock em Lisboa, alguém tão embrenhado no meio e que conhecia muito bem as pessoas, com bastante paciência para comportamentos menos adequados, muito calmo e compreensivo”.

Claro que para alguém que vestia a farda de um segurança – na altura do RRV, todos vestiam uma espécie de fato macaco escuro –, Joaquim valia-se do seu metro e noventa para intimidar aqueles que procuravam mais problemas do que diversão. Alex Cortez, baixista dos Rádio Macau e antigo sócio do Johnny Guitar, recorda como contratou o pugilista que conhecia do RRV. “Queríamos um híbrido entre o porteiro e um segurança”, conta ao Observador Cortez, desde sempre ligado a diferentes projetos na área da cultura e da vida noturna: lançou o espaço Poetas do Povo, no Cais do Sodré, e Musicbox, tendo estado desde sempre ligado à música – atualmente lidera a Lisbon Poetry Orchestra, que junta gente da música e da escrita.

“Nesses tempos do Johnny’, as coisas eram diferentes e o Quim era uma garantia de que tudo funcionava bem.” “Carismático”, nas palavras do músico, com “forte personalidade”, nunca o viu agredir ninguém. Mas numa altura em que a noite Lisboeta estava em convulsão, o gigante de quase dois metros conseguiu colocar alguma água na fervura e acalmar os ânimos. “Vi-o sozinho a meter seis ou sete em respeito”, conta Alex, elogiando o papel do segurança “muito importante numa altura que os skinheads tentaram tomar conta daquele espaço.” “Dizia-me ‘vou correr com os carecas daqui’, e a verdade é que ele foi de uma importância vital. O Quim era muito respeitado, havia por ele um misto de respeito e receio.”

“Ele dizia-nos sempre: ‘olhem que eu estou a ver’”

Nascido em novembro de 1956, na zona de Idanha-a-Nova, de uma família de camponeses, Joaquim Silveira cedo começou a trabalhar na terra. Ajudava na casa da avó e mudou-se para Lisboa no princípio dos anos 80. Não o esperava um apartamento no centro de Lisboa, grandes festas ou vida fácil: vindo do interior mais distante do país, foi diretamente para o bairro de Chelas, em Lisboa, para trabalhar na construção civil com o pai. Sam the Kid, também de Chelas, que muitos anos depois haveria de ser treinado por Joaquim, recorda-o como “aquele gajo que esteve sempre presente”. “Fazia parte de uma geração que foi sacrificada pelo abuso de drogas pesadas, muito por desconhecimento, como aconteceu com o meu pai”.

“Teve muitos trabalhos como segurança, mas houve uma altura em que decidiu deixar a noite, porque houve um aumento de criminalidade e as coisas não eram fáceis para quem estava à porta de uma discoteca", recorda Andreia Silveira, filha de Joaquim.

Mas antes disso, Joaquim ainda conseguiu ter uma carreira no boxe, tendo chegado a fazer parte da equipa do Sporting Clube de Portugal. “O Quim competiu em provas nacionais e lá fora. Mas o boxe é tramado, porque quando se chega a sénior o prazo de competição é muito limitado. Não havia grandes competições nos escalões mais velhos”, conta Alexandre Belo Morais, que também fez segurança no RRV. Mesmo assim, recorda a filha, Joaquim chegou a ter uma escola de boxe com o seu nome, tendo viajado em competição pela Europa e Rio de Janeiro.

“O meu irmão acompanhava sempre o pai nessas viagens. Eu só nasci oito anos depois da demolição do RRV para dar lugar a uma pastelaria”, conta Andreia Silveira, lembrando que o pai sempre dividiu o tempo entre a construção civil, o boxe e a noite. Depois do casamento, mudou-se definitivamente para o Bairro do Rego até ao encerramento do RRV. “Teve muitos trabalhos como segurança, mas houve uma altura em que decidiu deixar a noite, porque houve um aumento de criminalidade e as coisas não eram fáceis para quem estava à porta de uma discoteca.”

Sobre esses tempos atribulados, João Pedro Almendra, outro ícone da música que despontou no final dos anos 80 – era vocalista dos Peste & Sida e formou depois a banda punk Ku de Judas –, conhecia-o de vista “porque tinha entrado num papel secundário, como boxeur, numa novela”. “Fazia papel de mau e conhecíamos o Joaquim de vista. Mais tarde, viemos a saber que estava ligado aos Económicos. Como segurança, talvez não fosse o que mais simpatizava connosco. Nos nossos concertos, levávamos a malta do punk, que partia corpos na cabeça e andavam muito à porrada.” Almendra, que depois se mudou para Inglaterra para se livrar dos problemas com drogas, acabaria por encontrar Joaquim pouco antes da sua morte. Onde? No Bairro do Rego, claro.

“Já estava a lutar contra o cancro, mas ficou muito feliz com o nosso encontro, até tirámos uma fotografia. Contou-me cheio de orgulho que estava a organizar mais um torneio de boxe para os miúdos”, conta João Pedro Almendra, que nesse dia até fez uma selfie com o antigo boxeur. “No princípio do RRV, o Quim tinha-se mudado para o Rego [onde viveu com a mulher e os dois filhos]. Por vezes, nós estávamos cá em baixo durante o dia a fumar um charro e ele dizia-nos sempre da janela: olhem que eu estou a ver.”

“Foi uma tentativa de exorcizar os seus demónios”

Tó Trips era um adolescente quando fugiu de casa dos pais, de perna engessada, para ver pela primeira vez os Xutos & Pontapés no RRV. Nunca chegou a privar com Joaquim Silveira, mas recorda-se da sua figura imponente e da ligação que tinha com as bandas mais antigas e as que pareciam nascer diariamente, num tempo de grande efervescência musical. “Lembro-me dele no Johnny Guitar, mas nunca tivemos confiança. Era daquelas pessoas que ia encontrando regularmente na noite. Quando o bar fechou, perdi-lhe o rasto. Soube que esteve preso uma série de anos”

A filha recorda com alguma tristeza esses tempos mais duros do pai. “Esteve detido cerca de sete anos por tráfico, entre 1995 e 2002. Eu tinha cinco anos quando ele foi preso e quando foi libertado tentou voltar para a noite, mantendo o trabalho na construção, mas aquele glamour e noites loucas dos anos 90 tinham acabado. Acabou por se separar da minha mãe, que chegou a ser dona do RRV já nos últimos anos do bar, e dedicou-se a ensinar boxe aos miúdos, para os tirar das ruas.” O velho espaço de concertos na Rua da Beneficiência acabaria por durar uma década. Apesar de ter fechado logo ao fim de três anos devido a muitas noites atribuladas, uma petição permitiu a reabertura até encerrar definitivamente a 27 de julho de 1990. Foi demolido.

“Nos últimos tempos, sempre que me encontrava, pedia-me para lhe passar o filme. Queria mostrar ao mundo quem tinha sido. Tinha enorme orgulho em treinar os putos do bairro, sempre com projetos e ideias novas ligadas ao boxe, sempre para ajudar os mais novos”, conta Sam The Kid.

A saída da prisão, o confronto com uma nova realidade, empurrou Silveira para a formação de novos atletas. “Foi uma tentativa de exorcizar os seus demónios”, diz Andreia Silveira. O boxe voltava assim a ser a sua melhor orientação, tratando todos os seus alunos “como se fossem filhos”. “Só depois vinha a família, da qual acabou por abdicar pelo boxe. Os momentos entre nós os quatro, mãe, pai e os dois filhos, aconteciam sobretudo em Melides, onde tínhamos uma caravana instalada no parque de campismo. Por vezes lá levava algum dos seus alunos para passar férias connosco.”

Sam The Kid lembra-se de toda a vida ter visto Joaquim Silveira no Bairro de Chelas, onde a família viveu quando chegou a Lisboa. “A grande paixão dele era o boxe, foi uma pessoa que fez vários campeões e com nome na modalidade. No bairro era conhecido por Moca. Porquê? Era um vício de linguagem, acabava todas as frases a dizer ‘estás a ver, moca?’”. Samuel Mira chegou a treinar com ele, não para ser pugilista, mas para fazer exercício físico. “Nunca seria para competir, era mais para perder peso. No bairro toda a gente sabia que ele tinha sido o mítico porteiro do RRV, até porque fazia questão de o dizer constantemente. Apesar de ter tido um fim de vida difícil, chegou a ter um documentário sobre a vida dele chamado ‘Vencer a Sombra’.” Curiosamente, Sam The Kid é das poucas pessoas que tem uma cópia do filme, protagonizado por Silveira, realizado por Pedro Madeira e Paulo Ares.

“Nos últimos tempos, sempre que me encontrava, pedia-me para lhe passar o filme. Queria mostrar ao mundo quem tinha sido. Tinha enorme orgulho em treinar os putos do bairro, sempre com projetos e ideias novas ligadas ao boxe, sempre para ajudar os mais novos”, conta Sam The Kid, que numa das primeiras vezes que saiu do bairro fê-lo para participar numa noite de hip hop no Johnny Guitar. Foi nessa noite de microfone aberto que entregou a sua primeira maquete a Pacman (Carlão, dos Da Weasel) e KGB, que acabaria depois por chegar à rádio energia. Joaquim Silveira morreu no final do passado mês de setembro, vítima de cancro.

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