Terá sido uma discussão relacionada com a cadela do ator Bruno Candé, na quarta-feira, um dos motivos para o fim trágico três dias depois — isto aos olhos da investigação porque, aos olhos da família, terão sido motivações raciais. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu nessa quarta-feira, mas descobri-lo pode ser a chave para perceber por que é que um homem de 76 anos matou no sábado o seu vizinho — na rua, em plena luz do dia e com dezenas de pessoas a assistir. Amigos, familiares e vizinhos relatam que três dias antes do crime, o homicida terá tropeçado na cadela Pepa, acabando por proferir insultos racistas e ameaçá-lo de morte — um ato que viria depois a consumar. Já fonte policial disse ao Observador que há suspeitas de que, na sequência dessa discussão, terá sido o ator a agredir o homem — que terá depois, no sábado, agido por vingança.
É esta desavença, cujos contornos ainda estão por esclarecer, que faz com as forças policiais afastem, para já, o cenário de um homicídio provocado por ódio racial — quer a PSP que tomou conta numa primeira fase do caso, quer a Polícia Judiciária (PJ) que o está agora a investigar. A embrionária investigação segue a tese de que a discussão de quarta-feira reacendeu-se no sábado e culminou com a morte de Bruno Candé, de 40 anos. Mas a família insiste nas motivações racistas e acredita que o facto de o ator ser negro está na base do crime: se não foi a única razão pode ter sido, pelo menos, um fator para a desavença ter atingido as proporções que atingiu.
Provar que o alegado homicida matou Bruno Candé exclusivamente por ser negro é difícil — senão impossível: até porque o septuagenário já o negou quando interrogado pelos inspetores da PJ, segundo o Jornal de Notícias. Mas há perguntas que permanecerão sem resposta. Se Bruno Candé fosse caucasiano, teria uma discussão com a cadela sido suficiente para o matar? Ou o facto de ser negro, mesmo não tendo sido a motivação principal, intensificou essa desavença?
Seis testemunhas ouvidas e “nenhuma falou em racismo”. Família fala em insultos racistas
O crime aconteceu por volta das 13h00 de sábado em plena Avenida de Moscavide, em Loures. Bruno Candé estava sentado num banco, a passear a Pepa, quando um homem “saiu de um restaurante, depois de almoçar, e disparou quatro vezes sobre ele”, escreveu a Casa Conveniente, a companhia de teatro com quem a vítima colaborava, no Facebook. Sem mostrar resistência, o homem foi retido por pessoas que ali se encontravam até ser detido pela PSP que entretanto chegou, confirmou fonte da PJ ao Observador.
Ocorrido em plena luz do dia, foram várias as pessoas que ali passavam no momento dos disparos e assistiram sem querer ao crime. A família da vítima, em declarações ao Correio da Manhã, assegura que o homicida, antes de disparar, terá dito: “Vai mas é para a senzala”. Mas a PSP garante que das seis testemunhas ouvidas no local “nenhuma falou em racismo” segundo disse ao Observador o comissário do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, Luís Santos. As testemunhas “estavam na via pública e ouviram os disparos”, mas não ouviram insultos ou ameaças racistas. “Não tenho acesso a qualquer informação que me leve a poder dizer que A chamou nomes a B ou C, discriminatórios em termos de cor de pele”, explicou o comissário Luís Santos.
Algumas das pessoas que ali se encontravam tinham também assistido à discussão ocorrida três dias antes entre os dois. Também em relação a esta desavença as testemunhas ouvidas no local pela PSP afastaram a hipótese de estar relacionada com “a cor da pele”, acrescentou ainda o comissário. A PJ suspeita até que Bruno Candé possa ter agredido o homem na sequência dessa discussão. Ao Observador, a atriz e amiga Marta Félix explica que, nesse dia, deslocou-se até ao local, mas a discussão já tinha terminado. Lá, várias pessoas explicaram que ambos discutiram por causa da cadela, mas ninguém lhe mencionou quaisquer agressões.
PSP: em seis testemunhas ouvidas sobre a morte de Bruno Candé, “nenhuma falou de racismo”
Já a família, em comunicado, afirma que, além dos vários insultos racistas, o septuagenário teria ameaçado de morte Bruno Candé três dias antes do homicídio. Defende por isso que “fica evidente o caráter premeditado e racista deste crime” e exige que “a justiça seja feita de forma célere e rigorosa”.
SOS Racismo pede justiça. Bloco lamenta “assassinato racista” e Chega afasta ódio racial
A associação SOS Racismo defendeu também que “o caráter premeditado do assassinato não deixa margem para dúvidas de que se trata de um crime com motivações de ódio racial”. Em comunicado, exigiu que “justiça seja feita” e pede que o “assassinato do Bruno Candé Marques não seja mais um sem consequências”.
A coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins, questionou “como é possível o tom de pele determinar que alguém perca assim a vida num crime tão odioso” E defendeu que é bom que se perceba que “racismo não é opinião, é crime”, e que “quando se tira a humanidade a outros com o racismo, estas coisas acontecem”. Em declarações no encerramento do “Acampamento Online Liberdade 2020” do BE, Catarina Martins considerou que, quando “não se considera as pessoas, não se olha nos olhos”, quando “se alguém acha que os outros não são iguais, então a violência acontece”. “O racismo não é uma opinião, o racismo é crime e o crime acontece”, disse ainda.
Também a deputada Joacine Katar Moreira reagiu à morte de Bruno Candé, um “filho” que se perdeu “nas malhas do racismo que é todos os dias alimentado por muita gente”. “Não à custa do sangue da juventude negra. Não à custa das nossas vidas. Racismo é crime e a justiça será feita!”, escreveu ainda numa publicação no Facebook.
https://www.facebook.com/KatarMoreira/photos/a.2012246238904132/2963442390451174/?type=3
Num tom contrastante, a direção nacional do Chega defendeu que “o assassinato do ator Bruno Candé é uma tragédia, mas nada tem, segundo os dados conhecidos até ao momento, a ver com racismo”. Numa nota enviada aos jornalistas, o partido liderado pelo deputado André Ventura reiterou que “a sociedade portuguesa não é racista” e lamentou “o aproveitamento político que a esquerda”. “Portugal é o país menos racista da Europa, talvez do mundo, pelo que só nos resta transmitir à família e amigos de Bruno Candé sentimentos de solidariedade e conforto”, lê-se ainda.
No Twitter, Ventura reforçou a mensagem: “Acabem lá com essa ladainha habitual do racismo. Não somos um país racista! Nada neste homicídio aponta para crime de ódio racial”.
Bruno Candé foi assassinado e isso é uma tragédia. Como seria o assassinato de um branco ou de um chinês. Acabem lá com essa ladainha habitual do racismo. Não somos um país racista! Nada neste homicídio aponta para crime de ódio racial.
Translate Tweet— André Ventura (@AndreCVentura) July 26, 2020
“Uma força da natureza, uma gargalhada e uma alegria contagiantes”. Bruno Candé deixa três filhos menores.
No comunicado, a família conta ainda o ator era “inseparável” da sua cadela Pepa e “foi importante na sua recuperação”. Isto porque em 2017 Bruno Candé tinha sofrido um acidente grave de bicicleta, por atropelamento: esteve em coma, perdeu a memória e as capacidades motoras. “Desde então ficou com sequelas em todo o seu lado esquerdo”, lê-se ainda.
De 40 anos, Bruno Candé era ator há mais de duas décadas — um percurso que iniciou no grupo de teatro da Casa Pia. Colaborava com a Casa Conveniente desde 2011, estreando-se com o espetáculo “A Missão – Recordações de uma Revolução” encenado por Mónica Calle e com o qual ganharia o prémio de melhor espetáculo do ano em 2012. Foi ator dos espetáculos “Macbeth”, “O Livro de Job”, “Rifar o Meu Coração”, “A Sagração da Primavera”, “Noites Brancas” de Mónica Calle, “Drive In” de Mónica Garnel, “Atlas” de João Borralho e Ana Galante, lembra a companhia de teatro no Facebook.
A companhia de teatro descreve Bruno Candé como “uma força da natureza, uma gargalhada e uma alegria contagiantes”, com “um coração gigante”. Deixa três filhos menores.
Alegado homicida em silêncio no tribunal. Ficou em prisão preventiva
O suspeito da morte do ator Bruno Candé foi presente a um juiz de instrução esta segunda-feira, no Tribunal de Loures, que decidiu aplicar a medida de coação mais gravosa: o homem vai aguardar os próximos passos judiciais em prisão preventiva, confirmou o Observador junto de fonte do tribunal.
A sessão foi breve porque o homem optou por não prestar declarações — um direito que lhe é garantido —, confirmou fonte judicial ao Observador. Ao remeter-se ao silêncio, ficou por saber a sua versão de história e os motivos pelos quais matou o ator de 40 anos à queima-roupa, em plena luz do dia. Um silêncio que pode manter para sempre ou optar por quebrá-lo em julgamento.